Por DANIEL R. BONOMO*
Comentário sobre o livro de Marcus Vinicius Mazzari
Pouco após sua generosa dedicação à complicadíssima tarefa de anotar as duas partes do Fausto de Goethe, oferecendo ao público brasileiro comentários valiosos, precisos, derivados do prolongado convívio com a tragédia maior da modernidade, Marcus Vinicius Mazzari tira a lume excelente reunião de ensaios, Labirintos da aprendizagem, dedicada à compreensão de temas fundamentais dos estudos literários como o pacto fáustico e o romance de formação (Bildungsroman).
Conforme a sugestão errante do título e segundo a natureza tateante do gênero escolhido (ensaio), trata-se de abordagens críticas que, embora a todo momento acompanhadas de observações rigorosas, consideram ainda a vacilação e elasticidade que o tratamento abrangente das questões literárias demanda. Desde as páginas introdutórias, o dilema da coesão e disparidade que a procura do autor por justificativas adverte: Goethe, Rosa, Keller, Pompéia, Musil, Bandeira, Brecht. Sugestivamente, empresta-se o “fio vermelho” da marinha inglesa, que, entretecido nos mais diversos objetos, em tudo acusa a coroa e sua propriedade, correspondendo, nas Afinidades eletivas, a um “fio de afeto e dileção” verificável nas anotações desiguais da moça Otília.
No conjunto de ensaios de Mazzari, costura-se a fibra amplamente: seria o recurso comparatista, bem como a presença dominante de autores das literaturas brasileira e alemã talvez sua tecelagem. Recorre-se, como é usual no domínio da literatura comparada, às afinidades e aos vínculos possíveis dos pares – também comparar significa pensar (denken heißt vergleichen): aproximam-se Rosa e Keller, na abordagem das suas obras capitais, uma “autobiografia irracional” (Grande sertão) e uma “vida romanceada” (O verde Henrique); também os livros de Pompéia e Musil, “ficcionalizações das experiências de internato”; bem como Bandeira e Brecht na “complexa simplicidade da expressão lírica”; e ainda Kafka e Grass, “prosadores da resistência”.
No entanto, a aparência reguladora das afinidades é ameaçada desde o instante primeiro da sua formulação. Mazzari o sabe: plantar as semelhanças e colher as diferenças, assustar (recorde-se a aversão da moça Otília em face dos símios) o entendimento constitui, dialeticamente, a disciplina que assim “conscienciosa e hesitante” – resulta original. Quer dizer, a oscilação entre o par e o ímpar e o díspar nada tem que ver com a indecisão do método, mas, superando a contradição, diz respeito à seriedade do procedimento analítico de Mazzari, reconhecidamente experimental, como é próprio à investigação científica. Para repetir o jagunço Riobaldo: macaco, aqui, “veste roupa”.
No primeiro e mais extenso dos ensaios, Mazzari enfrenta Grande sertão: veredas, privilegiando sua condição misturada de romance de formação e narrativa fáustica. Recorre a conhecimento incomum da tradição literária alemã e escolhe momentos decisivos desde o Parzifal, de Wolfram von Eschenbach, até a narrativa do pactário Leverkühn, de Thomas Mann, a fim de aproximar-se do romance de Guimarães Rosa. Procedimento justo, que a familiaridade do escritor mineiro com a língua, a literatura e a cultura alemã – “num levantamento recente, constatamos a presença de mais ou menos 360 títulos na biblioteca do escritor pertencente ao Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo que atestam a convivência com autores e temas alemães” – reclama, bem como a vocação primeira da obra de Rosa, traduzida, desde o Sagarana, no lugar-comum da síntese entre regional e universal.
Trata-se de questionar, portanto, as dimensões do Grande sertão, bem como deparar com a pergunta muito legítima: que significa uma fabulação romanesca, “demanda guerreira e amorosa”, lado a lado com os nomes de Joyce, Proust, Kafka ou Musil? De fato, como diz Mazzari, surge a “impressão do extemporâneo”. E duplamente: por um lado, Guimarães Rosa ecoa o regionalismo local, respondendo à tradição rural da literatura brasileira, que o distancia dos nomes citados; por outro, no Grande sertão há elementos de “um épico ainda mais remoto”, recuando a propriedades do romance de cavalaria.
No entanto, poderíamos afirmar que surge também a “expressão do contemporâneo”, isto é, sua conformidade com o romance moderno de outras culturas, realizada no artifício complexo e multiforme do sermo riobaldinus. Para o crítico, inevitável a pergunta: como enfrentar a desordem, o diabo no texto? Conforme a lição do velho jagunço, Deus é paciência, espera a “gastança” (formação?). Conforme a lição de Mazzari, assim também a água da atividade crítica (tanto bate até que fura).
Inicialmente, será reconhecida a especificidade do demo rosiano, uma vez que a narrativa sertaneja é contraposta às mais importantes realizações do motivo literário do pacto: o livro popular de 1587, Historia von D. Johann Fausten, a Tragicall History de Marlowe, o Fausto de Goethe, o Doutor Fausto de Mann, especialmente. (A título de contribuição, recordemos que durante a permanência de Rosa em Hamburgo, segundo anotação do seu diário, o escritor conheceu o romance de Selma Lagerlöf de 1891, Gösta Berling, no qual tanto o motivo do pacto quanto a formação do cavaleiro pertencem ao principal da ação.)
No estudo de Mazzari, o método comparativo possibilita afirmar a particularidade que, no Grande sertão, reside sob o signo do “ominoso”. Pois o elemento cômico, caríssimo a Rosa em tanto aspecto, não pertence ao diabo – “O-que-nunca-se-ri, o Sem-Gracejos” –, em contrariedade com o maligno burlesco de Marlowe, com o irônico de Mann e com o jocoso de Goethe; divergindo, ainda, do diabo “pusilânime e queixoso” que surge a Ivan Karamázov no livro de Dostoiévski. Na sequência do estudo – passo importante da análise –, procura-se distinguir o maligno do mal, o devil do evil, der Böse e das Böse, na fala confusa do narrador. Da aparição inicial do “bezerro erroso” como possível manifestação do maligno, passando pelos causos do Aristides, do Jisé Simpilício, do Aleixo, Pedro Pindó, Jazevedão e ainda Maria Mutema, exemplos do mal em prática, constrói-se na fala de Riobaldo a paisagem sertaneja como espaço de “subdemonidade” (expressão colhida ao romance de Mann).
Somos conduzidos pouco a pouco, dessa forma, à questão sempre mais humana com que lida o narrador: o homem que “quem sabe?” é o diabo e o Deus do homem – Quelemém sabe? Nesse sentido, Hermógenes é emblemático, personagem ainda muito expressivo e impenetrável, “irredutível e incondicionalmente maligno”, a maldade nos atos e o vínculo com o diabo, endossando nesse, ainda, a feição ominosa. Elucidativa, aqui, é a comparação com o Simplicissimus, de Grimmelshausen, que insere a representação do mal em dinâmica histórica, resumida no discurso e ações do personagem Olivier; o caráter de Hermógenes, por sua vez, parece ignorar pressupostos outros que não a espontaneidade do mal congênito, acentuando a índole mítica do personagem.
Ainda no tema fáustico, acompanhamos a preparação para o pacto e sua realização duvidosa. Compreende-se melhor, com Mazzari, a verdadeira mestria com que Rosa organiza a cena a partir das repetidas referências ao trato efetuado por Hermógenes, a partir, sobretudo, da sequência de eventos e indícios que anunciam o encaminhamento do pacto de Riobaldo com a intensificação das adversidades que atingem o bando de jagunços sob a chefia de Zé Bebelo após a batalha na Fazenda dos Tucanos: a inquietude e o encontro com os catrumanos, o vislumbrar da encruzilhada, o episódio com o fazendeiro Habão, a notícia da chegada de João Goanhá, questionando a chefia.
A cena do pacto, propriamente, conta com elementos buscados à tradição, como a escolha do número “três” (somente a terceira tentativa de Riobaldo será “bem-sucedida”), da meia-noite, a alusão ao “cão que me fareja”, a situação arranjada na “concruz dos caminhos” (espelhada ainda no céu do Cruzeiro do Sul), as cláusulas e a invocação. E há também os efeitos do pacto: o frio e a febre e o fim dos sonhos, a agressividade, a falação e as ordens e a chefia conquistada com violência parecem confirmar o início dos “prazos”.
No entanto, peculiar ao romance de Rosa é a indeterminação que o silêncio do pacto e a dimensão subjetiva da cena produzem. Nesse aspecto, ressalta-se a ambiguidade da cena transcorrida no íntimo do protagonista: “Ei, Lúcifer! Satanás, dos meus Infernos!”. Tais indefinição e subjetividade do acordo com o maligno são cruciais para a análise de Mazzari, que dirige o estudo para a conclusão ao deslocar o foco da tradição fáustica para a do romance de formação. Já a simultânea configuração do moderno e extemporâneo no romance de Rosa contribui para o entendimento da “transformação alquímica da existência” na trajetória de Riobaldo conforme a linhagem dos “romances de iniciação”.
O modelo – tanto no sentido da iniciação dos antigos quanto da formação dos modernos – é em muitos aspectos contrário à noção de ruptura (Durchbruch) que a ação fáustica comumente propõe. Segundo o paradigma do romance de formação, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, a felicidade decorre do conhecimento dos limites que necessariamente podam a aspiração incondicional do sujeito, elemento estranho à satisfação irrefreável dos desejos e aspirações dos mais conhecidos pactários. À diferença desses, o “iniciante” Riobaldo desconhece o movimento certeiro, mas associa-se à dúvida própria ao custoso exercício da liberdade, como bem exemplificam as passagens da narrativa em que supera a natureza impetuosa e evita a consumação do estupro ou assassinato.
No plano da ação, mais semelhanças apontam para o alinhamento com a espécie do Wilhelm Meister: assim a fuga da casa paterna, por exemplo, ou a educação dos sentimentos com as diferentes mulheres; assim o amplo e diverso número de personagens que cruzam os caminhos do protagonista, a profusão de aventuras; assim os ensinamentos, a importância de Zé Bebelo, sobretudo; assim as “vicissitudes e contradições da realidade”, os erros e o amadurecimento paulatino, “no sentido de uma conscientização de seu papel no mundo”, encaminham a decisão crítica de Mazzari: “Grande sertão: veredas pode ser visto de modo legítimo na tradição do romance de formação e desenvolvimento”.
Tal associação, contudo, não quer “apanhar a lua e os astros com a mão e guardá-los em sua caixinha”, para usar da expressão de Schlegel mencionada no ensaio sobre Keller. Aliás, somente nesse – contribuição rara para o estudo do realismo burguês alemão, bastante desconhecido do público brasileiro –, tamanha a complexidade do assunto, complementa-se a questão crítica do primeiro ensaio, desdobrando a problematização histórica do conceito (Bildung, formação) que intitula a modalidade (Bildungsroman, romance de formação) e suas formas de compreensão. Talvez seja esse a propósito o movimento geral do livro de Mazzari, um movimento de expansão, que os ensaios, uma vez lidos, dilatam-se translúcidos uns sobre os outros. Não o velho recurso da épica, formulado como “redução perspectivística do entendimento” por Musil, mas a ampliação realizada por vias as mais difíceis quanto podem ser as obras de Goethe, Rosa, Keller, Pompéia, Musil, Bandeira, Brecht.
*Daniel R. Bonomo é professor de literatura brasileira na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Publicado originalmente na revista Estudos Avançados no. 71, abril de 2011.
Referência
Marcus Vinicius Mazzari. Labirintos da aprendizagem: pacto fáustico, romance de formação e outros temas de literatura comparada. São Paulo, Editora 34, 2010, 320 págs.