Ideologia ou soberania?

Foto: Pille Kirsi
image_pdf

Por ALEXANDRE ARAGÃO DE ALBUQUERQUE*

A essência do discurso do ministro de Lula foi uma crítica aberta à política externa do governo do Presidente: o governo Lula deve bater continência a Israel e a OTAN

1.

Ainda são vivas em nossa memória as deploráveis imagens de um evento ocorrido em outubro de 2017, na cidade de Miami (EUA), no qual o ex-capitão do exército brasileiro Jair Bolsonaro, num gesto de amplo espectro ideológico e midiático, bateu continência para a bandeira estadunidense.

Em maio de 2019, já eleito presidente do Brasil, voltaria a editar o mesmo gesto subserviente, por ocasião de um jantar oferecido a ele pela Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos, em Dallas. Além do gesto de submissão aos norte-americanos, Jair Bolsonaro alterou o próprio bordão de seu marketing político ao proclamar: “Brasil e Estados Unidos acima de tudo”.

Além de constrangedores, estes gestos refletem não apenas a bajulação servil de setores da direita brasileira ao império ianque, mas o alinhamento ideológico da deplorável política externa bolsonarista, revelando alto grau de vassalagem, retroalimentando velhas práticas entreguistas e de total dependência externa do Brasil aos EUA.

Comentando tais gatunices, o presidente Lula, ainda aprisionado no cárcere político a que foi submetido, em razão do golpe de 2016, na Polícia Federal, em Curitiba, numa entrevista concedida aos jornalistas Florestan Fernandes Junior (El país) e Mônica Bergamo (Folha de S. Paulo), em 26 de abril de 2019, de forma altiva sentenciou:

“Eu nunca vi um presidente do Brasil bater continência para a bandeira americana. Eu nunca vi um presidente do Brasil ficar dizendo eu amo os Estados Unidos. Alguém acha que os Estados Unidos vão favorecer o Brasil? Americano pensa em americano em 1º. lugar, em americano em 2º. lugar, em americano em 3º. lugar. E ficam os lacaios brasileiros achando que os americanos vão fazer alguma coisa por nós. Quem tem que fazer por nós, somos nós. Precisamos acabar com o complexo de vira-lata, levantar a cabeça, pois a solução dos problemas do Brasil está dentro do Brasil”.

Recordemos que o plano de setores da direita de golpear o Brasil em 08 de janeiro de 2023 fracassou em virtude da capacidade de resposta imediata e precisa do presidente Lula orientando o então Ministro da Justiça Flávio Dino a não decretar a GLO (Garantia da Lei e da Ordem) diante daquela arruaça planejada, mas procedendo uma intervenção na secretaria de segurança do Distrito Federal, coordenada pelo secretário-executivo do Ministério da Justiça, Ricardo Capelli.

Este ato de inteligência política foi capaz de unir as instituições do Brasil, governadores, magistrados, ministros, deputados, senadores em torno da pessoa do Presidente e de seu governo recém-eleito democraticamente. Contudo, é mister entender que esses setores da direita não se deram por vencidos, continuam agindo em vários fronts.

2.

Caso recente aconteceu num evento da Confederação Nacional da Indústria (CNI), realizado no último 8 de outubro, no qual foi assinado um acordo de cooperação voltado para a promoção e o fortalecimento da Base Industrial de Defesa e Segurança (BIDS), com a presença do Ministro da Defesa José Múcio Monteiro.

Múcio Monteiro iniciou sua vida política na ARENA (Aliança Renovadora Nacional), partido oficial da ditadura militar instalada no Brasil com o Golpe de 1964. Foi eleito vice-prefeito do município de Rio Formoso-PE (1975), mas não assumiu o mandato para ser presidente da CELPE (Companhia de Eletricidade de Pernambuco). Com a extinção da ARENA, filiou-se ao PDS, partido de substituição ao anterior, migrando depois para o PFL, facção que veio em seguida com o fim do PDS. Ainda militou no PSDB (2001-2003) e no PTB (2003-2023), estando atualmente no PRD.

No evento recente na CNI, Múcio Monteiro expressou com muita desenvoltura sua visão ideológica do projeto político brasileiro. Falas cirúrgicas, bem selecionadas. Por questões de limitação do espaço editorial, analisaremos aqui apenas uma passagem de seu discurso, deixando como sugestão a leitura de toda a sua mensagem.

A essência do discurso do ministro de Lula foi uma crítica aberta à política externa do governo do Presidente. Na visão de Múcio Monteiro, o governo Lula deve bater continência a Israel e a OTAN. Disse Múcio Monteiro: “A questão diplomática interfere na Defesa. Houve uma licitação. Venceram os judeus, o povo de Israel, mas por questões de guerra, o Hamas, por questões ideológicas não podemos aprovar [o contrato]”.

Uma fundamentação falaciosa e deplorável. Afinal, quem ganhou a concorrência não foi o povo judeu, mas o governo sionista de Benjamin Netanyahu. Além disso, importante destacar que a guerra genocida perpetrada pelo sionismo israelense não é contra o Hamas, mas visa ao extermínio do povo palestino. Agora Benjamin Netanyahu autorizou ataques maciços a outro povo, o libanês. Mas entre o genocídio palestino, os ataques ao povo libanês e o sionismo israelense, o ministro Múcio Monteiro deixou entrever em sua retórica ter preferência pelos sionistas.

Além disso, pareceu desconsiderar que em 19 de fevereiro deste ano o ministro das Relações Exteriores de Israel e o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu declararam o Presidente Lula persona non grata. Isto parece não ter a menor relevância para ele. Por quê?

3.

Recordemos que em sua viagem à Etiópia, participando da abertura da 37ª. Cúpula da União Africana, na capital Adis Abeba, em 17 de fevereiro, o Presidente Lula falou para 54 representantes de países daquele continente. Na entrevista coletiva, após o evento, o Presidente brasileiro classificou a morte de civis em Gaza como genocídio, criticando os países desenvolvidos por reduzirem ou cortarem a ajuda humanitária na região. Lula afirmou que o que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino (e não com o Hamas) não existiu em nenhum momento histórico. Não é uma guerra entre soldados e soldados. É uma guerra entre um Exército altamente preparado contra mulheres e crianças indefesas e inocentes.

Mas para Múcio Monteiro esse genocídio parece ser algo normal, que não se deve levar em conta no processo das decisões políticas brasileiras. Para ele, importante mesmo é fechar o contrato com o governo de Netanyahu e ficar do lado da OTAN. Todo apanhado empírico é pura ideologia.

Segundo a ONU, em um ano de genocídio, a destruição em Gaza pode estar na casa dos 90%, algo jamais visto na história, superando em muito as cidades europeias destruídas em seis anos de 2ª. Guerra Mundial. É a primeira vez na história das guerras e genocídios que 100% da população é declarada sob fome. É inédito também o deslocamento de mais de 90% de uma demografia atacada por agressor externo. (BdF, 09/10/2024).

A decisão sobre compras e vendas de material bélico é essencialmente política. Uma questão de soberania nacional. Jamais pode ser reduzida à falácia ideológica de mera questão técnica e comercial. Implica sempre definição de aliados estratégicos, principalmente num contexto internacional de construção de um mundo multipolar.

Múcio Monteiro conscientemente afrontou publicamente o chefe de Estado brasileiro, pois é ele quem define a política externa do país. O que pretende com essa manifestação? Ridicularizar o presidente Lula?

*Alexandre Aragão de Albuquerque é mestre em Políticas públicas e sociedade pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES