Por FRANCISCO FOOT HARDMAN*
A memória de Maurício, o ‘Magrão’, não repousa no fundo de um rio, mas na coragem de quem, mesmo diante da barbárie, manteve intactos o sorriso gentil e a convicção de que um mundo mais justo vale qualquer risco
1.
Nunca esquecerei da figura carismática do camarada Maurício. Estivemos com ele duas ou três vezes, não mais, eu e o amigo Dinho, colega de ginásio, colégio e companheiro, ainda adolescente, de nossas primeiras incursões ao mundo da resistência à ditadura, em nossos 17 ou 18 anos.
Alto e magro, pardo, com forte sotaque do sertão cearense, mais exatamente de Itapipoca, onde nascera em família humilde, Maurício é o que se poderia chamar de missionário da Revolução. Era carismático, gentilíssimo, solidário ao extremo, até mesmo com os antigos companheiros do movimento estudantil que adotaram a “via equivocada”, segundo ele, da luta armada. Maurício era dirigente do Partido Comunista Brasileiro, e responsável pelo setor da Juventude.
Lembro-me da última vez que o vi, já na Unicamp, numa cena do Bandejão, lá pelas alturas de 1971 ou 72. Trocamos olhares e nos cumprimentamos a certa distância. Ele estava acompanhado de outra pessoa e, naqueles tempos, por razões de segurança, era impossível se aproximar desavisadamente. Depois, nunca o revi, mas soube-o em andanças por Santiago do Chile, que chegou a congregar milhares de exilados brasileiros.
Maurício era José Montenegro de Lima. Com a repressão intensa sobre os quadros do PCB, a partir de 1974, ele também se incumbiu do trabalho gráfico clandestino que ainda editava e distribuía, milagrosamente, o jornal Voz Operária.
Camarada Maurício nunca reclamou do destino. Aluno de escola técnica em Fortaleza, formou-se em Edificação. Esta antiga escola abriga hoje o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará, cujo DCE adotou o nome de José Montenegro de Lima em sua homenagem. Também há uma rua na periferia sul de São Paulo, no Grajaú, e outra no Rio de Janeiro, no bairro da Paciência, que possuem seu nome.
Maurício foi preso no final de setembro de 1975, em São Paulo, na Bela Vista. Levado diretamente a uma Casa da Morte, em Itapevi, ou para uma fazenda em Araçariguama, na rodovia Castello Branco, foi submetido, durante dias, a torturas ininterruptas, sendo executado pelos seus algozes com uma injeção de mata-cavalos.
Sabedores de que guardava cerca de 60 mil dólares por conta do trabalho gráfico clandestino que realizava, os agentes da ditadura foram até sua residência e lá completaram o butim, dividindo o produto do roubo entre si.
O corpo de Maurício foi levado, segundo um de seus carrascos, até uma ponte numa estrada na altura de Avaré, sendo lançado ao rio. Seus restos mortais nunca foram localizados. Foi morto aos 32 anos de idade. Ele é uma das centenas de desaparecidos da ditadura militar, de acordo com o relatório final da Comissão da Verdade.
Mas sua face sempre jovial, seu sorriso gentil e sua amizade revolucionária ficarão para sempre no coração dos que tiveram o privilégio de conhecê-lo, em que por breves e arriscados momentos.
2.
Em boa hora, aos 50 anos de seu assassinato pela ditadura militar, a Fundação Astrojildo Pereira e a Fundação Escola de Sociologia e Política realizaram na sede desta última, em São Paulo, um tributo a José Montenegro de Lima, sob a chamada “Cadê o Magrão?”, que reuniu, no último dia 29 de setembro, público considerável, entre antigas amigas e amigos, ex-militantes, jornalistas, advogadas e advogados, professores e estudantes, em que se entremearam homenagens e depoimentos tocantes.
Lá ficamos sabendo, por exemplo, que entre suas músicas preferidas estava o hit “Pavão Mysteriozo”, lançado em 1974 pelo compositor e cantor cearense Ednardo, conterrâneo e integrante da mesma geração de Magrão.
Dizem os versos dessa canção: “Pavão misterioso / Pássaro formoso / Tudo é mistério / Nesse seu voar / Ai, se eu corresse assim / Tantos céus assim / Muita história eu tinha pra contar”.
Em sua incansável militância, solidária e resistente, como já aponta o enorme dossiê colecionado pela Fundação Astrojildo Pereira e disponível ao público, os muitos voos clandestinos de Maurício ou Magrão ou José Montenegro de Lima deixaram como herança muitíssimas histórias e memórias para os que sonham e lutam por um mundo justo, igualitário e harmônico.
E diz ainda sua música preferida: “Pavão misterioso / Nessa cauda aberta em leque / Me guarda moleque / De eterno brincar / Me poupa do vexame / De morrer tão moço / Muita coisa ainda quero olhar”. Aqui, a história bruta de uma ditadura militar assassina não o poupou e tolheu, aos 32 anos, sua missão revolucionária.
Mas, restamos nós, com nossa memória e luta: “Pavão misterioso / Meu pássaro formoso / Um conde raivoso / Não tarda chegar / Não temas, minha donzela / Nossa sorte nessa guerra / Eles são muitos / Mas não podem voar”.
E, certamente, nessa magnífica cauda aberta em leque de todas as cores, viajamos todos nós que lembramos do triste fim de Maurício-Magrão. E que reunimos, no destino misterioso do voo do pavão, as forças do conhecimento, da arte e da razão: “Desmancha isso tudo / Que não é certo não”.[1]
*Francisco Foot Hardman é professor titular em Literatura e Outras Produções Culturais da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Minha China tropical: crônicas de viagem (Unesp). [https://amzn.to/42nrjKN]
Nota
[1] A primeira versão deste texto foi apresentada no evento “1964 x 2021: a história contra o mito” no IEL-Unicamp, a 29/03/2021. Foi revista e ampliada a partir do evento “Cadê o Magrão? – Tributo a José Montenegro de Lima, dirigente da juventude do antigo PCB, ‘desaparecido’ há 50 anos”, na FESP-SP, a 29/03/2025.
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