O mal radical

Imagem_Elyeser Szturm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JORGE BRANCO*

Em uma busca da Ku Klux Klan que lhe inspira, Bolsonaro propaga o que Immanuel Kant chama de “mal radical”, aquele que está enraizado em quem o pratica. Bolsonaro é o puro mal

Hannah Arendt deu uma grande contribuição às luzes do conhecimento. Não porque tenha abordado com precisão as origens do mal, mas compreendeu bem e ofereceu uma grande abordagem sobre como ele, o mal, se reproduz.

Na busca de uma explicação de como o mal se origina, a proposta de solução teórica confundiu ideologias e equalizou sistemas políticos muito distintos, propôs abarcar sob o conceito do totalitarismo, regimes completamente distintos entre si, como o nazismo e o stalinismo. Cujas diferenças que não se resumem à ideia de Estado total, tão ao gosto da guerra fria em curso no pós-guerra e da ideologia econômica em emergência à época, mas que distinguem, no fundamental, por sua metafísica, seu devir. Arendt contribui decisivamente para trazer à atualidade das ciências humanas e da política a explicação de como o mal se multiplica. Ofereceu a ideia de que o mal é banal e pode ser exercido por qualquer um, como demonstrariam os depoimentos de Adolf Eichmann, o nazista julgado em Jerusalém, em abril de 1961, por crimes contra a humanidade. Segundo a versão apresentada na cinebiografia, “Hannah Arendt”, dirigida por Margarethe von Trotta, em 2012, Hannah Arendt teria dito que esperava ver um monstro, mas o que teria encontrado um medíocre burocrata preocupado apenas em cumprir ordens.

A busca pela exata fronteira entre as responsabilidades do indivíduo e da sociedade e entre o indivíduo e o Estado remonta aos campos de investigação da filosofia, da ciência política, da sociologia e da psicologia, desde o sempre, no que diz respeito aos questionamentos sobre a humanidade e a cultura.

Tendo Arendt atribuído o mal a um homem medíocre, ao ser comum, não podemos deixar de, criticamente, estabelecer que somente a enormidade do crime do Holocausto permitiria a tantas pessoas comuns aderirem ao mal, como um modo de levar a vida. Deparamos assim com a questão ética central do fato da responsabilidade ser atribuída a cada um dos comuns ou ser inerente a um sistema que propaga o mal como ideologia. A questão não é portanto se Eichmann exerceu o mal, mas porque tantos eichmanns passam a banalizá-lo.

Quem viu imagens de dois indivíduos, uma mulher e um homem, fantasiados com capa e espada de uma pátria que criaram, transtornados, agredindo verbalmente enfermeiros e trabalhadores da saúde que se manifestavam no 1º de maio passado, em Brasília[i], ficou perplexo com aquelas pessoas comuns exercendo o ódio. Ficam ainda mais impactados aqueles que relacionam este episódio ao fato, anterior, do Presidente da República desdenhar da morte evitável[ii]. É a força da nova direita orgânica no país, de caráter neofascista, e seu governo que dão legitimidade para que tamanha sandice se apresente, em nome da pureza ideológica, sem obstruções morais ou éticas.

Teorias científicas das ciências sociais permitem análises, com base em evidências e sólida metodologia, que venham a explicar o fenômeno social que acabou por levar esta nova direita, mais exatamente um determinado indivíduo que professa o ódio como plano de ação, ao governo.

Quais as forças, classes e frações e com quais interesses e determinações? Em que quadro mundial e nacional? Como incidiu a crise de acumulação de capital do neoliberalismo? Qual o papel dos interesses internacionais? Como se deu o ativismo político das altas burocracias judiciais e militares em seu favor? Há um “bonapartismo brasileiro” em curso? Quais as motivações e interesses do oligopólio das comunicações? Todas as variáveis racionais serão explicadas e todos os problemas de pesquisa respondidos, basta tempo.

Mesmo assim, com as explicações científicas mais sólidas disponíveis, imagino que estaremos imersos na mesma perplexidade com a qual nos deparamos quando estudamos, analisamos, lemos e assistimos ao nazismo e seus horrores Quando tomamos conhecimento dos julgamentos, dos depoimentos e das evidências do maior horror de todos os tempos. Fatos e fenômenos tão estudados, quanto por estudar.

E mesmo envolvidos em incredulidade, paralisados com aquele breve sentimento de que toda a ciência social não consegue explicar tamanho mal e tamanha iniquidade, é preciso superar esses sentimentos e compreender, analisar, interpretar, descobrir as razões pelas quais o Brasil mergulhou em um mundo trágico proposto por essa versão neoliberal do fascismo. Bolsonaro é um psicopata, apologeta da tortura e da sevícia. Ele despreza a condição humana, abjeta a ideia do ser igual, odeia o outro, acha que precisa destruir para se construir.

O que impressiona é que podemos concluir que todos, ou ao menos a grande parcela de seus eleitores e não eleitores sabiam e, apesar de tudo, assim como ocorrido na Alemanha sob Hitler, foi votado, transformado em líder e venceu as eleições. Trata-se objetivamente da vontade do povo, devidamente construída, jogada contra os direitos desse mesmo povo.

O mal nos desconforta por dentro porque, em nossa psique, não o aceitamos moralmente mas o desejamos. Esse desejo, em alguns submetidos a algumas circunstâncias, passa a ser inamordaçável, infreável. O mal torna-se uma tragédia porém quando passa a ser banal e por banalizado transforma-se em método, política, ideologia, moral e crença, deixando de ser latente para aflorar em cada um ou na projeção de cada um, buscando, a seguir, reconhecimento, segurança e legitimidade na comunidade de iguais. Em uma busca da Ku Klux Klan que lhe inspira.

Bolsonaro propaga o que Immanuel Kant chama de “mal radical”, aquele que está enraizado em quem o pratica. Bolsonaro é o puro mal. O mal desprovido de constrangimentos, é o mal livre, banalizado e socializado. O mal como moral específica que a tudo subordina à missão maior. Por isso é o mal mais perverso, o mais obscuro que se possa conhecer. O empoderamento dessa razão de ser, sob a forma governo e sob a forma partido, dá a dimensão manifesta da transformação da banalidade do mal em política.

*Jorge Branco é sociólogo e doutorando em Ciência Política pela UFRGS.

[i] Veja notícia aqui.

[ii] Veja a notícia aqui.

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES