Por EDUARDO HENRIQUE BARBOSA DE VASCONCELOS*
É possível fazermos história das ciências no Brasil que inclua uma multiplicidade de tempos, espaços, sujeitos e experiências?
Em 1956 o sociólogo mineiro radicado em São Paulo, Fernando de Azevedo,[1] publicou o livro As ciência no Brasil,[2] fruto de uma encomenda feita pela fundação Larragoiti, instituição criada em 1950 pela Sul América Companhia de Seguros de Vida (SulAmérica). A obra de Fernando de Azevedo foi o terceiro livro publicado por essa fundação.
A primeira publicação foi As artes plásticas no Brasil, de Rodrigo Melo Franco de Andrade; a segunda, A literatura no Brasil, de Afrânio Coutinho; a quarta e última obra impressa foi A medicina no Brasil, que ficou sob a responsabilidade de Leonildo Ribeiro, médico e diretor da fundação Larragoiti.[3] Vale ressaltar que o nome da função era uma homenagem da família controladora da empresa ao seu criador e patrono da família: Dom Joaquim Sanchez de Larragoiti Lucas.[4]
Percebe-se claramente que o livro de Fernando de Azevedo e as demais obras publicadas sob a mesma rubrica não eram apenas simples obras publicadas em mais uma das tantas coleções editoriais em voga no Brasil motivadas pelo boom editorial dos anos 1940 e 1950. Ao selecionar autores consagrados e reconhecidos em suas respectivas áreas, o objetivo era a constituição de uma obra de referência, uma obra de síntese que orientasse os seus leitores para o que havia de mais característico do avanço cultural e científico na época.
Imbuído desse espírito, Fernando de Azevedo organizou uma obra coletiva, em dois volumes, com 14 capítulos,[5] onde afirmou que as ciências no Brasil, seguindo todas as exigências científicas, é fruto exclusivo da Universidade de São Paulo (USP), fundada na capital paulista em 1934. Faz-se necessário ressaltar que, Fernando de Azevedo foi um dos educadores que participou do movimento de criação da USP e não é de estranhar que defendesse tal entendimento.
Uma reposta mais assertiva para a proposição que determinou o início da ciência no Brasil[6] com a fundação da USP veio a lume 21 anos depois com a pesquisadora brasilianista Nancy Leys Stepan, que publicou em 1976 o livro: Beggins of Brazilian sciecne: Oswaldo Cruz, medical research and policy 1890-1920.[7] Nesta obra, a autora assevera que a ciência no Brasil teve início no século XX, mas não com a criação da USP, como afirmou Fernando de Azevedo.
Para Nancy Stepan a criação do Instituto Soroterápico Federal[8] foi o início da ciência de matriz acadêmica no Brasil. Não por acaso a própria Fundação Oswaldo Cruz, Fiocruz, se empenhou em providenciar a tradução e a divulgação do livro de Nancy Stepan em terras brasileiras, ainda em 1976, com o título Gênese e evolução da ciência brasileira: Oswaldo Cruz e a política de investigação científica e médica[9].
Na sequência, em 1978, doutor em sociólogo e professor de história José Murilo de Carvalho publicou uma obra bastante significativa, A Escola de Minas de Outro Preto: o peso da glória.[10] O grande mérito do livro de José Murilo é sair dos limites do século XX e lançar luzes em uma atividade científica ocorrida na segunda metade do século XIX e além do eixo Rio-São Paulo. Dessa maneira, os espaços de atuação das atividades científicas no Brasil passaram a englobar, nos trabalhos acadêmico-científicos, a tríade Minas-Rio-São Paulo.
Vale ressaltar que nessa obra, o jovem autor que ganharia projeção e notoriedade entre os historiadores brasileiros na década de 1980, era ainda um recém-doutor em ciências políticas com uma tese defendida na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, em 1974, sobre a “Elite e a construção do Estado no Brasil imperial”,[11] tendo sido convidado pelo colega sociólogo Simon Schwartzman, que coordenava à época um projeto de pesquisa da Financiadora de Estudos e Projetos – Finep,[12] sobre a história das ciências no Brasil, obra que registraria as “glórias” da tradicional escola mineira.
Logo em seguida foi publicada mais uma obra versando sobre a história das ciências no Brasil. Simon Schwartzman publicou, em 1979, o livro Formação da comunidade cientifica no Brasil.[13] Encomendado pela Finep, agência estatal brasileira voltada a apoiar o desenvolvimento científico e tecnológico, a obra contou com a consultoria do sociólogo Joseph Ben-David.[14]E, segundo Marcia Regina Silva, o autor brasileiro em questão “trabalhou a partir também de uma sociologia funcionalista derivada essencialmente de Robert Merton e Thomas Kuhn”.[15]
Diferente de seus antecessores, o autor não estava preocupado em determinar onde a verdadeiro conhecimento de matriz científica (entenda-se lógico, racional, pragmático e europeu) “nasceu ou foi gestado no país”. Nesse projeto, o autor teve mais liberdade para desenvolver uma certa visão geral e abordar o que ele denominou de “herança do século XVIII”,[16] apresentando com mais acuidade as atividades científicas no século XIX, com ênfase nos naturalistas; educação superior; engenharia e mineração; medicina e cirurgia. O livro de Simon Schwartzman chamou atenção para práticas científicas até então desconsideradas.
Os anos finais da década de 1970 foi um período muito profícuo para o desenvolvimento do saber histórico no país[17] e para o desenvolvimento da história das ciências no Brasil. Além das obras de Nancy Stepan, José Murilo de Carvalho e Simon Schwartzman, veio a lume a publicação de uma coletânea sobre a temática científica. Com o título História das Ciências no Brasil, Mário Guimarães Ferri e Shozo Motoyama organizaram uma obra em três volumes, impressos respectivamente em 1979, 1980 e 1981. A coletânea foi financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e publicada pela Editora da Universidade de São Paulo (Edusp), em estreita parceria com Editora Pedagógica Universitária – EPU.
Posto esse cenário, abrimos um rápido parêntese para mencionarmos a pesquisa realizada pela professora Margarida de Souza Neves, publicizada em 1986, sob o título: As vitrines do progresso[18] que, além do financiamento usual da FINEP, foi apoiada pelo CNPq e pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/Rio), esta última, instituição de vinculação da professora. Neste texto, Margarida Neves chama atenção para a importância das Exposições Universais como autênticas arenas de influência política, econômica e cultural em que os países participantes deveriam se mostrar e apresentar no “concerto das nações” por meio do que melhor tinha em termos de técnica, de objetos e da sua produção industrial, científica e tecnológica.
Mesmo não tendo sido publicada em formato de livro, a pesquisa de Margarida Neves circulou entre os seus pares dentro da comunidade científica das ciências humanas no Brasil. Assim, de forma pioneira, apontou aos pesquisadores a cultura material e as exposições como importantes arenas de atuação social e científica do Brasil (mas não só) nos séculos XIX e XX.
Na década de 1990, Lilia Katri Moritz Schwarcz defendeu sua tese de doutorado no curso de antropologia da Universidade de São Paulo, originando o livro: O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930).[19] Nesta obra, a autora focaliza os discursos e práticas científicas desenvolvidos nas instituições onde a ciência era praticada no Brasil. O recorte institucional da autora é formado por institutos históricos, instituições médicas, escolas de direito e museus de história natural. Ao observar as tensões e contradições existentes nas práticas constituintes de cada uma dessas “áreas” de atuação, a partir das instituições investigadas, a autora mostra como a ciência praticada estava permeada por a prioris, ideias preconcebidas e preconceitos, que manifestavam, entre outros problemas, um enorme fosso social e racial entre o povo e os “homens de letras e ciência”.
Faz-se necessário salientar que nesta obra, Lilia Schwarcz insere os museus de história natural e a cultura material na dinâmica de produção, divulgação e circulação de saberes científicos, algo até então feito de forma tímida pelos pesquisadores que a antecederam. Mas se por um lado ela inclui, por outro, ela o faz com reservas, pois ao estudar os museus de história natural, centrou-se apenas no Museu Nacional, Museu Paulista e no Museu Paraense Emilio Goeldi.
Já na segunda metade dos anos 1990 chegou aos leitores o livro de Maria Margaret Lopes, intitulado O Brasil descobre a pesquisa científica: os museus de ciências naturais no século XIX.[20]Fruto do seu doutoramento em história, com ênfase em história das ciências, na Universidade de São Paulo, sob orientação da professora Maria Amélia Mascarenhas Dantes. Neste livro, Margaret Lopes é peremptória ao afirmar que antes das universidades e dos laboratórios, era nos museus de história natural que a ciência era realizada no Brasil ao longo do século XIX. Além de recuar temporalmente, “ao início da ciência no Brasil no século XIX”, a autora ainda demarcou especificamente os museus de história natural, que até então recebiam pouca ou nenhuma atenção por parte dos historiadores das ciências no Brasil, como locus por excelência de práticas científicas.
Ao longo do texto, Margaret Lopes analisa a criação, a constituição de acervos e as atividades científicas efetivadas por cinco museus: Museu Nacional, Museu do Ipiranga (Paulista), Museu do Paraná (Museu Paranaense) e o Museu Paraense Emilio Goeldi. Três museus no eixo sul e um do norte do país. Se, como sustenta a autora, a ciência em território brasileiro teve início e foi praticada nos museus de história natural, seriam os museus que ela estudou os únicos existentes até então? Ou haveria a possibilidade de existirem outros museus, em outros espaços nos quais se praticavam ciência no Brasil e que apenas não foram estudados?
Antes de concluirmos esse arrolamento de autores e obras, faz-se necessário abordarmos o livro Espaços da ciência no Brasil, obra organizada por Maria Amélia Mascarenhas Dantes e publicada pela editora da Fiocruz em 2001.[21] No livro, que contempla o período de 1800 até 1930, constam diversos artigos que tratam de diferentes instituições científicas, como a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, o Jardim Botânico, e a Sociedade Auxiliadora da Industria Nacional (SAIN).
Se o recuo temporal até o início do século XIX está totalmente contemplado na obra, todavia, a amplitude dos “espaços científicos” foi restrita ao tradicional binômio regional Rio de Janeiro/São Paulo. Ou seja, mesmo ampliando o escopo da pesquisa para o século XIX, o faz limitando-se aos mesmos espaços abordados por outras pesquisas anteriormente, ratificando como “mais relevantes” os sujeitos, instituições e práticas científicas dos grandes centros econômicos, políticos e urbanos do Brasil. Com efeito, mais uma vez, o lento processo de crescimento e ampliação das atividades científicas desenvolvidas até a publicação da obra de Margaret Lopes foram desconsiderados por sua orientadora, Maria Amélia Mascarenhas Dantes, em um explícito processo de involução.
Uma eventual explicação para a não incorporação de outros “espaços científicos” no livro, passa pelas limitações impostas pela editora. Seguramente não seria possível inserir todas as instituições que desenvolveram práticas científicas no Brasil ao longo de 130 anos. Ao observamos o currículo da professora e pesquisadora Maria Amélia Dantes,[22] uma das principais pesquisadoras dessa temática no Brasil e na América Latina, percebemos que ela orientou trabalhos na pós-graduação do curso de História da USP.
Contudo, no livro Espaços da ciência no Brasil, essa “ampla realidade brasileira” não foi abordada. Tal problema seria plenamente solucionado se ao invés de apenas um volume a professora tivesse publicado dois ou três, reservando para os volumes subsequentes um enfoque adequado para essas “outras realidades” não contempladas no volume único publicado em 2001.
Após essa apresentação, fica evidente uma historiografia da ciência com ênfase nas obras e nos autores mais voltados ou relacionados aos estudos dos museus de história natural no país, cuja orientação demonstra uma valoração das atividades desenvolvidas na área meridional do Brasil. Notamos ainda que a produção analisada busca legitimar as ações realizadas quase que exclusivamente no tripé Minas – Rio – São Paulo, abarcando com menor ênfase Minas Gerais nos séculos XVIII e XIX e com maior ênfase o Rio de Janeiro no século XIX e São Paulo no século XX.
O resultado é a exclusão dos demais espaços constituintes do país, como Norte, Nordeste, Sul e Centro-Oeste na feitura da “genealogia do saber nacional”. O que induz, o leitor, à compreensão de que se não está contemplado nesses trabalhos simplesmente é porque não existiu nenhuma atividade científica significativa nas demais área do Brasil.
No caso específico do Dr. Alves Ribeiro,[23] a incapacidade dessa historiografia entender e lidar com práticas científicas de cunho “transnacional”,[24] para além do referencial europeu é bastante significativo em uma produção intelectual balizada apenas pelo referencial europeu de ciência e centrada construção recorrente de mitos até mesmo na ciência brasileira.[25]
Percebemos, dessa forma, que a produção historiográfica apresentada carrega em seu bojo elementos análogos ao que o historiador Manoel Salgado Guimarães criticou como sendo uma memória disciplinar: “…crença numa história que parece se confundir com o relato dos eventos passados, assegurando uma dose de naturalidade à tarefa de dar sentido às ações humanas, fez com que este passado viesse habitar os espaços do sagrado, preservado do exercício da crítica, construindo desta forma uma memória da disciplina”.[26]
Tomada em conjunto, essa produção é apresentada como uma memória não só disciplinar, mas totalmente disciplinada que só aceita uma determinada forma de ler, escrever e produzir a história excluindo outras formas e/ou possibilidades.[27] lastreando-se exclusivamente nos processos ditos de formação do Estado nacional com ênfase exacerbada nos aspectos econômicos e políticos que possibilitaram e ainda possibilitam a produção científica e didática efetivada pelas instituições oficiais do poder instituído, compartilhando e divulgando intensamente essa visão de mundo com as diversas áreas que constituem o país.
Como uma exemplificação interessante dos aspectos acima indicado, concernente a grande valorização da ação estatal na produção cientifica nacional e consequente mente na história das ciências do Brasil, temos as palavras de Margaret Lopes que em um conhecido artigo de síntese, listou as seguintes instituições como as mais significativas: “Museus Nacional, Paulista, Goeldi, Botânico do Amazonas, Museu de Curitiba, o Observatório Nacional, os Jardins Botânicos do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Belém do Pará, as Escolas de Engenharia e Medicina, de Minas de Outro Preto”.[28]
Ao registrar os museus reconhecidos como espaços de produção de ciência no Brasil, a autora completa sua lista com mais instituições cuja finalidade maior é idêntica: “Institutos Agronômico de Campinas, Biológico de São Paulo, Manguinhos, Comissão Científica de Exploração, Imperial Instituto Fluminense de Agricultura”.[29]
Objetos de um grande número de pesquisas desde 1980, todas as instituições listadas compartilham quatro características: (i) a quase totalidade dessas instituições cientificas está localizada na atual região Sudeste – anteriormente parte da região Sul do país; (ii) esses centros de ciência foram criados, organizados ou geridos por profissionais qualificados dentro da “tradição cientifica europeia” e/ou tiveram suas atividades ou ações reconhecidas dentro dessa tradição; (iii) todas são Instituições oficiais, estabelecidas, financiadas e vinculadas ao poder público vigente e às custas do erário público, seja ele imperial/provincial ou federal/estadual; (iv) tanto as entidades quanto os seus agentes, acreditavam que como continuadores privilegiados da ciência europeia, fazem uma ciência universal e neutra
Nesse enquadramento, o que se entende por “ciência” é a atividade feita por um determinado grupos de homens com formação e/ou experiência lastreada na “tradição europeia”, ligados ou subordinados ao Estado e que atuam em uma instituição oficial capaz de oferecer condições materiais e simbólicas para justificar o pleno desenvolvimento de suas atividades. Ao comentar as coleções oficiais dos museus e demais espaços de estudo e pesquisa, Margaret Lopes demonstra estar ciente da grande importância sociopolítica e do amplo poder estatal nesse setor, pois afirmou: “O Estado, ao revelar a ordem da natureza, se tornava parte dessa ordem natural. Ordenar era função dos administradores, curadores, professores, médicos, anatomistas, cientistas…”.[30]
No Brasil, fica claro que o elemento de maior peso e densidade para caracterizar a ciência, segundo a produção acadêmica feita pelos historiadores da área, foi e continua a ser a identificação do financiamento estatal, seja ele no regime político Colonial, Imperial ou Republicano. Que ainda assim pretendia realizar uma ciência “universal e neutra”[31] nos mesmos moldes praticados pela rica tradição europeia. Outro sim, a ciência e os cientista só pode ser pensados como uma concessão direta ou indireta da Razão de Estado, servindo submissamente as razões e as “desrazões” do seu respectivo regime político.
Dessa maneira, temos literalmente a legitimação da A utopia burocrática,[32]neste caso especifico a burocracia cientifica. Mas fica a pergunta: diacronicamente pensando, só houve ciência financiada pelo Estado? Os pesquisadores ou cientistas individuais – com ou sem formação científica, que não tinham vínculos diretos com o Estado ou com instituições oficiais, que pagavam todos os custos de suas atividades, que mantinham comunicação e trocas com outros cientistas dentro e fora do Brasil – não poderiam fazer ciência? A ação estatal é condição sine qua non para a existência de ciência?
Outro aspecto estruturante da produção historiográfica brasileira sobre história das ciências é a mobilização, às vezes explícita às vezes implícita, da dita virtude epistêmica.[33] Essa postura legitima a importância de certas produções e espaços científicos, que por sua vez, são tomados como representativos da nação. Portanto, ao falar dessas práticas e desses espaços, fala-se, por metonímia, de Brasil, consubstanciando a ideia equivocada de que se houve ciência no Brasil dos séculos XVIII, XIX ou XX, foi, necessariamente, nos lugares e nos moldes apresentados pela historiografia dominante.
Cientes de tal situação, faz-se necessário indagar como praticar outras formas de entender e escrever a história das ciências no Brasil, para além da “memória disciplinar”, de modo que se incorporem as muitas experiências das diversas realidades do país. Tal problematização faz-se necessária, pois ela é ainda feita de forma incipiente por alguns poucos pesquisadores da área. Moema Vergara, por exemplo, que, posiciona-se nesse sentido ao concluir a resenha do livro Espaços da Ciência no Brasil, onde lançou o seguinte questionamento: “Mas ainda fica o desafio: é possível fazer uma história das ciências no Brasil fora das instituições?”.[34]
Ampliando o questionamento de Moema Vergara, problematizamos: é possível fazermos história das ciências no Brasil que inclua uma multiplicidade de tempos, espaços, sujeitos e experiências? Mais especificamente, é possível fazer história das ciências no Brasil que absorve e apresente o Norte, o Nordeste, o Sul e o Centro-oeste do país apresentado alternativas para a atual escrita da história centrada nos pares antitéticos “centro/periférica”, “desenvolvido/não desenvolvido”, “verdadeiro/falso”, “presença/ausência”?
A manutenção desse enquadramento nada mais é do que a reprodução, dentro das fronteiras nacionais, de uma ação prática desenvolvida pelas potencias cientificas internacionais para legitimar o desnível existente entre os interesses políticos/econômicos das nações que produzem ciências para o convencimento das nações que consomem ciência.
Questões como essa são boas para pensar, assim como a observação feita por Max Weber ao afirmar que “Com demasiada facilidade o historiador é dominado pela ideia de que a vitória dos elementos mais evoluídos seja evidente e que a derrota na luta pela existência seja sintoma de “atraso””[35]
*Eduardo Henrique Barbosa de Vasconcelos é professor de história na Universidade Estadual de Goiás (UEG).
Notas
[1] Para uma compreensão mais ampla da vida e da obra de Azevedo, Ver: GOMES, Wilson de Sousa. Fernando de Azevedo e a História a partir d’ A Cultura Brasileira. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal de Goiás. Goiânia-GO, 2021.
[2] Em 1943, Fernando de Azevedo escreveu A Cultura Brasileira (3 volumes), obra essa em que o autor já havia feito observações concernentes as ciências no Brasil, algumas dessas considerações retomadas para o novo livro de 1956.
[3] OLIVEIRA, Raiany Souza de. As Ciências no Brasil (1956): história e historiografia. In: BENTIVOGLIO, Júlio; et ali. [9º] Seminário Brasileiro de História e Historiografia: o historiador brasileiro e seus públicos. Ouro Preto: Editora da Universidade Federal de Ouro Preto, 2016. p. 496.
[4] Ver: <https://portal.sulamericaseguros.com.br/institucional/sobre-a-sulamerica/historia/>. Consultado em 12/03/2021. No final de fevereiro de 2022, foi anunciado que o grupo D’Or realizou a aquisição da Sul América, Ver: <https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/02/23/rede-dor-compra-sul-america.ghtml> consultado em 27/01/2022.
[5] Os capítulos do livro abordam: “A Matemática no Brasil”; “A Astronomia no Brasil”; “A Física no Brasil”; “A Meteorologia no Brasil”; “A Geologia e a Paleontologia no Brasil”; “A Mineralogia e a Petrografia no Brasil”; “A Geografia no Brasil”; “A Química no Brasil”; “A Zoologia no Brasil”; “A Botânica no Brasil”; “A Biologia no Brasil”; “A Psicologia no Brasil”; “A Economia Política no Brasil”; “A Antropologia e a Sociologia no Brasil”.
[6] Optamos por selecionar as obras que tratam da história das ciências no sentido lato, possibilitando, dessa maneira, uma maior aproximação com as ciências denominadas de humanas. Dito isso, não contemplados aqui as produções que abordam especificamente a história da ciência das chamadas ciências exatas tout court:Física, Química, Matemática.
[7] STEPAN, Nancy Leys. Beginnings of Brazilian Science: Oswaldo Cruz, Medical Research and Policy, 1890–1920. New York: Science History Publications, 1976.
[8] Criado em 25 de maio de 1900 como Instituto Soroterápico Federal; em 12 de dezembro de 1907 mudou a sua denominação para Patologia Experimental de Manguinhos; Nova mudança de nome em 19 de março de 1918 em homenagem à Oswaldo Cruz passando a se chamar Instituto Oswaldo Cruz e em maio de 1970 tornou-se Fundação Oswaldo Cruz. Ver: <https://portal.fiocruz.br/historia> Consultado em 18/02/2022.
[9] STEPAN, Nancy Leys, Gênese e evolução da ciência brasileira: Oswaldo Cruz e a política de investigação científica e médica. Rio de Janeiro: Artenova / Fundação Oswaldo Cruz, 1976. Em um artigo sobre a produção da professora aposentada de Columbia University, Simone Petraglia kropf e Gilberto Hochman atestam que o livro foi publicado em língua portuguesa no mesmo ano de publicação do original em inglês, com omissões de notas e da bibliografia original. Ver: KROPF, Simone Petraglia & HOCHMAN, Gilberto. From the Beginnings: Debates on the History of Science in Brazil. In: Hispanic American Historical Review. 91 (3), 2011. p. 391.
[10] CARVALHO, José Murilo de. A Escola de Minas de Ouro Preto: o peso da glória. Rio de Janeiro: FINEP/Cia Editora Nacional, 1978. Interessante observamos que 37 anos antes da fundação da Escola de Minas de Ouro Preto, fundada em 12 de outubro de 1876, foi criada a Escola de Farmácia de Ouro Preto, em 04 de abril de 1839. José Murilo de Carvalho optou por exaltar as “glorias” da Escola de Minas e nada falou sobre a Escola de Farmácia, a mais antiga instituição de ensino superior de Minas Gerais.
[11] Título original em inglês: Elite and state-building in imperial Brazil. No Brasil, a Tese de Doutorado de José Murilo de Carvalho foi publicada, incialmente, de forma separada em dois livros: A Construção da Ordem: A elite política imperial. Rio de Janeiro/Brasília: Ed. Campus/Ed. da Universidade de Brasília, 1980; Teatro de Sombras: A política imperial. São Paulo/Rio de Janeiro: Vértice/Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro. 1988.
[12] Segundo os pesquisadores Pirró e Longo e Derenusson, em 1965 foi ciado o FINEP – Fundo de Financiamento de Estudos e Projetos e Programas, “de fundo contábil e dirigido por um Junta Coordenadora, sua finalidade era prover recursos para financiar a elaboração de estudos de viabilidade de programas e propostas de investimentos.” Todavia, em 1967 foi criada a FINEP – Financiadora de estudos e Projetos, empresa do setor público, que sucedeu ao fundo [criado dos anos antes em 1965] assumindo seus direitos e obrigações, devendo ainda avaliar a viabilidade de projetos de investimento para o Ministério do Planejamento.” PIRRÓ e LONGO, Waldir; DERENUSSON, Maria Sylvia. FNDCT, 40 anos. In: Revista Brasileira de Inovação, Rio de Janeiro (RJ), 8 (2), julho/dezembro 2009. p.517. Para a relação entre a Finep e o BNDE, Ver: BERNARDINO JÚNIOR, Claudio. Inovações ou cópias? Gambiarras brasileiras no desenvolvimento tecnológico em informática (1975-1984). Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. pp.60-64.
[13] SCHWARTZMAN, Simon. Formação da comunidade científica no Brasil. São Paulo: FINEP/Cia. Editora Nacional, 1979. Em 2015, o livro teve a sua 4ª edição, e foi publicado com um outro título: Um espaço para a ciência e a formação da comunidade científica no Brasil. Dessa forma, a publicação em língua portuguesa passou a ter o mesmo título da obra em língua inglesa.
[14] EDLER, Flávio Coelho. A História das ciências e seus públicos. In: [Revista] Maracanã, n. 13, Dezembro de 2015, p. 29. <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/maracanan/article/view/20118> Consultado em 23/10/2019.
[15] SILVA, Márcia Regina Barros da. História e Historiografia das ciências latino-americanas: Revista Quipu (1984-2000) In: Revista Brasileira de História das Ciências. V. 7, 2014. p. 49. Disponível em: <https://rbhciencia.emnuvens.com.br/revista/article/view/231/183> Consultado em 28/04/2020.
[16] Aqui, Schwartzman apenas reproduz a ideia de “herança do século XVIII” forjada e divulgada por Fernando de Azevedo para justificar o atraso científico brasileiro.
[17] FREIRE, Diego José Fernandes. O passado da História: os historiadores e as historiadoras da Universidade de São Paulo e a historiografia brasileira na década de 1970. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Rio grande do Sul. Porto Alegre-RS, 2020.
[18] NEVES, Margarida. As vitrines do progresso. Rio de Janeiro: PUC-Rio/FINEP/CNPq, 1986.
[19] SCHWARCZ, Lilia Katri Moritz. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
[20] LOPES, Maria Margaret. O Brasil descobre a pesquisa científica: os museus e as ciências naturais no século XIX. Editora Hucitec, 1997.
[21] DANTES, Maria Amélia Mascarenhas. Espaços da Ciência no Brasil: 1800-1930.Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 2001.
[22] <http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4783109H0> Consultado em 13/12/2020.
[23] Aqui faço menção direta ao interessante caso de Joaquim Antonio Alves Ribeiro (1830-1875) que obtive o título de médico por Harvard( 1853), voltou ao Brasi (entenda-se Ceará) e teve suas atividades científicas totalmente desconsideradas por ser do Norte do Brasil (atual Nordeste), por ter feito ciência muitas vezes sem o subsidio do erário público e pela ciência norte americana só se tornar visível aos olhos do brasil e do mundo no final do século XIX e início do século XX. Ver: VASCONCELOS, Eduardo Henrique Barbosa de. A Ciência peculiar de Joaquim Antonio Alves Ribeiro: Ceará – Harvard – Ceará. Teresina – PI: Editora Cancioneiro, 2024. <https://alvesribeirocientista.com.br/>
[24] Segundo Crawford, Shinn & Sörlin a ciência transnacional é “definida como atividades envolvendo pessoas, equipamentos ou fundos de mais de um país”. No Original: defined as activities involving persons, equipment or funds from more than one country. Ver: CRAWFORD. Elisabeth; SHINN, Terry; SÖRLIN, Sverker (Edts). Denationalizing Science: The Contexts of International Scientific Practice. Kiuwer, Norwell, MA, 1993. p.4 (Sociology of the Sciences, vol. 16)
[25] BRITTO, Nara. Oswaldo Cruz: a construção de um mito na ciência brasileira. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1995. Apesar do título sugerir o contrário, a autora faz uma litura crítica lucida e profícua da do “mito” de Oswaldo Cruz.
[26] GUIMARÃES, Manoel Luiz Lima Salgado. Cultura histórica oitocentista: a constituição de uma memória disciplinar. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy. (Org.). História Cultural: experiências de pesquisa. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2003. p. 10.
[27] TURIN, Rodrigo. Uma nobre, difícil e útil empresa: o ethos do historiador oitocentista. In: História da Historiografia, Ouro Preto-MG v. 2, 2009. pp.79-80 Disponível em: <https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/4> Consultado em 07/01/2019.
[28] LOPES, Maria Margaret. As ciências Naturais no século XIX: já não tão nova visões historiográficas. In: ARAUJO, Valdei Lopes de., et al. A Dinâmica do Historicismo: revisitando a historiografia moderna. Belo Horizonte-MG: Argumentum. 2008. pp. 199-200.
[29] Idem.
[30] Idem.
[31] Sobre a pretensa universalidade e neutralidade da ciência, Ver: MARQUES. Ivan da Costa. Ontological Politics and Latin American Local Knowledges. In: MEDINA, Eden; MARQUES, Ivan da Costa; HOLMES, Christina. Beyond imported magic: essays on science, technology, and society in Latin America. Cambridge, MA: MIT Press, 2014. p. 87.
[32] Uma referência direta a obra literária que tece uma interessante crítica a burocracia estatal. Ver: JACOB, Dionisio. A Utopia Burocrática de Máximo Modesto. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
[33] Ver nota de rodapé n.37.
[34] VERGARA, Moema de Rezende. Resenha do livro Espaços da Ciências no Brasil. In: Revista da SBHC. Nº I/2003. p. 81.
[35] WEBER, Max [Maximilian Karl Emil Weber] O Estado Nacional e a Política Econômica. In: COHN, Gabriel (Org.). Max Weber: sociologia. São Paulo: Ática, 1986. p. 72.
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