O pensamento político do agronegócio

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Por TARSO GENRO*

Os empresários reclamam da ausência de “um projeto de país” quando seus interesses negociais não estão sendo bem tratados pelo sistema de poder que eles mesmos montaram

Alguns dizem que a luta entre as classes se torna supérflua para compreender a história, numa época em que existe a possibilidade de ser manipulado o patrimônio genético da humanidade, convertendo-o em matéria prima para o desenvolvimento do capitalismo. Outros – os mais cansados – dizem que o fim da história já está situado nesta “conversão” do patrimônio biológico em patrimônio capitalista, e que o nosso limite está dado pela própria possibilidade de converter a democracia liberal em democracia “dialógica”, com quem vai controlar aquele capital biológico. Como sou um historicista incorrigível aposto que a política pode tanto socorrer uma ou outra alternativa, bem como direcioná-las para sentidos humanistas e libertários ainda não engendrados.

O fim da história – em Fukuyama – estaria provado pelo fim da ideia socialista “real”, na URSS, a partir do qual a democracia liberal iria prosperar em corações e mentes, livres da ideia da igualdade, substituída pela ideia da competição. Esta era projetada como início da dignidade humana, na qual a norma da “igualdade de oportunidades” promoveria ricos em todos os cantos do mundo. Só que o capitalismo, liberado da guerra entre os “sistemas concorrentes” (como tese), aproveitou a oportunidade para se livrar da modesta “farra” de gastos da socialdemocracia e escancarou-se na eliminação da pobreza: tratou da eliminação física dos pobres, não pela tese, mas pela concretude da “miséria crescente”, que mata pela fome e pela doença.

A aplicação de um projeto fascista, na Itália e na Alemanha, só foi possível através de uma vasta aliança política induzida, predominantemente (na Alemanha), a partir da unidade da grande burguesia da indústria moderna, num país humilhado na Segunda Grande Guerra; e (na Itália), a partir de uma aliança mais ampla – agrário-industrial – que abrangeu vastos setores dos camponeses médios, demandados pelo desespero dos pobres do campo, que os assediavam por tratamentos salariais mais dignos.

Em ambos os países a insegurança geral da sociedade civil – em todas as classes – permitiu que no curso das crises de expectativas sobre o futuro, se impusesse a facção que mostrou mais força para instaurar uma nova ordem. A contenção da desordem, que minava as expectativas do amanhã, jogou um papel decisivo na montagem da nova subjetividade política permissiva. A mesma que apoiou as camarilhas dos marginais que chegaram ao poder pela violência direta, que assolou as ruas grandes cidades italianas e alemãs.

É recomendável uma atenção política especial a um triplo movimento do sistema bolsonariano de poder em vigor, no qual sua irracionalidade política tem três pilares bem sucedidos: a desunião da oposição republicana e democrática, o que gera suspeitas sobre a nossa capacidade de governar com firmeza; a formação de um “senso comum”, que vê o mal como virtude, capaz de expurgar a insegurança da sua vida cotidiana; a esterilização da crítica pelos meios de comunicação de massa empresariais, que separam dois lados do projeto bolsonariano: um que diz que ele é incompetente e autoritário, outro que ele está “errando”, porque não é suficientemente “reformista”, em termos neoliberais.

“Ele mente sempre e não mente nunca. Sua falsidade é a sua autenticidade. Soa complicado, mas é bastante simples. Ele acredita em tudo e não acredita em nada. É um ator. Mas você ainda não se cansou” dele, diz o personagem de Klaus Mann, em Mefisto: romance de uma carreira. No clássico antifascista do filho de Thomas Mann – em cujas passagens decisivas são pintados os painéis da democracia em decadência – já estão nítidos os traços do que viria a ser o perfil da extrema-direita no século vindouro.

“Não podemos fazer molecagem com um cliente como a China”, disse o empresário goiano Marcello Brito, Presidente da Associação Brasileira do Agronegócio, na sua axial entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo (07.11), por meio da qual ele faz uma crítica ácida das relações internacionais do país, no governo Bolsonaro. O empresário apresenta-se como defensor de uma “terceira via”, já que concluiu (de forma não propriamente original), que “precisamos de um projeto de País”, dogma que os empresários sempre lembram, quando querem dizer que seus interesses negociais não estão sendo bem tratados, pelo sistema de poder que eles mesmos montaram.

A entrevista não foge à regra costumeira das principais entrevistas dos líderes empresariais nacionais, nas quais sempre o “projeto de nação” é subsumido no projeto pensado para os seus negócios. Neste “projeto”, as suas ideias de governo ideal estão sempre ligadas aos atendimentos das corporações empresariais e dos setores da produção, onde prosperam os seus negócios. Isto, evidentemente, não é nenhuma novidade, mas adquire uma importância maior quando a entrevista é contrastada com a votação da PEC do “calote”, na nossa “exemplar” Câmara de Deputados: os números daquela votação dizem muito do que poderá ser a grande problemática da governabilidade, no Governo que seguirá o de Bolsonaro.

Dois terços de uma Câmara Federal, que certamente não será muito diferente da próxima, aprovaram uma Emenda Constitucional que, simplesmente, ao aplicar um calote nos credores da União (que envolve a totalidade da pirâmide de classes da sociedade), responde apenas aos imediatos interesses clientelistas da esfera política, embora o seu prejuízo atravesse todas as classes: dos trabalhadores credores da União, aos empresários dos setores médios e inferiores; das unidades federadas aos grandes empresários empreiteiros, com créditos firmes na União.

É possível observar que em 9 entre 10 entrevistas destes líderes de negócios não estão contempladas as questões da soberania do país, da desigualdade social, do desemprego e da fome; muito menos da tendência genocida e negacionista do Governo que ele promoveram; nem é falado no sofrimento imenso de milhões de pessoas, que não só foram atingidas pela morte e pela doença – face tanto ao descaso sanitário do Governo Bolsonaro – como também pela violência, promovida ao primeiro plano da política, em todas as nossas instâncias políticas e territoriais.

O fato de o empresário ter dito verdades sobre a nossa política externa e sobre a necessidade de tratar bem os clientes dos nossos negócios externos, todavia, não lhe retira do campo político criminoso, que a maioria do grande empresariado do país se inscreveu. No atual período, o campo que rejeita outra saída econômica – para o país – fora dos quadros do atual ultraliberalismo de Guedes e Bolsonaro, não tem condições de implantar qualquer via. Renegar Bolsonaro, sem renegar o ultraliberalismo e a corrupção sistêmica que lhe segue, será apenas uma modesta repaginação do “bolsonarismo sem Bolsonaro”

Esta repaginação poderá ter seu caminho eleitoral facilitado pela desunião das esquerdas e pela ausência de uma oposição democrática ampla. Só esta seria capaz de pactuar uma saída para a crise, por fora do autoritarismo fascista, que já nos custou o peso do ridículo global, a volta da fome e da exclusão radical e as mais de 600 mil mortes do seu negacionismo medieval. Olhando com lupa a votação da PEC do “calote” e o discurso do presidente ruralista, inconformado com o tratamento dado aos “camaradas chineses”, podemos concluir que o tempo é cada vez mais curto e o perigo do fascismo ultraliberal é cada vez mais real. As soluções não vêm do mercado, mas da democracia, não vêm da ideia do mérito, mas da igualdade real, não vêm do calote, mas da responsabilidade social que poderá ser assumida por um governo legítimo, saído de eleições livres e justas, nas quais o fascismo e os fascistas tenham uma derrota acachapante.

Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

 

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