Inimigos entrelaçados

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Por CLAUDIO KATZ*

Os antecessores de Trump presumiram que construiriam o mesmo pântano que a URSS enfrentou no Afeganistão, mas o tiro saiu pela culatra e a Casa Branca agora ficou às custas do Kremlin.

Donald Trump procura romper a aliança da Rússia com a China, para minar a rede internacional que seu grande concorrente forjou. Ele tenta aproximar Moscou para enfraquecer Pequim, através de uma estratégia que inverte a sedução implementada pelo Departamento de Estado sob Richard Nixon e Henry Kissinger.

Há vários anos, esta política é apoiada por importantes conselheiros da Casa Branca (Mearsheimer, Kennan), que destacam a impossibilidade de derrotar simultaneamente a Rússia e a China. Defendem a concentração de forças contra o rival econômico, contemporizando com o adversário geopolítico.

Mas esta manobra da Guerra Fria difere do passado devido à grande fraqueza produtiva dos Estados Unidos. A primeira potência não compete com um ator economicamente inferior, como era a União Soviética, mas com uma locomotiva asiática que tende a deslocar o hegemón em declínio.

Por outro lado, a Rússia não tem urgência, ou interesse imediato, em negociar nos termos que Donald Trump imagina. Entrou numa aliança defensiva com a China que começou no plano comercial, se estendeu à economia e agora desponta como salvaguarda militar. As duas potências convergem na resistência contra o mesmo agressor.

A Rússia precisa contrapor o cerco militar, que a OTAN promove instalando mísseis apontados para Moscou. O Pentágono iniciou este acossamento com as “revoluções coloridas”, que instalaram governos títeres dos Estados Unidos na região. Com a mesma intenção, impulsionou a guerra na Ucrânia, ampliou a militarização da Europa e forçou o alinhamento de países tradicionalmente neutros (como a Suécia e a Finlândia).

A China está sob o mesmo cerco, através de novos acordos com Austrália, Índia, Japão, Coreia do Sul, Nova Zelândia e Filipinas, que a Casa Branca forjou para fustigar seu rival. Para aumentar esta tensão, o Departamento de Estado aumenta o fornecimento de armas aos separatistas de Taiwan, pondo em dúvida o princípio de “uma só China”, que articula a integridade territorial do gigante oriental.

A transformação de uma economia asiática marginal na maior potência em ascensão do século XXI está baseada na reversão de sua fratura nacional. Washington sabe que a recuperação de Hong Kong foi um marco nesta mudança e concebe operações para impedir Taiwan de seguir o mesmo caminho. Pequim, por sua vez, reforça uma aliança com Moscou para inclinar a balança deste resultado. Donald Trump aposta na quebra desse acordo, mas tem poucos recursos para conseguir essa ruptura.

O Kremlin não tem urgência econômica para negociar com a Casa Branca. As sanções ocidentais foram um fracasso e a Rússia substituiu a perda do mercado europeu do gás por uma nova e lucrativa demanda asiática. Com estas receitas, manteve seu superávit comercial, preservou a estabilidade do rublo e financiou as despesas bélicas na Ucrânia (Mearsheimer, 2023).

Esta sequência ilustra a fragilidade dos golpes ocidentais contra uma grande economia. Ficou demonstrado que há opções contra o acosso ianque, e que o acossador pode acabar favorecendo o acossado.

Infortúnios na Ucrânia

Vladimir Putin também não tem pressa em chegar a um acordo com Donald Trump no plano militar. Após três anos de batalhas sangrentas, está ganhando a guerra na Ucrânia. É verdade que não conseguiu enterrar o governo de Kiev com uma operação relâmpago e teve que recuar para as zonas fronteiriças e travar uma dura guerra de posições. Mas a Ucrânia foi completamente demolida, com 700.000 baixas e uma crise de recrutamento que a impede de substituir tropas.

Kiev também não dispõe de artilharia suficiente para contrapor a saraivada de bombas que recebe, nem consegue manter trincheiras tão extensas, com recursos que são mais facilmente substituídos pelo inimigo.

Volodymyr Zelensky tem tentado compensar estas adversidades com operações aventureiras de entrada e bombardeio ao território russo ou com ataques terroristas, executados por parceiros jihadistas. Mas sua recente contraofensiva fracassada agravou a devastação na Ucrânia e aumentou o desânimo geral em relação ao desenrolar do conflito.

Vladimir Putin tornou críveis suas advertências de respostas mortíferas a uma maior escalada da OTAN. Confrontado com o “risco existencial” que essa ofensiva representa para a Rússia, permitiu o recrutamento de mais tropas caso o conflito se estenda a outros países fronteiriços. Também modificou a doutrina militar para ampliar as opções de utilização de armas atômicas.

Suas advertências adquiriram nova envergadura desde que assegurou sua autoridade interna, dissolvendo o grupo paramilitar liderado por Prigozhin. Esta limpeza trouxe coesão à estrutura do exército, que estava ameaçada pelo protagonismo das milícias privadas.

Com esta consolidação, Vladimir Putin prepara-se para negociar o futuro da Ucrânia nos termos da Doutrina Primakov. Este código pressupõe o reconhecimento ianque da centralidade geopolítica da Rússia e o fim dos mísseis da OTAN na Europa do Leste.

O líder russo não discutirá apenas como a Ucrânia será dividida em dois países, que regiões serão anexadas e quais as garantias de desmilitarização da região, que permaneceria sob proteção ocidental. Exigirá também que o armistício constitua um precedente para outros conflitos não resolvidos no espaço pós-soviético. Exigirá o fim da interferência do Pentágono na Moldávia, Romênia, Geórgia, Armênia e Azerbaijão.

Vladimir Putin também não tem pressa política em obter acordos com Donald Trump. Assegurou seu longo mandato com outra vitória eleitoral, no opaco sistema eleitoral russo, e obteve essa vantagem com maior participação eleitoral do que em disputas anteriores.

O dirigente do Kremlin aproveitou esta convalidação para fortalecer seu perfil autoritário e reforçar a criminalização de qualquer dissidência significativa. Beneficia-se de uma passividade popular continuada, que não foi alterada pela guerra na Ucrânia. Pelo contrário, o oficialismo aproveitou esse conflito para recriar o nacionalismo e recrutar os jovens das zonas empobrecidas. Estes setores mostraram grande disposição para sacrificar suas vidas nas linhas da frente em troca de alguma remuneração e pensões para suas famílias.

Com sua habitual prepotência, Donald Trump prometeu resolver a guerra da Ucrânia em poucas horas, mas negociará com Vladimir Putin, numa posição defensiva. Desde a revolta do Maidan e a miniguerra do Donbas, seus antecessores fracassaram na armadilha que tentaram armar para a Rússia. Presumiram que conseguiriam forçar o mesmo pântano que a União Soviética enfrentou no Afeganistão e, por essa razão, sabotaram todas as tentativas de conter a sangria da Ucrânia. Mas o tiro saiu pela culatra e a Casa Branca agora ficou às custas do Kremlin.

É verdade que Washington submeteu a Europa, expandiu a OTAN, militarizou o Velho Continente e introduziu uma russofobia que alimenta o crescimento da extrema-direita. Mas a vitória de Moscou no campo de batalha coloca os Estados Unidos numa péssima posição em qualquer tratativa.

Nesta discussão, Donald Trump privilegia a obtenção de vantagens no negócio da reconstrução da Ucrânia. Este país tem 70% de sua estrutura econômica completamente demolida. A indústria foi pulverizada, o déficit comercial triplicou e as exportações de grãos colapsaram. Além disso, os capitalistas fugiram do país, esvaziando as reservas bancárias, e o declínio demográfico precedente é acentuado pela perda de jovens nas trincheiras (Roberts, 2023).

Essa hecatombe é uma ótima notícia para os mercadores da morte. A Ucrânia tem sido o celeiro da Europa e tem estado no pódio internacional da produção de cevada, trigo e óleo de girassol. É altamente cobiçada por dez corporações agrícolas, que esperam apropriar-se de um terço das terras férteis do país.

O FMI promove ativamente outras transferências com planos de ajuste, que Volodymyr Zelenski põe em prática demolindo o código de trabalho, proibindo greves e ilegalizando os sindicatos. O país também possui uma grande reserva de terras raras e minerais cobiçados pelos gigantes digitais.

A disposição neoliberal de vender todos estes ativos é abertamente exposta pelos ministros corruptos de Volodymyr Zelenski, que têm Javier Milei como sua principal referência econômica internacional. Esta admiração confirma as inúmeras semelhanças entre a Ucrânia e a prostração da Argentina diante de seus credores (Castiglioni; Cantamutto, 2022).

Kiev sairá totalmente hipotecada da guerra, com dívidas monumentais com os contratantes do Pentágono. Donald Trump quer aproveitar esta subjugação para entregar ao Black Rock (e a outros fundos de investimento) a gestão da reconstrução (Marco del Pont, 2023). Mas estes negócios requerem um cenário favorável, em negociações que estão configurando-se como muito adversas para os Estados Unidos.

*Claudio Katz é professor de economia na Universidad Buenos Aires. Autor, entre outros livros, de Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo, socialismo (Expressão Popular) [https://amzn.to/3E1QoOD].

Tradução: Fernando Lima das Neves.

Referências

Mearsheimer, John (2023). La oscuridad que se avecina: hacia dónde se dirige la guerra en Ucrania 05/07 (Veja aqui)

Roberts, Michael (2023). Rusia-Ucrania: un año de guerra y sus consecuencias económicas 01/03 (veja aqui)

Castiglioni, Lucas; Cantamutto, Francisco (2022). FMI y crisis de deuda de Ucrania

Marco del Pont, Alejandro (2023). La ceremonia de la confusión permanente (veja aqui)

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