Por TRAJANO VIEIRA*
“Posfácio” do tradutor da nova versão da obra de Homero
Diferentemente da Odisseia, em que a peripécia do herói é responsável pela natureza romanesca do poema, a Ilíada possui uma dimensão — diríamos — metafísica, que gravita em torno de valores do código heroico. Entre os mais importantes estão o reconhecimento pela comunidade dos atos de proeza e o papel da philia, amizade.
Esses valores, relativamente fixos, estão longe de resultar numa narrativa linear. Embora Aristóteles (Poética, VIII) identifique um traço comum nos dois poemas, a unidade da ação, não há como deixar de notar que a Ilíada, apesar da coerência estrutural ao longo de mais de 15 mil versos, utiliza muitos outros recursos, como digressões e episódios laterais, igualmente relevantes. A decisão de Aquiles abandonar a guerra tem função central no poema.
No décimo ano do conflito em Troia, período em que se passa a Ilíada, o personagem deixa o campo de batalha por se considerar desprestigiado por Agamêmnon e pelos demais líderes argivos. A desonra que sofre, ao ser obrigado a entregar Briseida ao líder atrida, macula sua glória. O desprestígio afeta o motivo principal que leva um herói a lutar: acumular, além dos prêmios (geras) de reconhecimento à sua honra (timé), narrativas sobre seus feitos de grandeza.
Muito se tem escrito sobre se a atitude de Aquiles seria exagerada ou não, mas essa linha de interpretação me parece menos interessante do que notar que é graças a seu comportamento que o herói adquire as características que o tornam único: voluntarismo, inquietação, altivez, temperamento explosivo, impetuosidade. Pode-se alegar que sua personalidade inflexível causou a morte de inúmeros gregos, mas, como o próprio personagem observa em mais de uma ocasião, não foi ele quem começou a guerra, tampouco tinha motivo pessoal para combater os troianos.
O comentário de Aristóteles define, além da ação, a coerência do próprio personagem, mantida ao longo de toda a obra. Um aspecto a se destacar sobre esse ponto é que Aquiles retorna à guerra não mais para defender a honra dos gregos, mas para preservar sua amizade por Pátroclo, assassinado por Heitor. É, portanto, por causa de uma atitude que sela o vínculo entre os heróis que o Pelida volta a enfrentar os troianos.
Philia é um termo complexo sobre o qual há muitos estudos. Se sua dimensão afetiva parece inegável, existe também o fato de o personagem se ver de algum modo refletido no outro, de o outro ser de algum modo sua própria imagem, na medida em que ambos representam a defesa do código de conduta que os transcende, definido pela coragem e pela admiração. O narcisismo e a competitividade são traços distintivos do personagem homérico. Os heróis possuem esplendor aparentemente ilimitado, ou melhor, suas ações são fruto do vigor admirável que, em diversos momentos, parece existir para evidenciar o seu oposto, a fragilidade e a morte incontornável.
Eis o paradoxo que constitui o que poderíamos denominar a dimensão ontológica da Ilíada: os heróis executam sucessivas ações extraordinárias, mas, quanto mais se aproximam do limite a que pode chegar um homem, mais se evidencia a premência da morte. A dramaticidade das passagens em que o tema da fragilidade da vida é referida nunca foi superada na literatura ocidental. Como se sabe, os gregos recorreram frequentemente à estrutura polarizada para expor uma situação existencial ou uma questão teórica. A Ilíada é o exemplo mais antigo desse procedimento que terá forte impacto no pensamento científico e filosófico posterior. Não nos causa estranheza, portanto, que os deuses participem muito mais da Ilíada do que da Odisseia.
Odisseu joga com a precariedade humana, concebendo soluções inusitadas que lhe garantem a sobrevivência. Na trama romanesca da Odisseia, destaca-se o júbilo do herói, que reflete sua satisfação em testar a todo momento a capacidade intelectiva diante do inesperado. Odisseu se realiza na busca das estratégias mais complexas para contornar os percalços, como o episódio do ciclope Polifemo revela. O exercício do engenho satisfaz o personagem, que se constitui a partir da consciência da transitoriedade. Ele não tem ilusão de que o acontecimento imediato é fugaz, tampouco de que não se repetirá em sua integridade.
O traço distintivo do herói está em saber lidar, como exímio malabarista, com a originalidade que particulariza cada fenômeno com que se depara. Esses aspectos nos ajudam a entender melhor as passagens da Ilíada em que Aquiles exibe pouca afinidade com Odisseu. O primeiro é idealista; o segundo, analítico. A fúria de Aquiles é, como se costuma dizer, visceral. Mesmo depois de levar a cabo as ações que apaziguariam qualquer outro herói, como a realização do funeral de Pátroclo e a morte de Heitor, Aquiles não consegue controlar a cólera, e volta a vilipendiar o cadáver do antagonista.
Seria difícil imaginar Odisseu agindo assim. Se, por um lado, a potência irrefletida da agressividade de Aquiles é incontornável, por outro, é insuficiente para colocá-lo num patamar diferente de seus pares. Aquiles é o melhor dos aqueus, mas esse reconhecimento não altera sua consciência de que nada do que faça lhe garantirá um estatuto diverso dos demais. Sua natureza atormentada, angustiada e obsessiva encontra na força incontida o recurso para fazer prevalecer, ao longo da tradição, o kleos, renome e fama.
A função dos deuses não se resume a estabelecer o parâmetro da eternidade em relação aos heróis perecíveis, mas tem a ver com a estrutura narrativa dos episódios. Decisões, intervenções, contrariedades, sofrimentos, planos, contemplações revelam a dinâmica de uma sociedade relativamente parecida com a humana. Isso vem à luz sobretudo nos estratagemas que os numes armam contra ou a favor dos dois exércitos em conflito. O envolvimento é tão grande que há momentos em que um deus é criticado por outro morador do Olimpo.
Afinal, qual o motivo de querer participar do destino de personagens cujo sofrimento parece tão insignificante da perspectiva da eternidade? Não seria um erro supor que a curiosidade dos deuses pelos homens se deve ao fato de estes possuírem algo que os primeiros desconhecem: o sentido da transitoriedade. Ou seja, a eternidade não garante a completude, mesmo que o aspecto ausente possua caráter negativo. Em certo sentido, é a diferença ontológica o que, da perspectiva olímpica, leva os deuses a participarem com tanto afinco do universo humano.
Existe algo tão despropositado nessa participação que frequentemente ela desencadeia o riso na sociedade dos bem-aventurados. O humor, ausente do universo heroico, é recorrente no Olimpo, e reflete justamente a falta de sentido da intensa participação divina e, da perspectiva da temporalidade eterna, a falta de sentido dos conflitos em que se envolve um número imenso de heróis, fundamentalmente idênticos. A equivalência entre contrários transparece no episódio do encontro entre Glauco e Diomedes (VI, 145-236). Depois de ouvir o relato do guerreiro lício sobre a própria estirpe, Diomedes recorda-se de que 986 um ancestral hospedara o antepassado de seu antagonista. Nesse instante, os heróis constatam que haveria entre eles um vínculo de amizade, selado pelo rito de hospedagem entre os parentes, e que, de certo modo, seriam idênticos.
Registre-se que essa cena se abre com a extraordinária reflexão de Glauco sobre a fragilidade e a brevidade da vida, provavelmente a mais antiga comparação, na literatura ocidental, entre destino humano e ciclo vegetal, retomada, por exemplo, por Mimnermo (fragmento 2 West) e por Simônides (fragmento 8 West: “O que de mais notável disse o homem de Quios:/ como a geração das folhas, assim também a dos homens”). O episódio gira em torno de dois temas correlatos: a instituição da ksenía (“hospitalidade”) e a reciprocidade. Em sua longa digressão, Glauco alude a seu antepassado Belerofonte. Hóspede de Proitos, Belerofonte é acusado de assédio pela rainha, depois de evitar suas investidas amorosas. Impossibilitado de matar um hóspede, Proitos envia- -o ao sogro Iobates, que também se vê impedido de assassiná-lo, pelo mesmo motivo.
Iobates confere a Belerofonte uma série de tarefas aparentemente irrealizáveis (matar a Quimera, as Amazonas), das quais ele se sai bem, sendo recompensado pelo rei. É nesse ponto do relato que Diomedes lembra que Belerofonte fora hóspede de seu avô, Oineu, o que impossibilitaria a ele, Diomedes, enfrentar Glauco. Segue-se então a decisão de trocarem as armas, ato que reafirma o pacto de amizade familiar. Nota-se, portanto, nesse episódio, que a função da philia, em que o código militar heroico se fundamenta, prevalece inclusive sobre a desavença circunstancial.
O pacto de amizade entre inimigos está presente também no canto VII, na cena em que Heitor e Ájax se enfrentam. Com a aproximação da noite, tanto os gregos quanto os troianos exortam os dois heróis a suspenderem o duelo, o que de fato ocorre, não sem a troca de armas, cuja função é firmar um pacto de amizade (philotes): “No prélio que devora o coração duelaram,/ mas fraternal agora a dupla se separa” (VII, 301-2). Os momentos digressivos sucedem-se no poema e são um recurso importante na caracterização de outros aspectos da experiência heroica, como é o caso do encontro pungente entre Heitor, Andrômaca e o filho pequeno, ou da cena extremamente dramática em que Helena identifica os heróis gregos sobre a torre, ao lado de Príamo.
Situações assim sugerem certa autonomia entre os cantos, que, no limite, poderia 987 refletir o contexto das apresentações rapsódicas, em que o poema não era recitado integralmente num único dia. Esse é um dos traços de genialidade do autor, que não perde o controle da coerência interna de uma obra bastante extensa, embora constituída de um grande número de episódios periféricos que gravitam em torno do núcleo: os efeitos da ira de Aquiles e a expectativa de seu retorno. Curiosamente, logo no primeiro canto, Aquiles manifesta não só a decisão de abandonar a guerra, como de retornar imediatamente ao país natal. No canto IX, reafirma seu plano a Odisseu, Ájax e Fênix, que tentam convencê-lo do contrário, lançando mão de estratégias retóricas muito bem calibradas e de argumentos com forte apelo emocional.
Podemos nos indagar por que motivo Aquiles não concretiza o projeto. A resposta talvez esteja no próprio canto IX, mais exatamente, na atividade que o melhor dos aqueus executa na chegada dos embaixadores. Causa surpresa vê-lo desempenhar a função de aedo, ressoando a lira. Homero alude ao tema de seu canto: kleos áphthiton (413), expressão que define o objeto da própria Ilíada: glória imperecível. Aquiles executa um canto tradicional, nos moldes da Ilíada, como aquele que o próprio Homero provavelmente interpretou ao longo de sua atividade rapsódica. Ao cantar um poema do gênero da Ilíada, responsável pela manutenção do renome heroico ao longo da tradição, Aquiles se dá conta de que ele, em algum momento, deve retornar à guerra para vir a ser, no futuro, personagem do poema.
Há, pois, equivalência entre ação militar e participação na obra épica. A eternidade da proeza depende da representação literária. Sem a última, a primeira esmaece e se perde no esquecimento. Ao colocar na boca do principal personagem do poema uma obra nos moldes da Ilíada, Homero de certa forma destaca a função da própria poesia para a preservação das ações ao longo do tempo. Essa concepção terá grande relevância na tradição literária grega, sobretudo em Píndaro, cujas odes vinculam proeza esportiva à realização literária.
Diferentemente da Odisseia, o ponto forte da Ilíada não são os episódios inusitados, mas a tensão que provém de um número elevadíssimo de debates (7.018 versos, correspondentes a 45% do total, aparecem em discurso direto) e o portentoso detalhamento das cenas de conflito, com momentos cinematográficos de passagens em que prevalece a sinédoque descritiva. Nenhuma descrição supera a do novo armamento de Aquiles no canto XVIII, fabricado pelo deus coxo Hefesto. 988 A eficiência verbal desse trecho concentra o que há de mais original no poema.
As cenas se sucedem diante do leitor, à medida que o deus laborioso compõe seus diferentes motivos. O acúmulo de elementos plásticos oferece diversos cenários, que nos fazem pensar na colagem da pintura moderna: jovens celebrando um casamento em vias de ocorrer, um rei que observa satisfeito a fartura da colheita, um debate intrigante que tem a ver com a origem de instituições jurídicas no Ocidente. Sobre este motivo, a estrutura da querela que se instaura num ambiente que se manteve, em linhas gerais, ao longo da tradição, é de fato surpreendente: há uma disputa sobre uma multa, em função de um assassinato. Uma das partes alega ter pagado o devido, a outra nega ter recebido. Um juiz conduz o processo em meio à atmosfera ruidosa dos jurados, que se encontram divididos.
Esses elementos apenas aludidos indicam que já remotamente (aceitemos que o poema foi configurado em meados do século VIII a.C.) haveria traços do dialogismo que alcançará seu ápice no ambiente democrático ateniense, vários séculos depois. Se estiverem corretos os dados arqueológicos segundo os quais a pólis grega teria surgido no século VIII a.C., não deixa de ser admirável a precocidade da instituição jurídica na Grécia, com a funcionalidade representada no escudo.
O escudo de Aquiles é o microcosmo de uma civilização e sintetiza igualmente uma prática poética, a prevalência da estrutura paratática, a tendência centrípeta de expansões que nunca se perdem no aleatório, graças ao notável controle narrativo do autor, como bem observou Aristóteles na passagem aludida anteriormente. Os estudos sobre oralidade, principalmente a obra pioneira e, em vários aspectos, insuperada de Milman Parry, mostraram mecanismos fundamentais dessa relojoaria extremamente sofisticada e funcional da linguagem homérica.
Do ponto de vista da língua, há vários registros de formas dialetais diferentes de uma mesma palavra (o dativo de “pé”, por exemplo, aparece tanto no jônico posí quanto no eólico pódessi), fato que sugere, pelo menos numa certa época, que o poema pode ter sido elaborado em regiões diferentes ou por poetas de regiões diferentes da Grécia. Trata-se de uma questão que continua aberta às discussões entre os especialistas. O que poucos discordam é que o poema, sobretudo pela grande recorrência de fórmulas, paga tributo à longa tradição oral que deixou marcas admiráveis no texto que conhecemos: grande eficiência da dinâmica comunicativa, escolha de motivos funcionais nas rápidas 989 caracterizações, expansões submetidas a cortes bruscos e deslocamentos ágeis de cenários, realinhados no fluxo narrativo sempre atento à progressão do motivo principal.
Permito-me concluir com uma breve nota pessoal. Lembro-me de um comentário que Haroldo de Campos costumava fazer em nossos encontros semanais, durante os dez anos em que tive a oportunidade de acompanhar seu trabalho de tradução da Ilíada. Dizia Haroldo: “A Ilíada não tem enchimento”. De fato, a dificuldade de traduzir Homero se deve à alta qualidade que não arrefece, não à dificuldade verbal. Creio que uma nova incursão no texto, tendo em vista o projeto de reconfiguração poética, depois da admirável empreitada haroldiana, se justifica se admitirmos que esse tipo de desafio diante do original é antes de mais nada uma oportunidade de leitura rigorosa. A possibilidade de reler o poema do ângulo de quem busca reimaginá-lo numa configuração paralela foi o que me motivou a traduzi-lo uma nova vez, sob a égide do prazer.
*Trajano Vieira é professor de Língua e Literatura Grega no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp.
Referência
Homero. Ilíada; edição bilíngue; tradução, posfácio e notas de Trajano Vieira. São Paulo, Editora 34, 2020.