Institutos Federais

Imagem: Riccardo Fraccarollo
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Por BRUNO RESCK*

Não precisamos de um Novo Ensino Médio, precisamos de mais Institutos Federais

O Brasil enfrenta grandes desafios no que se refere ao desempenho dos estudantes nos indicadores e metas de qualidade do sistema educacional. Contudo, nas últimas décadas, avançamos em algumas áreas, sobretudo, quando comparamos com o passado recente do país. Por exemplo, de acordo com o IBGE, na década de 1940, o índice de analfabetismo era de 56%, ou seja, aos 450 anos de história, em pleno século XX, metade da população adulta do Brasil era analfabeta!

Reflexo de um processo secular cuja dinâmica econômica era orientada por uma matriz agraria exportadora, concentradora de riqueza e sem o menor interesse na educação e na qualificação da população. A partir da segunda metade do século XX, o país se industrializou (tardiamente), se urbanizou, se modernizou, passou por “milagres econômicos” (com todas suas contradições, inclusive, na educação) e chega à segunda década do século XXI podendo comemorar muitos avanços no âmbito educacional (sobretudo com relação à universalização), mas ainda com alguns persistentes gargalos, em especial, no ensino médio, cujo principal desafio está em reduzir a evasão escolar dos jovens.

Existem duas ideias centrais no debate nacional que tentam explicar, de forma simplista, os problemas da educação no país: (i) de que as causas da má qualidade do ensino estão relacionadas com questões curriculares, portanto, bastaria “reformar” o sistema de ensino a partir de uma nova configuração da carga horária, dos conteúdos e dos livros didáticos – como proposto pelo Novo Ensino Médio (NEM); e (ii) o problema da educação não estaria relacionado com o financiamento, ou seja, a educação é precária não pelo subfinanciamento, mas sim, por uma questão de gestão.

Desta forma, bastaria “profissionalizar” a “gestão” das secretarias de ensino e das escolas como se fossem empresas para uma melhor alocação dos recursos e os avanços na qualidade do ensino virão. Cabe destacar o papel da grande mídia corporativa e das fundações educacionais (por exemplo, Fundação Leman, Todos pela Educação, B3 Social, Itaú Educação e Trabalho etc.) na divulgação e consolidação destas ideias para criar apoio popular e legitimar a influencia destes setores nas decisões no âmbito legislativo e do executivo.

Não que a questão curricular e a questão da eficiência dos gastos públicos sejam questões menores. Todavia, ao focar nestes dois pilares corremos o risco de distorcer as prioridades no enfrentamento dos desafios para melhorar a educação do país. Por um lado, focar nas mudanças curriculares alimenta o discurso moralista que vem na esteira do crescimento da extrema direita nos últimos anos, materializado nas teorias conspiratórias tais como o “movimento escola sem partido”, doutrinação ideológica, identidade de gênero, comunismo etc., culpabilizando os docentes pelas mazelas na educação.

Por outro lado, o discurso da ineficiência na gestão dos recursos, reflete a dominância da pauta neoliberal do Estado mínimo e austeridade fiscal que, ao mesmo tempo que sucateia o ensino público devido a contração dos investimentos, atribui este sucateamento como sendo apenas um problema de uma “gestão ineficiente” dos recursos financeiros.

Este é o cenário ideal para o avanço das fundações educacionais privadas que vendem seus serviços para a elaboração de currículos, produção de material didático e gestão. Não é à toa que verificamos um expressivo crescimento da participação de grandes fundos de investimentos nacionais e estrangeiros na aquisição e fusão de redes privadas de ensino (do infantil ao nível superior). O Brasil já possui as maiores corporações de ensino pago do mundo. Evidentemente, o poder financeiro destas corporações é refletido no poder político do capital privado que exerce influência no âmbito dos poderes executivo e legislativo.

Pois bem, acontece que por desinformação ou má fé, pouco se fala nos dois fatores determinantes para a qualidade da educação: (i) investimento em infraestrutura e, (ii) carreira docente. Neste sentido, a partir de 2008, o Brasil passa por uma verdadeira revolução (em certa medida silenciosa) no sistema de ensino com a criação dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs). A proposta dos Institutos Federais é oferecer educação profissional e tecnológica – gratuita e de qualidade – do ensino médio técnico integrado, graduação até a pós-graduação.

Quando analisamos o desempenho dos alunos dos Institutos Federais nos exames como ENEM e PISA verificamos que o rendimento dos alunos nas áreas de Ciências, Leitura e Matemática é semelhante aos alunos dos EUA e acima da média dos países da OCDE e da América Latina. Ficamos num patamar de rendimento acadêmico muito próximo aos alunos da Coréia do Sul e Finlândia. Você não leu errado. Temos no Brasil uma rede ensino público que entrega qualidade de ensino no mesmo nível que países desenvolvidos.

Acontece que, no âmbito do ensino médio, a rede Federal é responsável por apenas 3% das matrículas. Mas enfim, qual o segredo dos IFs? Sem sombra de dúvidas, investimento em infraestrutura – quadra, biblioteca, internet e laboratórios – e uma plano de carreira para os docentes que incentiva a qualificação (a maioria dos professores são mestres ou doutores) e condições de trabalho que permite ao docente lecionar e desenvolver projetos de pesquisa e extensão.

Do ponto de vista da remuneração, a carreira docente é equivalente à carreira do Magistério Superior das Universidades, e o ingresso é através de concurso público de provas e títulos que promove uma seleção entre os melhores quadros docentes. Em contraste, verificamos uma contínua precarização das condições de trabalho dos docentes nas redes privadas, e tímidas ações de valorização dos professores nas redes públicas, com muita resistência dos poderes executivos em cumprir os mínimos constitucionais e pagamento do piso salarial para a categoria.

Mas nem tudo são flores. Os Institutos Federais vêm sofrendo contínuos cortes orçamentários nas rubricas de investimento e custeio desde o governo de Dilma Rousseff com o ministro Joaquim Levy (2014), seguido pelos trágicos governos de Michel Temer com o ministro Henrique Meireles e de Jair Bolsonaro com o ministro Paulo Guedes. O atual governo de centro-esquerda tem buscado, timidamente, recompor as perdas orçamentárias e salariais dos servidores, mas enfrenta grandes resistências práticas e ideológicas ao apresentar e aprovar uma proposta de Arcabouço Fiscal que, na prática, estrangulará os gastos públicos nos próximos anos. Além disso, para cumprir as metas estabelecidas pelo Arcabouço fiscal e zerar o déficit fiscal, membros do próprio governo tem levantado a possibilidade de enviar projetos de emenda constitucional para desconstitucionalizar os mínimos constitucionais para as áreas de saúde e educação.

É exatamente nesse ponto que o debate sobre a educação se enquadra, pois estamos no meio de um fogo cruzado entre as demandas históricas da população e os interesses do setor privado. Vejam bem, a Constituição de 1988 (nas palavras de Ulysses Guimarães, Constituição Cidadã) trouxe um avanço histórico ao instituir valores mínimos obrigatórios para execução dos entes federativos. Acontece que a Constituição de 1988 nasce no mesmo momento histórico de ascensão do neoliberalismo, que se torna hegemônico com o fim da URSS na década de 1990. Esta corrente econômica estabelece a ideia de contínua redução do papel do Estado através de cortes orçamentários e privatizações.

Neste sentido, desde o seu nascedouro, a Constituição de 1988 vem sofrendo contínuos ataques com o objetivo de desmontar qualquer possibilidade de construção de um estado de bem-estar social. Existe uma enorme pressão por parte do capital privado para se apropriar dos serviços públicos e explorar esses serviços como mercadorias, operando sob a lógica do mercado financeiro, ou seja, maximização dos lucros no curto prazo e maximização dos retornos aos acionistas. Verificamos essa pressão sobre esse governo através das declarações sobre o fim dos pisos para saúde e educação (na relutância em revogar o Novo Ensino Médio) e na adoção do modelo de PPP (parceria público privada) para a gestão de serviços públicos, de creches, presídios e hospitais.

Este deveria ser o grande debate nacional. Que modelo de sociedade queremos? Num país com as abissais desigualdades econômicas e sociais, devemos abandonar a ideia de construção de um sistema de ensino público gratuito e universal e confiar à iniciativa privada o desafio de educar as futuras gerações? Não precisamos de um Novo Ensino Médio, precisamos de mais Institutos Federais.

*Bruno Resck, geógrafo, é professor no Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG) – Campus avançado Ponte Nova.


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