Leão XIV

Imagem: Paolo Bici
image_pdf

Por LEONARDO BOFF*

Do Peru ao Vaticano, a jornada do Papa Leão XIV — e a missão impossível de desocidentalizar uma Igreja que insiste em vestir as roupas do Império Romano

1.

Confesso que fiquei surpreso com a nomeação do Cardeal norte-americano-peruano Robert Prevost ao supremo pontificado da Igreja. Isso por ignorância minha. Depois, ao informar-me melhor, vendo youtubes e falas dele no meio do povo, de pé em plena inundação de uma cidade peruana e seu cuidado especial para com os indígenas (a maioria dos peruanos) me dei conta de que ele realmente pode ser a garantia da continuidade do legado do Papa Francisco.

Não terá o carisma do último Papa, mas será ele mesmo, mais contido e tímido, mas muito coerente com suas posições sociais, inclusive críticas face ao presidente Donald Trump e ao seu vice. Não sem razão que o Papa Francisco o chamou de sua diocese de pobres no Peru e o convocou para uma função importante na administração do Vaticano.

Leão XIV viveu grande parte de sua vida fora dos EUA, por muitos anos como missionário e depois como bispo no Peru, onde certamente colheu farta experiência de outra cultura e da situação social pobre da maioria da população. Explicitamente confessou que se identificou com aquele povo a ponto de naturalizar-se peruano.

Sua primeira fala ao público foi contra minhas expectativas iniciais. Foi um discurso piedoso e feito para o interno da Igreja. Nunca ocorreu a palavra pobre, menos ainda libertação, ameaças à vida e o clamor ecológico. O tema forte foi a paz especialmente “desarmada e desarmante”, suave crítica ao que está ocorrendo nos dias de hoje de forma dramática como a guerra na Ucrânia e o genocídio, a céu aberto, de milhares de inocentes crianças e civis na Faixa de Gaza. Pareceria que tudo isso não estivesse na consciência do novo Papa. Mas estimo que tudo isso voltará em breve, pois tais tragédias foram tão fortes nos discursos do Papa Francisco, seu grande amigo, que ainda devem ressoar nos ouvidos do novo Papa.

O Papa Francisco como jesuíta possuía um raro senso de política e do exercício do poder, pelo famoso “discernimento do espírito”, categoria central da espiritualidade inaciana. Minha pressuposição é que ele viu no Cardeal Robert Prevost um possível sucessor seu. Não pertencia à velha e já decadente cristandade europeia, vinha do Grande Sul, com a experiência pastoral e teológica madurada na periferia da Igreja, no caso do Peru, onde com Gustavo Gutiérrez, nasceu e se desenvolveu a teologia da libertação.

Seguramente, com sua maneira suave e seu caráter afeito a escutar e a dialogar, levará avante os desafios assumidos e as inovações enfrentadas pelo Papa Francisco, o que não é o caso de aqui enumerá-las.

2.

Mas terá outros desafios, no meu ponto de vista, nunca tomados a sério pelas intervenções dos papas anteriores: como desocidentalizar e despatriarcalizar a Igreja Católica face à nova fase da humanidade. Ela se caracteriza pela planetização da humanidade (não só em sentido econômico, agora perturbada por Donald Trump) que, de fato está ocorrendo a passos cada vez mais rápidos em termos políticos, sociais, tecnológicos, filosóficos e espirituais. Nesse processo acelerado, a Igreja Católica em sua institucionalidade e na forma como se estruturou hierarquicamente, comparece como uma criação do Ocidente. Isso é inegável.

Por detrás de tudo, está o clássico direito romano, o poder dos imperadores com seus símbolos, ritos e forma de exercício do poder centralizado numa autoridade máxima, o Papa, “com o poder ordinário, máximo, pleno, imediato e universal” (cânon 331), atributos que, na verdade, caberiam somente a Deus. Acresce ainda sua infalibilidade em assuntos de fé e moral. Mais longe não se poderia ir. O Papa Francisco conscientemente se afastou deste paradigma e começou a inaugurar outro modelo de Igreja simples e pobre e em saída para o mundo.

Isso não tem nada a ver com o Jesus histórico, pobre, pregador de um sonho absoluto, o Reino de Deus e severo crítico a todo o poder. Mas foi o que ocorreu: com a erosão do Império romano, os cristãos, feitos Igreja, com alto senso de moralidade, assumiram a reordenação do império romano que atravessou séculos. Mas isso é criação da cultura ocidental.

A mensagem originária de Jesus, seu evangelho, não se exaure nem se identifica com esse tipo de encarnação, pois a mensagem de Jesus é de abertura total a Deus como Abba (paizinho querido), ilimitada misericórdia, o amor incondicional até aos inimigos, a compaixão pelos caídos nas estradas da vida e a vida como serviço aos demais. O atual Papa Leão XIV não ficará imune a este desafio. Queremos ver e apoiar a sua coragem e fortaleza para enfrentar os tradicionalistas e dar passos na referida direção.

3.

Um grande, imenso desafio para qualquer Papa, é relativizar essa forma de organizar o cristianismo para que possa ganhar novos rostos nas várias culturas humanas. O Papa Francisco deu largos passos nesta direção. O atual novo Papa acenou para este diálogo em sua fala inaugural. Enquanto não se caminhe firmemente nesta desocidentalização, para muitos países o cristianismo será sempre coisa do Ocidente. Foi cúmplice da colonização de África, das Américas e da Ásia e assim ainda é visto assim pelas inteligências dos países que foram colonizados.

Outro desafio não menor consiste na despatriarcalização da Igreja. Ele já foi referido acima. Na direção da Igreja só existem homens e estes celibatários e ordenados no sacramento da Ordem (padre a Papa). O fator patriarcal é visível na negação às mulheres ao sacramento da Ordem. Elas compõe, de longe, a maioria dos fiéis e são as mães e as irmãs da outra metade, dos homens da Igreja e da humanidade. Essa exclusão machista fere o corpo eclesial e coloca em xeque a universalidade da Igreja. Enquanto não se abre a possibilidade às mulheres, como ocorreu em quase todas as igrejas, de acederem ao sacerdócio ela mostra seu arraigado patriarcalismo e sua marca de um Ocidente cada vez mais um Acidente na história universal.

Junto a isso a manutenção obrigatória do celibato (feito lei) faz com que o caráter patriarcal ainda se radicalize mais e favoreça o antifeminismo que se nota em estratos da hierarquia eclesiástica. Como é apenas uma lei humana e histórica e não divina, nada obsta que seja abolida e se permita o celibato opcional.

Estes e muitos outros desafios deverá o novo Papa enfrentar, pois cresce mais e mais na consciência dos fiéis o sentido evangélico de participação (a sinodalidade) e da igualdade em dignidade e direitos de todos os seres humanos, homens e mulheres. Por que na Igreja Católica deveria ser diferente?

Estas reflexões pretendem ser um desafio permanente a ser enfrentado por quem foi escolhido para o mais alto serviço de animação da fé e de direção dos caminhos da comunidade cristã como a figura do Papa. Chegará o tempo em que a força destas mudanças se fará tão exigente que ela ocorrerá. Então será uma nova primavera da Igreja que se tornará tanto mais universal quanto mais assumirá questões universais e dará a sua contribuição para respostas humanizadoras.

*Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Eclesiogênese: a reinvenção da Igreja (Record). [https://amzn.to/435ZQg4]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
3
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
4
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
5
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
6
A riqueza como tempo do bem viver
15 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: Da acumulação material de Aristóteles e Marx às capacidades humanas de Sen, a riqueza culmina em um novo paradigma: o tempo livre e qualificado para o bem viver, desafio que redireciona o desenvolvimento e a missão do IBGE no século XXI
7
A crise do combate ao trabalho análogo à escravidão
13 Dec 2025 Por CARLOS BAUER: A criação de uma terceira instância política para reverter autuações consolidadas, como nos casos Apaeb, JBS e Santa Colomba, esvazia a "Lista Suja", intimida auditores e abre um perigoso canal de impunidade, ameaçando décadas de avanços em direitos humanos
8
Norbert Elias comentado por Sergio Miceli
14 Dec 2025 Por SÉRGIO MICELI: Republicamos duas resenhas, em homenagem ao sociólogo falecido na última sexta-feira
9
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
10
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
11
Ken Loach: o cinema como espelho da devastação neoliberal
12 Dec 2025 Por RICARDO ANTUNES: Se em "Eu, Daniel Blake" a máquina burocrática mata, em "Você Não Estava Aqui" é o algoritmo que destrói a família: eis o retrato implacável do capitalismo contemporâneo
12
A anomalia brasileira
10 Dec 2025 Por VALERIO ARCARY: Entre o samba e a superexploração, a nação mais injusta do mundo segue buscando uma resposta para o seu abismo social — e a chave pode estar nas lutas históricas de sua imensa classe trabalhadora
13
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
14
Benjamim
13 Dec 2025 Por HOMERO VIZEU ARAÚJO: Comentário sobre o livro de Chico Buarque publicado em 1995
15
Violência de gênero: além do binarismo e das narrativas gastas
14 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Feminicídio e LGBTfobia não se explicam apenas por “machismo” ou “misoginia”: é preciso compreender como a ideia de normalidade e a metafísica médica alimentam a agressão
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES