Por CRISTHYANO RODRIGUES DO CARMO BARBALHO*
As liberdades de pensamento e reunião jamais deverão ser utilizadas como instrumentos que possam inserir ilegalidades mascaradas no Estado Democrático de Direito
A ditadura militar, sem sombra de dúvidas, foi um dos eventos mais sombrios da recente história do Brasil ao suprimir, efetivamente, os direitos e garantias, dentre eles as liberdades democraticamente advindas da Constituição de 1946.
Diante da instauração do regime ditatorial, “em 1967 é elaborada nova Constituição, mantendo formalmente a liberdade de expressão (art. 150, § 8º), com os mesmos limites impostos pela Constituição de 1946 e pelo Ato Institucional no. 2”.[i] Além disso, também foi mantido o direito de reunião no artigo 150, §27. Nesse período, entre os atos institucionais editados, destacou-se o Ato Institucional nº 5 (AI 5) instituído em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do general Costa e Silva, ficou conhecido como “o ano que não acabou”.[ii]
O AI 5 “produziu um elenco de ações arbitrárias de efeitos duradouros. Definiu o momento mais duro do regime, dando poder de exceção aos governantes para punir arbitrariamente os que fossem inimigos do regime ou como tal considerados”.[iii]
Em 1969, com a edição da Emenda Constitucional nº 1, já se sentia os severos efeitos das restrições impostas pelos militares aos direitos as liberdades de expressão e reunião, cuja previsão normativa era tão somente uma maquiagem a realidade.
Quando veio abaixo o regime ditatorial, uma nova luz de esperança ressurgiu iluminando o caminho do país para a redemocratização, trazendo de volta consigo os inúmeros direitos que haviam sido suprimidos, dentre eles as liberdades de expressão e reunião.
Em 05 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Cidadã, o Presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulisses Guimarães, em discurso marcante, ao afirmar que “Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério”.[iv]
A partir desse discurso foi possível prever que a nova Constituição teria gênese democrática, conferindo liberdades individuais e coletivas aos cidadãos, sendo esta uma forte resposta àqueles que impuseram o regime ditatorial, silenciando a população de pensar e se reunir.
As liberdades de pensamento e reunião, ora em comento, foram inseridas pelo legislador constituinte originário na Constituição Federal de 1988, Título II que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais, mais precisamente no Capítulo I, que elenca o rol de Direitos e Garantias Individuais e Coletivas.
Na abordagem dos direitos das liberdades de pensamento e reunião, convém tratar de questões atinentes a proteção e limitações do seu exercício em consonância com a Constituição. A liberdade de pensamento assegurada pelo artigo 5º, IV, estabeleceu que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.”[v]
O direito de reunião assegurado no artigo 5º, XVI, que dispõe que “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”.[vi]
Primeiramente, é importante esclarecer que os direitos e garantias individuais e coletivos previstos na Constituição Federal de 1988 não podem ser exercidos de forma absoluta, salvo exceções. Nesse cenário, os direitos das liberdades de pensamento e reunião também estão inseridos numa classificação relativizada, uma vez que o seu exercício pode entrar em conflito com outros direitos e garantias previstos na Constituição, onde não há hierarquia de um em relação ao outro.
No caso concreto, os conflitos de interesses são ponderados com especial atenção aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, respectivamente. Além disso, devem ser considerados sob a ótica do princípio da dignidade da pessoa humana.
A liberdade de expressão do pensamento tem sua base originária no Bill of Rights em 1689. Em 1769, esse direito fundamental surge na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, sendo este diploma um marco na consagração das liberdades individuais e coletivas.
A liberdade de expressão do pensamento, em regra, deve ter ampla proteção, tendo o indivíduo incorporado ao seu direito à livre escolha de exteriorizar o pensamento, cabendo ao Estado abster-se de restringi-lo.
Em que pese a regra seja a liberdade do indivíduo de expressar o seu pensamento, há casos excepcionais que admite a restrição quando, no caso concreto, haverá uma ponderação se o exercício desse direito coloca em risco bens jurídicos de terceiros tutelados pelo Estado.
Por outro lado, o direito à liberdade de reunião tem sua gênese no princípio republicano e está agasalhada aos direitos de liberdade de expressão. “Trata-se de um direito de aspecto eminentemente instrumental, que visa assegurar a livre expressão das ideias, incluindo-se, em seu âmbito de proteção, o direito de protestar.”[vii]
“A noção de reunião é suficientemente ampla para acomodar tanto manifestações estáticas, circunscritas a um único espaço territorial, como para acolher situações mais dinâmicas, em que há o deslocamento dos manifestantes por vias públicas.”[viii]
Desse modo, a liberdade de reunião tem “uma dimensão negativa, consubstanciada no dever de não interferência do Estado em seu exercício; por outro, uma dimensão positiva, presente no dever do Estado de “proteger os manifestantes, assegurando os meios necessários para que o direito à reunião seja fruído regularmente”.[ix]
A Constituição Federal de 1988 elenca dois limites condicionantes ao seu exercício, sendo a primeira exigência de reunião pacífica e sem armas. Quanto a segunda exigência, trata-se do lugar escolhido e o prévio aviso a autoridade competente, para que não seja frustrado o bem jurídico de terceiros.
A democracia pressupõe que a sociedade sempre deve ter o seu direito voz e reunião assegurados em diversos campos e segmentos. A efetiva utilização dessas garantias constitucionais pelo indivíduo em vários períodos da história do Brasil tem demonstrado a sua importância no postulado do Estado Democrático de Direito.
Essas garantias devem receber maior proteção, para que a sociedade a utilize de forma ampla e irrestrita quando sempre se fizer necessária a manutenção da democracia no país. É a partir das garantias individuais e coletivas conferidas em uma constituição promulgada pela vontade do povo que a democracia subsistirá, afastando as garras do totalitarismo que um dia escureceu os céus do Brasil.
As liberdades de pensamento e reunião jamais deverão ser utilizadas como instrumentos que possam inserir ilegalidades mascaradas no Estado Democrático de Direito, em especial aquelas que visem ameaçar a sua estrutura, de modo a não mais flertar com o autoritarismo.
A proteção as liberdades de pensamento e reunião devem ser celebradas e estimuladas em benefício da manutenção da democracia, mas sempre com um olhar atento aos preceitos constitucionais.
*Cristhyano Rodrigues do Carmo Barbalho é advogado.
Notas
[i] SARMENTO, Daniel. Comentário ao artigo 5º, IV. In CANOTILHO, J. J. Gomes et al. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 517.
[ii] Fundação Getúlio Vargas. O AI5. Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/AI5.
[iii] Fundação Getúlio Vargas. O AI5. Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/AI5.
[iv] BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Integra do Discurso Presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Dr. Ulisses Guimarães. Disponível em: https://www.camara.leg.br/radio/programas/277285-integra-do-discurso-presidente-da-assembleia-nacional-constituinte-dr-ulysses-guimaraes-10-23/.
[v] Brasil. [Constituição (1988)] Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, compilado até a Emenda Constitucional no 125/2022. – Brasília, DF: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2022. p.13.
[vi] Brasil. [Constituição (1988)] Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, compilado até a Emenda Constitucional no 125/2022. – Brasília, DF: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2022. p.13.
[vii] NOVELINO, Marcelo. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016. p. 370-371.
[viii] BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Comentário ao artigo 5º, XVI. In CANOTILHO, J. J. Gomes et al. Comentários à Constituição do Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 641.
[ix] NOVELINO, Marcelo. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016. p. 371.
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