Humberto Mauro

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Por FERNÃO PESSOA RAMOS*

Uma apresentação do cinema documental desenvolvido pelo cineasta brasileiro.

 

1.

O documentário brasileiro, do início do falado até o surgimento da geração cinemanovista, articula-se basicamente (embora não exclusivamente) em torno do Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE) e da figura de nosso principal diretor do final do período mudo, Humberto Mauro. Neste ensaio, buscaremos fornecer um panorama de sua obra documentária, pouco conhecida fora do Brasil e da América Latina. Mauro dirigiu filmes de ficção com muito sucesso no período mudo. Sua extensa obra de documentarista – que cobre cerca de trinta anos de sua carreira, entre 1936 e 1964 – encontra-se geralmente à sombra do breve sucesso no cinema de ficção. O objetivo deste texto é apresentá-lo como cineasta voltado à produção de documentários.

No início da década de 1930 Mauro já possui uma filmografia considerável. Entre 1926 e 1930 realiza, na cidade de Cataguases, interior do estado de Minas Gerais, quase um filme por ano, alguns deles com repercussão bastante favorável na imprensa do Rio de Janeiro: Na Primavera da Vida (1926); Tesouro Perdido (1927); Brasa Dormida (1928) e Sangue Mineiro (1930). Tendo iniciado sua carreira em Minas Gerais, no interior do Brasil, possui um contato próximo com o principal grupo de cinema no Brasil, que gravitava em torno da revista Cinearte e, mais tarde, do estúdio Cinédia, no Rio de Janeiro.

Em 1931, abandona definitivamente a segurança da pequena Cataguases, onde residia desde os 12 anos, e vai para o Rio de Janeiro para dirigir a ficção Lábios sem Beijos, primeiro longa da Cinédia, produtora fundada por Adhemar Gonzaga. No ano seguinte, em 1932, dirige Ganga Bruta, sonorizado parcialmente, considerado como um dos grandes clássicos do cinema brasileiro.

A chegada do som desmonta a produção cinematográfica brasileira, que demora cerca de vinte anos para articular-se novamente. Mauro atravessa uma profunda crise pessoal e profissional. Em 1933 é despedido da Cinédia e fica desempregado, tendo sete filhos para sustentar. Com a produção de cinema parada no Brasil, passa por período difícil. Muda de casa e tem que vender os móveis para levantar recursos.

No final de 1934, início de 35, o diretor volta a filmar com Carmen Santos, que o convida para trabalhar na produtora que estava criando, a Brasil Vita Filmes. Entre 1935 e 1936, dirige os longas de ficção Favela dos Meus Amores e Cidade Mulher (ambos perdidos). Também dessa época são seus primeiros documentários (se excetuarmos Sinfonia de Cataguases, sobre a cidade de sua infância e juventude, realizado em 1929), dirigindo um média e dois curtas para a produtora Carmen Santos: As Sete Maravilhas do Rio (média, mudo), Pedro II (curta, sonoro) e General Osório (curta, sonoro). Ainda em 1934, dirige o média Feira de Amostras do Rio de Janeiro. Também do período anterior ao INCE podemos mencionar A Voz do Carnaval, de 1933, em co-direção de Adhemar Gonzaga, filme com diversas tomadas de caráter documentário, em exterior, mostrando famosos cantores do rádio e retratando o carnaval de anos anteriores.

Tendo este quadro ao fundo, podemos entender melhor a adesão entusiasmada de Humberto Mauro ao INCE. O Instituto Nacional do Cinema Educativo foi criado em 1936 (embora seu funcionamento seja formalizado somente através da Lei n. 378, de 13 de janeiro de 1937) a partir de uma proposta de Roquette-Pinto para Gustavo Capanema, então ministro da Educação e Saúde. Intelectual de destaque no cenário brasileiro da época, responsável pela introdução do rádio no país, Roquette já mantinha contatos anteriores com Mauro.

Com a criação do instituto, o convite a Mauro ocorre no primeiro momento. O encontro entre ambos tem uma versão romantizada, incorporada, dentro de seu estilo, pelo jornalista Ruy Castro: “Um vendedor de eletrodoméstico foi procurar Roquette-Pinto no Museu Nacional tentando empurrar-lhe alguns. Chamava-se Humberto Mauro, tinha 39 anos. Era um gênio intuitivo que nas horas vagas tinha de se virar vendendo enceradeiras e aspiradores de pó. Roquette não lhe comprou nenhum, mas comprou o próprio Mauro com a proposta: você vai trabalhar comigo, vamos fazer o cinema educativo no Brasil”.[i]

Essa versão fantasista tem um fundo de realidade, decorrente da difícil situação financeira de Mauro na época, que o teria realmente obrigado a fazer pequenos “bicos” de vendedor para sobreviver. Um levantamento mais realista continua apontando o Museu Nacional como vínculo entre ambos, mas localiza a aproximação das duas figuras em torno do curta Ameba, realizado em 1932 pela Cinédia (e provavelmente dirigido por Mauro) para o Museu Nacional, exibido em sua estreia juntamente com Ganga Bruta, em sessão que contou com palestra do diretor do museu na época, Roquette-Pinto.[ii]

É também dado que o curta Taxidermia, apontado em algumas filmografias como primeira obra do INCE, aparentemente já estava pronto em 1935, com produção da Brasil Vox Film. O curta é dirigido conjuntamente por Humberto Mauro e Paulo Roquette- Pinto, filho do antropólogo. Como outro ponto de confluência, podemos também destacar o interesse de Roquette-Pinto, durante sua gestão no Museu Nacional, pelo cinema educativo. O museu possuía inclusive uma filmoteca, emprestando os filmes científicos que importava a escolas e outros interessados.

A ideologia dominante na produção de Mauro no INCE evolui no decorrer de seus quase 30 anos de existência. Podemos, no entanto, sentir, principalmente em sua primeira década de existência (Roquette-Pinto permanece na presidência do órgão de 1936 até 1947), a presença dos ideais e da visão de mundo de seu mentor intelectual. Roquette faz a ponte entre o INCE e o Estado getulista, em particular junto ao todo-poderoso Ministério da Educação e Saúde de Gustavo Capanema, organismo que percorre impune o Estado brasileiro de 1934 a 1945.[iii] Sendo um departamento administrativo do ministério de Capanema, o INCE é parte do espaço político de Roquette dentro desse ministério.

É Roquette-Pinto que possui peso suficiente para barrar as tentativas de incorporação que o INCE sofre por parte de Lourival Fontes, então todo-poderoso diretor do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão-chave do Estado Novo getulista, ligado diretamente ao gabinete do presidente, e responsável pela propaganda do regime. Apesar das tentativas, o DIP não consegue absorver o espaço do cinema documentário no Brasil, que mantém sua produção em torno do INCE.[iv] Ao contrário de seus congêneres italianos e alemães, e um pouco na linha do documentarismo inglês, o INCE possuiu, durante o Estado Novo, um espaço de manobra bastante razoável, desvinculado das necessidades mais estreitas da propaganda política.[v]

O ideário de Roquette-Pinto, que respiramos nos documentários do INCE, marca a obra de Humberto Mauro principalmente no período 1936-47, quando o diretor trabalha sob as ordens diretas do antropólogo. Mauro fica no INCE desde o início de suas atividades em 1936, até sua transformação, em 1966, em Departamento do Filme Cultural, do recém-criado Instituto Nacional do Cinema (INC). Sua contratação, como “técnico cinematográfico”, é solicitada em 28 de março de 1936, por ofício de Roquette- Pinto a Gustavo Capanema (que dá sua aprovação final).[vi] Mauro é, concretamente, o responsável autoral pela produção do INCE como um todo, durante o longo período de existência do instituto.

Se, a partir do final da guerra, em 1945, o lirismo mauriano encontra um campo maior para se expandir, podemos sentir a “mão” cinematográfica do autor desde os primeiros documentários. Mauro constrói no INCE uma equipe homogênea, composta por colaboradores próximos e familiares, feita na medida para o exercício de sua arte. Seu principal colaborador, nos primeiros anos do INCE, é Manoel Ribeiro, que fotografa e monta diversos filmes. A partir do início dos anos 40, seu filho, José Mauro, passa também a fotografar e montar chegando, posteriormente, a dirigir.

Além destes, a equipe contava com o técnico de laboratório Erich Walder, o assistente Matheus Collaço e Beatriz Roquette-Pinto Bojunga, que, além de secretária do Ince, possui participação nos curtas como figurinista e cenógrafa. Também Ruy Guedes de Mello e Oscar Motta Vianna da Silva fotografam e, ocasionalmente, assinam a direção. O esquema de produção no Ince, durante a gestão de Roquette-Pinto (até 1947), envolvia a escolha do tema em função de demandas externas, ou do próprio ministério. A partir da escolha, o documentário era preparado seguindo um esquema de consultas e tratamento de temas junto a personalidades e expoentes intelectuais do Estado Novo getulista.

Os consultores, muitas vezes em um esquema informal, foram, entre outros, Affonso de Taunay (Museu Paulista), Agnaldo Alves Filho (Instituto Pasteur), Alyrio de Mattos (Observatório Nacional), Tasso da Silveira (Casa da Moeda), Vital Brasil, Mauricio Gudin, Carlos Chagas Filho, Francisco Venâncio Filho, Heitor Villa-Lobos. Os primeiros documentários dirigidos por Mauro datam do ano de fundação do INCE (1936), estendendo-se até 1964 (quando dirige A Velha a Fiar, seu último filme no Ince)[vii]. Nesse período, de 28 anos, dirigiu e coordenou a produção de 358 filmes documentários, de curta e média metragem.[viii]

 

2.

Podemos notar, nos documentários do INCE (principalmente durante o Estado Novo), a essência do pensamento de cunho progressista da época, tendo ao fundo a forte personalidade de Roquette-Pinto. Esse lado progressista deve ser pensado dentro do contexto de seu tempo e localizado na contraposição que estabelece à visão racial evolucionista (também chamada de darwinismo social) que marca de forma dominante o pensamento brasileiro na segunda metade do século XIX.[ix] No primeiro terço do século XX estamos ideologicamente imersos nesse contexto herdado do século anterior, mesmo como forma de negação. Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, obra-chave dessas primeiras décadas do século XX (publicada em sua primeira edição em 1933), nada mais é do que uma tentativa, também bastante progressista, de reavaliação do quadro das teorias raciais dominantes, valorando positivamente a cultura que surge do “cadinho das raças”.

Em 1929 Roquette-Pinto é o presidente do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, onde defende a tese progressista de que “o problema brasileiro seria uma questão de higiene, não de raça”.[x] A eugenia é a teoria de uma suposta ciência que, como ideologia, percorre com intensidade os principais países do Ocidente no início do século, propondo estratégias para o melhoramento das raças, geralmente a partir de políticas que pregavam a esterilização, o extermínio de incapazes e proibiam casamentos inter-raciais. No Brasil, em função do forte espaço que as teorias raciais ocupam no século XIX, as repercussões do eugenismo são intensas. A tendência conservadora (que defende a “teoria degeneracionista da mestiçagem”) é majoritária no Congresso, contrariando o pensamento de Roquette, mais influenciado pelo antropólogo culturalista norte-americano Franz Boas.

O fato que nos interessa aqui, e que consideramos como marcante para a compreensão da produção do INCE, é localizarmos o principal ideólogo de sua produção, à frente de um Congresso de Eugenia, defendendo teses progressistas para o aprimoramento da raça brasileira, poucos anos antes do início da produção dos documentários que nos propomos abordar. O pensamento de Roquette-Pinto e a ideologia dominante que veiculam os documentários do INCE durante o período do Estado Novo (até 1945) possuem tinturas evidentes dessa origem. Retratam, mesmo que não explicitamente, esse movimento para fora das teorias raciais que adota a intelectualidade brasileira mais influente da época.

Nos editoriais da revista Cinearte, que exercem forte influência em Humberto Mauro através da figura “paterna” de Adhemar Gonzaga[xi], encontramos traços evidentes do contexto ideológico que busca pensar e valorizar o Brasil ocultando os traços mestiços de seu povo. Cinearte ainda consegue manter viva em seus editoriais a tradição do pensamento racial conservador que Roquette-Pinto, mais em sintonia com seu tempo, já havia abandonado. A ruptura com esse horizonte, nos anos 1920 e 1930, passa por Gilberto Freyre e Euclides da Cunha, indo de Rondon a Paulo Prado, de Mário de Andrade a Sérgio Buarque de Holanda, tentando mostrar a dimensão de outros fatores, que não o racial, na constituição do espírito do povo brasileiro; ou valorando a cultura que emerge deste elemento singularmente nacional que é um povo mestiço.

Não conseguiremos compreender o contexto ideológico dentro do qual a produção do primeiro INCE se insere se não tivermos em evidência a força excepcional que, no início do século XX, possuem no Brasil as teorias de cunho racial que procuram mostrar a degenerescência inata do mestiço. E o que significou, para o novo pensamento sobre a brasilidade, seu abandono nos anos 1930. A forte afirmação nacionalista que acompanha o regime autoritário getulista serve como base para este pensamento do Brasil que, para além das raças, mergulha no horizonte cultural.

O lado autoritário e exaltativo da unanimidade nacional, analisado adiante, não entra em contradição com esse fator, e permite sua vigência dentro do aparelho institucional do Estado (Villa-Lobos e Humberto Mauro casam-se perfeitamente, como podemos ver no longa-documentário O Descobrimento do Brasil – 1937). No caso de Roquette-Pinto, a transição do contexto eugenista faz-se através de um discurso que irá valorar não só a dimensão multirracial do povo brasileiro, mas também as estratégias de uma política pública que permita que a “raça” multirracial realize plenamente suas potencialidades. Nessa estratégia, o papel da educação e do saneamento higienista (a ser obtido por intermédio da “educação”) é preponderante. A questão do “cinema educativo”, e particularmente a constituição do Ince, é então pensada tendo como pano de fundo essa missão.

O objetivo educativo da produção documentária do INCE tem um caráter paternalista, pretendendo ensinar ao povo como lidar com suas próprias tradições culturais. O recorte sanitarista justifica e enquadra um saber inquestionável sobre o que é próprio do outro (o povo). A cultura e as tradições populares/indígenas não são analisadas em si mesmas, mas como motivo para o exercício classificatório que estampa o saber do narrador (a arte marajoara, o carro de boi, a fabricação da rapadura, etc.), ou um motivo a ser aproveitado na prática higienista (fossas sanitárias, poços artesianos, conservação de alimentos, etc.).

A crença positivista nos poderes da metodologia científica, em oposição às crendices populares, complementa o motivo higienista. A raça mulata, cafuza, cabocla, não só está longe de ser inferior, porque mestiça, mas só pode ter a evidência de sua degenerescência racial identificada a questões de saúde, decorrentes da ausência de uma política higienista (o amarelo “Jeca Tatu” de Lobato). O cinema educativo é uma ferramenta essencial para essa política de aprimoramento, se não racial (esta noção eugenista não é mais usada), mas do “povo” brasileiro em sua generalidade.

A fundação do INCE dá-se em uma ambiência ideológica marcada por esse contexto. Sua própria localização institucional em um ministério que, além da Educação, é também da saúde, dá a exata dimensão desses fatores. A educação para a higiene e o saneamento, a exibição orgulhosa do poder/saber classificatório da ciência positiva em ação, pode ser encontrada em documentários como Lição Prática de Taxidermia I e II (1936); O Céu do Brasil na Capital da República (1936); Ar Atmosférico (1936); Preparação da Vacina Contra a Raiva (1936); Eletrificação da Estrada de Ferro Central do Brasil (1937); Luta Contra o Ofidismo (1937); Pedra Fundamental do Ministério da Educação e Saúde (1937); Vitória Régia (1937); Febre Amarela – Preparação da Vacina pela Fundação Rockefeller (1938); Prevenção da Tuberculose pela Vacina (1939), Instituto Oswaldo Cruz (1939); Estudo das Grandes Endemias (1939); Leishmaniose Visceral Americana (1939); Tripanossomiase Americana (1939); O Puraquê (1939); Miocárdio em Cultura (1939); Combate à Lepra no Brasil (1945); Lagoa Santa (1940); Serviço de Febre Amarela (1945). A série “Educação e Higiene Rural” (Captação de Água; Fossa Seca; Silo Trincheira; Preparo e Conservação de Alimentos), feita, em 1955, em co-produção com os Estados Unidos, através do United States Agency for International Development integrando a Campanha Nacional de Educação Rural[xii], possui traços que a relacionam com a produção dos anos 30-40, embora o caráter tardio lhe forneça particularidades.[xiii]

Ao recorte eugênico-higienista sobrepõe-se outro, decorrente do caráter oficial dessa produção, desenvolvida dentro de um órgão de Estado funcionando em um regime autoritário (o período do Estado Novo getulista – 1937-45 – corresponde basicamente à permanência de Roquette-Pinto à frente do instituto). O caráter exaltativo da locução fora-de-campo e sua adjetivação parnasiana estão em sintonia com a retórica grandiloquente da época, que depois será satirizada, já nos anos 1960, por obras próximas ao movimento tropicalista ou pelo cinema marginal.[xiv] Essa retórica, que desconhece a ruptura e o distanciamento do modernismo de 22, impregna toda a produção do INCE até o advento dos filmes da série Brasilianas, já no final dos anos 1940.

Em O Cinema Como “Agitador de Almas” – uma Cena do Estado Novo[xv], Almeida estabelece uma interessante relação entre a produção do Ince e a filosofia positivista, a partir de estratégias para estabelecer “‘modelos de perfeição’ capazes de nortear a evolução do povo brasileiro”[xvi], e promover “mitos capazes de gerar sentimentos altruístas”[xvii]. Na proximidade de Roquette-Pinto com o ideário positivista encontramos o motor para a elaboração das figuras históricas, tipificadas na perfeição, que nos apresentam os documentários históricos do instituto. A questão do nacional e da tipificação da singularidade da brasilidade, que percorre a produção do instituto como um todo, casa à perfeição com o idealismo personalista. O tom grandiloquente serve como cobertura a essa estratégia de tipificação idealista, dando a coloração desejada a seus efeitos.

Para uma época como a nossa, marcada pela ideologia hedonista da contracultura, conforme surge nos anos 1960, o ideário altruísta e exaltativo das figuras históricas do Ince surge deslocado até o ponto da comicidade. Esse deslocamento, na realidade, vem compor um dos veios centrais do surgimento da sensibilidade tropicalista, momento em que o choque entre os dois contextos ideológicos (o altruísmo grandiloquente, de um lado, e o hedonismo “porra-louca”, de outro), por sua novidade, abre uma fenda para estratégias de representação atraídas pela decalagem da ironia e da alegoria.[xviii]

A dimensão exaltativa/idealista dos filmes do INCE aparece em toda sua evidência nos documentários históricos desse primeiro período, como Os Inconfidentes, 1936; Dia da Pátria, 1936; Dia da Bandeira, 1938; Bandeirantes, 1940; Um Apólogo – Machado de Assis, 1939; Carlos Gomes, o Guarani, 1942; O Despertar da Redentora, 1942; Invocação dos Aimorés, 1942; Barão de Rio Branco, 1944; Euclides da Cunha, 1944; Leopoldo Miguez (1946); Martins Pena – Judas no Sábado de Aleluia (1947); Alberto Nepomuceno, 1948; como também em documentários realizados fora da produção do INCE, mas com direção de Mauro, como o docudrama O Descobrimento do Brasil (1937) e a ficção Argila (1940).

O discurso exaltativo do período Roquette-Pinto vai de encontro às expectativas do Estado autoritário getulista, refletidas na relação entre o caráter idealizado das personalidades históricas (princesa Isabel, Raposo Tavares, Fernão Dias, Pedro Álvares Cabral, Tiradentes, Carlos Gomes) e a unanimidade nacional requerida pelo regime presente. A ênfase na concordância unânime com a perfeita compleição dos heróis passados registra a anomalia da dissidência presente. A exaltação e a grandiloquência cumprem um papel de dupla prevenção da atitude crítica. O discurso da unidade é feito a partir da negação dos regionalismos (a queima das bandeiras dos estados, filmada pelo INCE, é um exemplo) e das diferenças raciais (elementos colocados no mesmo plano). Surpreendentemente, o eco das teorias raciais evolutivas que cercam a emergência do nazismo na Alemanha não encontra aqui repercussão de magnitude.

Inicialmente, esse aspecto intriga, principalmente se levarmos em conta a intensidade, desproporcional para a época, que as teorias raciais evolutivas tiveram no Brasil do século XIX, cumprindo um pouco o papel de mais uma “ideia fora do lugar”. Sua ausência nos anos 1930, como aspecto ideológico preponderante, talvez possa ser relacionada à intensidade de sua incidência precoce e aos debates que, nessa época, cercam sua superação. Ao se casar com o autoritarismo do Estado Novo, a questão racial caminha para a exaltação do “povo” mestiço e sua cultura, como forma de, através da lente pedagógica/sanitarista, compor a unanimidade requerida. Essa lente vem afirmar o caráter autoritário que está embutido na superação das teorias raciais, através do realce do saber científico positivo (na voz off que detalha os progressos da ciência brasileira), na importância da nova técnica cinematográfica para o exercício pedagógico (pela construção do saber na “nova” educação) e na importância da lição sanitarista para a constituição de uma nova raça sadia. Na produção documentária do INCE uma relação de poder, de caráter paternalista, se estabelece com essa alteridade que é o povo mestiço e sua cultura. Embora a presença de sua imagem (principalmente na série Brasilianas) seja novidade no cenário do cinema brasileiro, a cultura do povo mestiço serve com pano de fundo para a afirmação de um saber sobre ele que a enunciação narrativa embute.

A superação do evolucionismo racial (que reivindicava a superioridade da raça pura ariana), pelas teorias culturalistas que veem de modo positivo a composição mestiça do povo brasileiro, pode ser detectada na relação conflituosa estabelecida entre o historiador Affonso Taunay e Roquette-Pinto, no processo de elaboração do média-metragem Bandeirantes, de 1940. Affonso Taunay aparece como consultor do documentário de Mauro, o texto e a narração são de Roquette-Pinto, que também assina a co-direção[xix]. O projeto antigo de ambos (que parecem manter boas relações pessoais apesar das divergências) de fazer um filme sobre a “epopeia paulista” recebe um tratamento diferenciado dentro do Ince, com um padrão de produção superior à média. O documento-chave para mapearmos essa relação é o discurso de recepção a Affonso Taunay na Academia Brasileira de Letras, proferido por Roquette-Pinto[xx], em que fica clara a relação crítica mantida pelo antropólogo com o historiador paulista.

Taunay encabeça o grupo de autores, ainda vinculados ao darwinismo social evolucionista do século XIX, que pregam (e apostam em) um progressivo embranquecimento da “raça” brasileira como forma de aprimorar suas potencialidades. É nítida a crítica de Roquette- Pinto à obra de Taunay, na relação que esta estabelece entre o tipo heroico/idealizado do paulista bandeirante e sua conformação ariana. Apesar de aprovar a tipificação heroica do bandeirante, Roquette vai negar que esse traço seja devido ao embranquecimento decorrente do isolamento do planalto paulista.

Diz o antropólogo no discurso de boas-vindas à Academia: “não sei si fostes sempre bem inspirado consagrando, no primeiro volume da vossa Historia Geral das Bandeiras, um capítulo ao que chamastes aryanisação progressiva dos paulistas porquanto a antropologia ensina que o sangue ariano é uma utopia”[xxi]. Roquette vai apontar como traço diferenciador da “epopeia” paulista na civilização tupiniquim não o progressivo embranquecimento mas a “disciplina”, “maior força dos paulistas”, função de uma herança não-racial, mas cultural, determinada pela presença dos jesuítas em Piratinga. Acentuando ainda mais a postura crítica às ideias raciais de Taunay, Roquette- Pinto afirma que “o bandeirismo, como varação de território e preador de índios, é anterior à chegada dos colonizadores”[xxii], argumentando que os próprios tupis faziam bandeiras para ganhar territórios e capturar escravos, e que teriam sido as índias tupis que inocularam nos “rapazes de Piratinga” “o germe da curiosidade que achou ótimo terreno no substrato sonhador da alma ibérica”[xxiii].

No documentário Bandeirantes, notamos essa preocupação em enfatizar que a origem mestiça está na raiz dos bravos bandeirantes. Que o caráter altruísta e desbravador dos paulistas tem sua origem no sangue caboclo. Na primeira, sequência do filme, uma voz em off nos descreve uma pintura como sendo “João Ramalho, patriarca principal dos Bandeirantes, com um de seus filhos o pequeno mameluco, neto do cacique Tibiriça, pai de Bartira, mulher de Ramalho”. Roquette-Pinto busca vincular o aspecto positivo do lado empreendedor dos bandeirantes à raça indígena, valorada negativamente pelo “arianismo” de Taunay.

O ponto em questão está em provar que uma “raça”, supostamente inferior como a indígena, pode oferecer contribuição significativa para o compósito idealista na configuração do cadinho racial do “tipo” bandeirante. O desafio é mostrar que a valoração idealista da personalidade (coragem, destemor, valentia, nobreza, brio) pode ser aplicada também aos índios, aos caboclos, aos cafuzos, aos mulatos e não somente aos arianos. Em outras palavras: o tipo bandeirante altruísta pode ser construído em uma medida que permita a sintonia grandiloquente, e justifique a tipificação, sem que para isso seja necessário negar ou desvalorizar sua composição mestiça.

 

3.

Após delinearmos o contexto ideológico no qual a produção documentária de Humberto Mauro no INCE se insere, vejamos se é possível identificarmos a dimensão autoral desse trabalho, desenvolvido dentro de uma instituição que tem sua origem em um Estado autoritário. Em outras palavras, como definirmos o “autor” Mauro e em que medida esse autor interage e flexiona o horizonte ideológico da época, expresso em sua dimensão institucional. Essa interação torna-se instigante não só pelo longo período de tempo no qual se desenvolve a produção fílmica (30 anos), mas também por relacionar-se a um cineasta de personalidade, que chega ao organismo estatal produtor de cinema com uma carreira cinematográfica madura e de sucesso.

A relação pessoal entre Humberto Mauro e Roquette-Pinto, e a visão deste como sendo um segundo “pai” intelectual na formação do cineasta (o primeiro, de acordo com Paulo Emílio, teria sido Adhemar Gonzaga[xxiv], dá singularidade a essa dimensão autoral. No casamento Roquette/Mauro podemos notar a personalidade de Mauro um pouco oprimida pela carga ideológica de um Estado autoritário e pela presença física de Roquette, enquanto chefe, no instituto em que cotidianamente trabalha. É tentadora a tese de que é mais “autêntica” a produção documentária de Mauro posterior à saída de Roquette-Pinto do INCE e o fim do Estado Novo.

Na realidade, talvez possamos esboçar uma linha de continuidade que acompanha a evolução dos tempos e a “roda” da história. Prova da conformação do estilo Mauro ao universo ideológico que se respira nos curtas do INCE é a realização de um longa-metragem de ficção com sua direção (Argila, 1940), e produção de Carmen Santos/Brasil Vita Filmes, impregnado pelo ideário do instituto. Na realidade, esse é o universo que interessa a Mauro na época e em relação ao qual se identifica. Podemos também verificar esse ponto de gravidade em suas palestras no rádio, realizadas entre 1943 e 1944[xxv].

Humberto Mauro, no entanto, evolui com seu tempo. No pós-guerra, o momento político e ideológico é outro, e a produção cinematográfica no Brasil agora passa ao largo do aparelho do Estado. A presença institucional do cinema documentário (seja na forma de cinejornais ou como “cinema educativo”) reveste-se de importância marginal, posição que o INCE estava longe de ocupar nos primeiros anos de sua existência, quando foi palco de acirradas disputas políticas. A própria tematização do cinema a partir do eixo educativo desaparece do horizonte.

Com o surgimento da televisão e a afirmação de outros meios de comunicação, o cinema perde sua áurea como veículo privilegiado para a difusão ideológica junto às camadas menos escolarizadas da população. Nos anos 1950, encontramos o agora “velho Mauro”, acomodado em sua sala de montagem, com um pé em sua fazenda de Minas Gerais, e com espaço para dar vazão à sua veia lírica. O motivo institucional educativo do instituto, onde ainda trabalha, é apenas um pano de fundo. É nítido também o recuo do tom grandiloquente, apesar de sua presença ocasional. A corda saudosista, o lirismo melancólico, parece dar o tom nos filmes da série Brasilianas. A missão higienista ainda permanece como ideologia, mas carregada pelo lamento, pelo tom triste na visão do universo rural da cultura que se extingue. Como nos anos 1940, com Argila, encontramos também aqui a sintonia entre a produção de Humberto Mauro fora do INCE (o longa de ficção O Canto da Saudade, 1950) e os documentários mais bem cuidados do instituto.

Humberto Mauro, na realidade, deixa para trás o tom grandiloquente/altruísta e a fascinação cientificista, para se afirmar, sob o peso dos anos e da longa carreira, em um lirismo saudosista que tem no horizonte os costumes e tradições das Minas Gerais de sua infância. Podemos sentir essa postura autoral na série Brasilianas, formada pelos curtas Canções Populares: Chuá, Chuá e Casinha Pequenina (Brasilianas no 1, 1945); Canções Populares: Azulão e Pinhal (Brasilianas no 2, 1948); Aboios e Cantigas (Brasilianas no 3, 1954); Engenhos e Usinas (Brasilianas no 4, 1955); Cantos de Trabalho (Brasilianas no 5, 1955); Meus Oito Anos (Brasilianas no 6, 1956) e Manhã na Roça (Brasilianas no 7, 1956).

A preocupação com as tradições e costumes de um Brasil rural em desaparição é abordada em tom melancólico, onde o testemunho das canções ocupa um lugar central. A temática da saudade e da desilusão, privilegiada na obra de Mauro como um todo, encontra aqui o meio para sua expansão plena. A representação da cultura popular (os cantos de trabalho) desperta uma atenção nova do diretor. O rigor dos enquadramentos maurianos tem nesses curtas um momento alto, demonstrando por que é considerado um dos diretores de estilo mais forte no cinema latino-americano. Mauro não se esforça para obter enquadramentos e imagens geniais (no gênero Figuerôa/Ruy Santos/Peixoto) mas elas parecem se compor naturalmente, mostrando a maturidade de um estilo.

O rigor das formas surge como a simplicidade da cultura que retrata. Também podemos notar o mesmo estilo no documentário Carro de Bois (1945), elaborado dentro de um tom de lamento pela extinção desse meio de transporte rural. É significativo que Humberto Mauro retorne ao tema do carro de bois – e à metáfora de que o ruído de suas rodas é um canto pungente pelo abandono das tradições rurais – em seu último filme (e primeiro em cores), Carro de Bois, com produção de 1974. Existe, entre ambos, uma evolução na temática. No primeiro ainda predomina o tom classificatório, dissecador, com o carro de boi sendo detalhadamente exposto e nomeado em suas partes constitutivas pela narrativa. O tom educativo está presente.

No segundo, a questão da morte e da destruição surge em realce. A narrativa se detém sobre uma série de carros de boi despedaçados, irrecuperáveis, que surgem como cadáveres, ossadas, apenas “um melancólico espectro da valentia de outrora”. É também esse universo saudosista da velha Minas que dá o tom na série “mineira”, realizada já no apagar das luzes de sua carreira no Ince: Sabará (1956); Cidade de Belo Horizonte (1957); Congonhas do Campo (1957); São João del Rei (1958); Diamantina (1958); Cidade de Mariana (1959); Ouro Preto (1959).

A ponte entre o lirismo mauriano e o contexto ideológico do INCE que viemos traçando pode ser pensada em uma totalidade orgânica, dividida em dois polos: o polo preservacionista/educativo e o polo classificatório/culturalista. É nesse ponto que enxergamos a unidade, dentro da evolução histórica, da obra documentária de Humberto Mauro. De um lado, a força crescente do lirismo saudosista e a presença cada vez mais intensa da representação da cultura popular, particularmente aquela rural em processo de desaparecimento. De outro, a herança do complexo eugênico-higienista, definido atrás a partir do pensamento de Roquette-Pinto, manifesto através de um discurso cientificista. A representação da cultura popular em Brasilianas surge na confluência dessa evolução, tencionada duplamente pelo lamento dos cantos em extinção, e, de outro, pela missão educativa/ classificatória, de cunho culturalista, que vem valorizar o que pode ser mostrado, pois merece ser embalsamado.

Na série “Campanha Nacional Educação Rural” – Higiene Rural – Fossa Seca (1954); A Captação da Água (1954); Higiene Doméstica (1955), Silo Trincheira (1955); Preparo e Conservação de Alimentos (1955); Construções Rurais (1956) e também em Poços Rurais (1959), o polo preservacionista/educativo tem no horizonte o campo higienista dos anos 1930. Trata-se de recuperar (e portanto preservar/classificar) costumes populares que possam ser alterados para ter função no projeto de educação higienista da população. O campo classificatório/culturalista surge como o outro lado da moeda, comprovando a primeira missão do cinema educativo, que é dar estatuto científico (portanto sistêmico) ao que deve ser preserva do. A cultura popular pode vir a compor este universo (como comprova a “cientificidade” de suas práticas higiênicas intuitivas), devendo portanto ser preservada. Preenchidos esses pré-requisitos está apta para compor sua missão educativa. Essa medida justifica a própria narrativa, o próprio enunciar, que tem como objetivo a representação/preservação dessa cultura.

O veio “culturalista” (de exaltação do folclore e da cultura brasileira) interage então com o viés “classificatório”, através da presença de um discurso de sistematização que pouco se distingue daquele presente nos curtas científicos. O folclore e a tradição recebendo a chancela do método científico podem ser veiculados dentro do rótulo “educativo” e promover a emancipação das camadas (em um primeiro momento, das “raças”) menos desenvolvidas da população. A novidade, na versão anos 1950 desse ideário, é o fundo saudoso do universo rural em desaparição, que acompanha a representação dos atores sociais. As certezas do tom grandiloquente deslocam-se agora para um espaço marginal.

O polo “classificatório” nem sempre vem acompanhado da fé culturalista, embora seja nesses momentos que sentimos respirar o Mauro mais profundamente autoral. Talvez seja o caso de definirmos igualmente um outro polo classificatório/ cientificista. Nos documentários “científicos” é nítida a influência da crença positivista nos poderes da ciência, poderes estes exibidos com orgulho e comprovados em seu funcionamento prático (o quesito higienista é um ótimo atestado de eficiência). A estruturação de campos do saber, como a medicina, a biologia, a física, a química, e também a história, aparece como parte da imponência do edifício chamado “ciência”.

Podemos localizar, na produção do INCE, curtas de cunho estritamente científicos em que se respira essa admiração pelas perspectivas abertas do saber científico. Há um certo deslumbre pela “atração” câmera[xxvi] e suas potencialidades, capazes de mostrar um universo desconhecido, mas existente, que está ou esteve no contexto existencial da tomada. A visão do mundo microscópico, do extremo primeiro plano, a visão do tempo em câmera lenta, ou do movimento em retrocesso, exercem um fascínio quase infantil nos primeiros anos do Ince. Respira-se o deslumbre com as potencialidades revelatórias da câmera, próprio aos teóricos franceses que pensaram o cinema nos anos 20, em particular Jean Epstein[xxvii], herdadas pelo documentarismo científico de Jean Painlevé.

Em suas palestras radiofônicas Mauro declara-se explicitamente admirador de Painlevé e de sua obra, buscando a poesia do cinema impressionista francês na composição microscópica, acelerada, ou em câmera lenta, da matéria. O aspecto revelatório da câmera afirma-se em sua potencialidade de transfigurar o referente, mantendo a identidade ontológica com o universo designado. Uma vez revelado o novo universo, o polo classificatório cientificista surge em sua dimensão mais evidente. A narrativa documentária serve então como revelação/ comprovação imagética de temas preparados por cientistas do campo biológico ou das ciências exatas.

Deste panorama, desprende-se uma produção documentária ampla que traz dentro de si, nos quase trinta anos de sua evolução, as contradições renovadas de seu tempo. Deve-se destacar a extensão temporal e a continuidade dessa filmografia. Trata-se de um caso único de cineasta que, com sucesso já adquirido e reconhecimento no campo da ficção, resolve deslocar-se de modo definitivo para o documentário. Chega com um conhecimento amplo da técnica cinematográfica e a aplica com densidade na construção de um estilo. Não é demais repetir que devemos a Mauro, e à equipe que coordenava, a composição especificamente cinematográfica, dentro do gênero documentário, dos temas abordados no Ince. São os vínculos com uma instituição estatal que permitem que se obtenha uma continuidade e uma quantidade de filmes raras no campo do cinema não-ficcional. E são esses mesmos vínculos que, em sua interação ideológica e estilística, constituem a complexidade da dimensão autoral dessa obra.

*Fernão Pessoa Ramos, sociólogo, é professor titular do Instituto de Artes da UNICAMP. Autor, entre outros livros, de Mas afinal… o que é mesmo documentário? (Senac).

Publicado originalmente em: Paulo Paranaguá. Cine Documental en América Latina. Madrid, Catedra, 2003.

 

Notas


[i] Ruy Castro, “O Homem Multidão”, in Revista Especial dos 60 anos da Rádio MEC, p. 16. Citado por Ana Carolina Maciel, “Figura e Gestos” de Humberto Mauro: uma Edição Comentada, dissertação de mestrado, Campinas, Instituto de Artes da Unicamp, 2000.

[ii] Ver Sheila Schvarzman, Humberto Mauro e as Imagens do Brasil, tese de doutorado, Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, 2000.

[iii] Simon Schwartzman, Tempos de Capanema, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984.

[iv] Essa divisão não nos deve levar a acreditar que a produção do DIP reduz-se à propaganda em cinejornais. A própria fronteira entre documentário e propaganda é algo que deve ser tematizado com cuidado. Podemos localizar no DIP a presença e a atuação de Alexandre Wulfes, importante cinegrafista voltado ao documentário, e de documentários dirigidos por Ruy Santos, um dos maiores fotógrafos do cinema brasileiro. Dentro do estado getulista, outro núcleo de produção documentária pode ser localizado no Serviço de Informação do Ministério da Agricultura, onde filmaram Lafayette Cunha e Pedro Lima. Sobre o assunto (e particularmente anos 30), ver panorama histórico do documentário brasileiro traçado nos verbetes “Documentário Mudo” e “Documentário Sonoro” em Fernão Ramos; Luiz Felipe Miranda, Enciclopédia do Cinema Brasileiro, São Paulo, Editora do Senac, 2000.

[v] Sobre o período, e particularmente o DIP, ver: José Inácio de Melo Souza, A Ação e o Imaginário de uma Ditadura: Conteúdo, Coerção e Propaganda nos Meios de Comunicação Durante o Estado Novo, dissertação de mestrado, São Paulo, Escola de Comunicações e Artes da USP, 1990; e José Inácio de Melo Souza, O Estado Contra os Meios de Comunicação (1889-1945), São Paulo, Annablume, 2003. Em Carlos Roberto Souza, Catálogo de Filmes Produzido pelo Ince (Rio de Janeiro, Fundação do Cinema Brasileiro/ Minc, 1990), é destacado o fato de que a criação do Ince foi “acompanhada por contatos pessoais e troca de correspondência de brasileiros com organizações congêneres estrangeiras, sobretudo o Instituto Luce da Itália mussolinista e o Reichstelle Fur Den Unterrichtsfilm da Alemanha nacional- socialista” (p. III, “Introdução”). Sobre o assunto ver também: O Cinema como “Agitador de Almas” – Argila, uma Cena do Estado Novo de Claudio Almeida Aguiar (São Paulo, Annablume/Fapesp, 1999), em que o autor localiza esse intercâmbio mais especificamente “em dezembro de 1936 (quando) Roquette-Pinto estreitou esses contatos numa viagem à França, Itália e Alemanha, onde teve a oportunidade de estudar, em detalhes, a organização da produção cinematográfica européia” (p. 90). Schvartzman (Humberto Mauro e as Imagens do Brasil, op. cit.) tem acesso especificamente ao relato que Roquette-Pinto faz dessa viagem a Capanema (Arquivo Gustavo Capanema GCG 35.00.00/ 02 doc. n. 610) e descreve mais precisamente esses contatos. Menciona seu entusiasmo pela concepção de cinema educativo de Luciano de Feo, na base da concepção do Luce, e o convite para integrar o Instituto Internacional do Cinema Educativo, do qual o antropólogo seria futuramente vice-presidente. Ainda sobre cinema educativo ver Cinema Contra Cinema – Bases Gerais para um Esboço de Organização do Cinema Educativo no Brasil, de Joaquim Canuto Mendes de Almeida (Rio de Janeiro, Nacional, 1931) e Cinema e Educação de Jonathas Serrano e Venâncio Filho (São Paulo, Melhoramentos, s/d). Os primeiros livros sobre cinema no Brasil são publicados em torno da relação entre a “nova” educação e o cinema documentário. Sobre o assunto ver o bom panorama de Maria Eneida Fachini Saliba, em Cinema Contra Cinema – o Cinema Educativo de Canuto Mendes (1922/1931) (São Paulo, Annablume, 2003).

[vi] Ver Júlio César Lobo, “Nascimento, Vida e Morte de uma Instituição Pioneira em Educação a Distância no Brasil: o Fenômeno Ince”, in Revista da FAEBA, n. 3, Salvador, jan./ dez./1994.

[vii] Uma das jóias de sua filmografia, esse curta-metragem ilustra uma canção famosa do folclore brasileiro, dentro de um estilo marcado pelo trabalho desenvolvido no período das Brasilianas. O lirismo irônico e saudosista de Mauro (ver adiante) mostra-se aqui em toda forma, ao lidar com seu próprio envelhecimento em face da dialética da permanência e da transformação no tempo.

[viii] Ver Carlos Roberto Souza, Catálogo de Filmes Produzido pelo Ince, Fundação do Cinema Brasileiro/ Minc, 1990.

[ix] Sobre o assunto ver, entre outros: Lilia Moritz Schwarcz, O Espetáculo das Raças – Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil – 1870-1930, São Paulo, Companhia das Letras, 1993; Nancy Stepan, The Hour of Eugenics, Race, Gender and Nation in Latin America, Ithaca, Cornell University Press, 1991; Thomas Skidmore, Preto no Branco. Raça e Nacionalidade no Pensamento Brasileiro, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976; Richard Hofstadter, Social Darwinism in American Thought, Boston, Beacon Press, 1975.

[x] Lilia Moritz Schwarcz, op. cit., p. 96.

[xi] Sobre a relação Gonzaga/ Mauro ver: Paulo Emilio Salles Gomes, Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte, São Paulo, Perspectiva, 1974.

[xii] Ver Carlos Roberto Souza, op. cit. Os títulos dos filmes citados utilizam-se da filmografia levantada por Souza no catálogo dos filmes produzido pelo Ince, em que registra os 354 curtas e médias produzidos pelo instituto. Essas informações foram reorganizadas e classificadas em grupos temáticos por Schvarzman (op.cit.). O primeiro levantamento da filmografia mauriana no Ince, ainda incompleto, foi realizado por Paulo Perdigão no artigo “Trajetória de Humberto Mauro” (revista Filme Cultura, n.3, Rio de Janeiro, janeiro-fevereiro/1967). No final dos anos 80 a Cinemateca Brasileira recebeu a quase totalidade do acervo do Ince. Anteriormente esse acervo estava depositado na Embrafilme, que o herdou do Inc (para onde foi o instituto, como Departamento do Filme Cultural, após sua extinção em 1966).

[xiii] No último capítulo de O Espetáculo das Raças (“As Faculdades de Medicina ou como Sanar um País Doente”) Schwarcz acompanha o movimento das teorias raciais em direção ao higienismo, movimento que também é retratado por Skidmore (op. cit.). É importante mencionar que Roquette-Pinto é substituído no Ince, em 1947, pelo médico Pedro Gouvea Filho, também ligado à prática higienista.

[xiv] O documentário Memórias do Cangaço (1964), de Paulo Gil Soares, ocupa, nesse sentido, uma posição-chave. Formalmente, é vinculado à chegada da estilística do cinema-verdade ao documentário brasileiro, em meados dos anos 60. Dentro de sua forma coloquial de representar a realidade (através de depoimentos e entrevistas), introduz a entrevista de um professor emérito da Faculdade de Medicina da Bahia (um dos templos do pensamento racista brasileiro, que teve como expoente Nina Rodrigues), tentando explicar o cangaço a partir das raízes raciais e da conformação craniana do nordestino. No tom de sua fala, esse professor reproduz o jeito empolado do discurso grandiloquuente que encontramos na locução fora-de-campo dos documentários do Ince. A voz do professor lembra a forma do documentário clássico, e portanto a narrativa do Ince, em contraposição à estilística inovadora e coloquial de Memórias do Cangaço. À diferença estilística corresponde uma diferença ideológica, nítida no distanciamento irônico através do qual esse choque entre estilos deforma as afirmações racistas. Os impressionantes planos das cabeças decepadas dos cangaceiros – ainda conservadas em formol nos laboratórios da UFBA em 1964 – fazem um contrapeso para a naturalidade da explicação racista do fenômeno “cangaço”.

[xv] Claudio Aguiar Almeida, op.cit.

[xvi] Idem, ibidem, p. 161.

[xvii] Idem, ibidem, p. 155.

[xviii] Ver Roberto Schwarz, “Cultura e Política 1964-69”, in O Pai de Família e Outros Estudos, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978.

[xix] Essa questão é abordada por Eduardo Morettin (Bandeirantes, dissertação de mestrado, São Paulo, Escola de Comunicações e Artes da USP, 1994). Ver também sobre o assunto Sheila Schvarzman, op. cit., pp. 298-306.

[xx] E. Roquette-Pinto, Ensaios Brasilianos, São Paulo, Companhia Editora Nacional, Edição Ilustrada, s/d.

[xxi] Idem, ibidem, p. 215.

[xxii] Idem, ibidem, p. 218.

[xxiii] Idem, ibidem, p. 219.

[xxiv] Paulo Emilio Salles Gomes, op. cit.

[xxv] Sobre palestras no rádio, ver “Figura e Gestos” de Humberto Mauro: uma Edição Comentada, op. cit.

[xxvi] Tom Gunning, “The Cinema of Attractions: Early Film, Its Spectator and the Avant- Garde”; in Thomas Elsaesser e Adam Barker (eds.), Early Film, Londres, British Film Institute, 1989.

[xxvii] Jean Epstein, Ésprit du Cinéma. Paris, Ed. Jeheber, 1955. Ver também do mesmo autor os livros Le Cinématographe Vu de l’Etna (1926) e Photogénie de L’Imponderable (1935) contidos na coletânea Jean Epstein, Écrits sur le Cinéma (2 vols.), Paris, Seghers, 1975.

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