Por VINÍCIUS DE OLIVEIRA PRUSCH*
Ensinar literatura é, sob a luz adorniana, um ato de resistência. Resistência à semiformação, à lógica da troca e à barbárie, através da valorização do estranho, do complexo e da autonomia da forma estética que, mediando as contradições do mundo, oferece um vislumbre de emancipação
Começo sendo franco: Theodor Adorno não falou diretamente sobre como ensinar literatura. Um título mais próprio para este texto talvez fosse “Lições que desenvolvi a partir dos textos de Theodor Adorno para a aula de literatura”. Mas soa muito mal, então fiquemos com o que está.
Pensei também em enumerar as lições: “Dez lições de Theodor Adorno para a aula de literatura”. Venderia mais, talvez, mas seria certamente menos adorniano. Fiquemos, então, com nove lições, que foi o número a que cheguei sem forçar a mão, e sem mencionar o número no título.
Sem mais delongas, vamos às lições:
Há que se valorizar a estranheza dos objetos
É bastante comum, nas discussões sobre ensino, defender-se que se deve atender às “demandas” dos alunos. O termo entre aspas aqui já deverá causar arrepios. É claro que é importante dialogar com a realidade do estudante. Paulo Freire nos ensina isso muito bem. Mas lidar com os limites disso é um jogo complexo.
Além disso, talvez tão importante quanto dialogar com a realidade do estudante seja tirar proveito de aspectos dos textos que lhe causem surpresa ou que ele não entenda de saída. Não só porque teremos sua curiosidade atiçada, mas especialmente porque o estranho abre espaço para o contato com o diferente, com o outro, com uma coisa diversa da mesmice capitalista.
Não à toa, movimentos totalitários tendem a censurar e destruir obras “estranhas” e a alimentar obras que sigam padrões muito bem determinados. Algo nessas formas deve apontar para a liberdade, afinal.
Há que se manter os conceitos abertos ao movimento dos objetos
Pensar é criar conceitos. Não há como nem por que fugir disso na filosofia e na crítica literária. O mesmo se passa na aula de literatura. Teremos em mente tanto noções mais gerais, referentes a escolas literárias, como realismo e modernismo, quanto ideias mais específicas, como dialética da malandragem (Antonio Candido) ou ideias fora do lugar (Roberto Schwarz).
A grande questão é que é fundamental, se quisermos ser verdadeiramente dialéticos, não aplicar conceitos do alto. “Para o conceito, o que se torna urgente é o que ele não alcança, o que é eliminado pelo seu mecanismo de abstração, o que deixa de ser um mero exemplar do conceito” (Adorno, 2009, p. 12). Trata-se, assim, de perseguir o mais proximamente possível o movimento interno aos objetos, mantendo-se em mente a ideia de que os conceitos nunca darão conta de tudo.
Não vale, portanto, ao menos para Theodor Adorno, a clássica forma de dar aula que vemos tanto em cursinhos pré-vestibular e em escolas: primeiro, definem-se as coisas; depois, exemplifica-se com os textos literários. Há que se definir a partir dos textos, na relação íntima com eles.
Há que se ter em mente a semiformação
“Em princípio todos são objetos, mesmo os mais poderosos” (Adorno, 1951, p. 27). Isso quer dizer, fundamentalmente, que todos são vítimas da reificação, que adentra a mente, simplifica e falsifica as coisas. Não se trata somente do sucateamento da educação. Trata-se de uma semiformação ou semicultura (Adorno; Horkheimer, 1985) inerente ao sistema capitalista tardio.
Isso não significa que o professor ou a professora deve simplificar o conhecimento e os textos literários. Tal coisa apenas contribuiria com a semiformação. Ele ou ela terá, entretanto, de mediar tudo, possivelmente de novo e de novo. Isso exige de quem ensina uma grande capacidade de dizer a mesma coisa de formas diversas, bem como de refazer os passos que talvez antes fossem inconscientes na sua própria mente.
Há que se ensinar para evitar a barbárie
É bastante conhecida a máxima de Theodor Adorno (2003) de que se deve ensinar com o objetivo de que Auschwitz não se repita. No Brasil, além disso, podemos dizer que é importante ensinar para que a ditadura não se repita. Mas que isso quer dizer no caso do ensino de literatura?
Certamente não quer dizer que devamos usar textos literários que lidam diretamente com a violência como exemplo do que não fazer. “As ditas representações artísticas da dor física nua e crua daqueles que levaram coronhadas contêm, ainda que de modo distante, a possibilidade de que prazer seja retirado delas” (Adorno, 2019, p. 358, tradução minha). A violência significa, geralmente, ausência de mediação, e precisamos justamente de mediação.
Somente o respeito à autonomia das formas estéticas autônomas pode levar a um ensino de literatura emancipatório. A violência está lá, afinal, mas de forma mediada. Em Beckett e Kafka, mas também em Machado e Guimarães Rosa.
Há que se falar a partir do presente
Pode parecer óbvio. O que quero dizer é que somente é possível falar da arte do passado à luz da arte do presente. Não à toa a Teoria estética de Adorno (1993) parte do estado da arte no capitalismo tardio. É impossível fugir às determinações de uma época.
Em nosso tempo histórico, a autonomia estética, que já se mostrava em crise no momento de Adorno, está quase sumindo. Parece que, cada vez mais, importa muito a vida pessoal do artista, por exemplo.
Nesse contexto, é preciso um movimento que parta dessa realidade e, a partir dela, recupere para os alunos e as alunas o que costumava ser uma autonomia no sentido forte do termo.
Há que se respeitar a natureza ambivalente da forma estética
Por natureza ambivalente quero dizer que, para o Adorno da Teoria estética, a forma estética, olhada de determinado ângulo, formaliza contradições históricas não resolvidas (Adorno, 1993, p. 16), e, olhada de um ângulo diverso, é “a antítese social da sociedade” (Adorno, 1993, p. 19).
Por antítese da sociedade, o autor quer dizer que a arte autônoma se relaciona de modo diverso, em comparação com a razão instrumental, com a natureza, com o mundo. Trata-se de uma forma não violenta, não dominante de relação.
É fundamental, assim, que se valorize tanto um aspecto da arte quanto o outro nas aulas de literatura. Por um lado, ajudar os e as estudantes a enxergar as contradições sociais nas formas estéticas. Por outro, propiciar a eles e elas o contato com essa lógica outra que elas também carregam.
Há que se ensinar a separar domínio técnico de complexidade
Há uma passagem muito interessante no ensaio “Transparências do filme”. Discorrendo sobre Chaplin, Adorno (2021, p. 132) lembra que o cineasta não tinha domínio sobre as técnicas do cinema, mas, nem por isso, sua arte saía desfalcada. O caso é que sua complexidade estava em outro lugar. Estava, por exemplo, como marca Adorno em outro ensaio (“Duas vezes Chaplin”), na exploração da figura do clown (Adorno, 2021, p. 143).
Uma obra pode, assim, parecer simplíssima e ser, na verdade, bastante complexa. O segredo está em saber procurar onde está o centro de sentido da forma, o que certamente é mais fácil de dizer do que de cumprir e de ensinar.
O mais fundamental a ser ensinado, nesse sentido, é que não existem regras do que torna um objeto estético interessante. As coisas têm de ser estudadas caso a caso. Do contrário, corre-se o risco de perder completamente o fio da meada de uma obra.
Há que se evitar o princípio da troca
No cotidiano capitalista, impera a ideia de que tudo pode ser trocado por outra coisa. Essa lógica tende a adentrar todo tipo de relação, coisa que certamente é piorada por nosso tempo neoliberal. O que pode acontecer é que o estudante espere algo em troca por sua leitura. Uma lição, um aprendizado ou algo do tipo.
A questão é que a obra autônoma se nega a dar algo em troca tão facilmente. Existe certa resistência por parte da forma, digamos, ao sentido fácil. A força dos tempos é tal, porém, que mesmo certas obras autônomas podem ser transformadas pelo leitor nesta outra coisa, passível de troca.
“Em virtude do não cambiável, ela [a arte] deve, através da sua forma, levar o cambiável à auto-consciência crítica” (Adorno, 1951, p. 101). Cabe ao professor ou professora se esforçar para que essa força não cambiável não desapareça de todo em sua aula. Há que se resistir aos atalhos interpretativos. À transformação da literatura em mera mercadoria.
Há que se valorizar a infância
No caso do ensino de literatura para crianças, é importante dar espaço ao jogo, ao encontro lúdico com o texto. As crianças estão mais próximas do tempo em que o eu ainda não estava completamente formado, mais próximas do comportamento mimético (Adorno, 2021).
Desse modo, talvez seja mais fácil para esse público o ato de se esquecer de si mesmo ao entrar na obra, uma experiência que Adorno (1993, p. 29) valoriza. É claro que a curva decrescente da atenção na contemporaneidade prejudica essa lógica, mas creio que não a extingue totalmente.
É interessante, nesse contexto, que se apresente às crianças formas que dialogam com o procedimento do clown, por exemplo, que tem algo a ver também com essa lógica do jogo e da conexão com o momento anterior à fixação do eu.
Por outro lado, é importante que também adolescentes e adultos tenham contato com esse tipo de arte. Isso porque ela pode significar, senão um retorno à infância (o que seria esperar demais), um vislumbre momentâneo de uma lógica diversa.
*Vinícius de Oliveira Prusch é doutorando em letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Referências
ADORNO, Theodor. Dialética negativa. Tradução de Marco Antonio Casanova. Revisão técnica de Eduardo Soares Neves Silva. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
ADORNO, Theodor. Educação e emancipação. Tradução de Wolfgang Leo Maar. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
ADORNO, Theodor. Minima moralia. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1951.
ADORNO, Theodor. Notes to literature. Tradução para o inglês de Shierry Weber Nicholson. Nova York: Columbia University Press, 2019.
ADORNO, Theodor. Sem diretriz: Parva aesthetica. Tradução de Luciano Gatti. São Paulo: Editora Unesp, 2021.
ADORNO, Theodor. Teoria estética. Tradução de Artur Morão. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
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