Por ANDRÉ MOREIRA CUNHA & ALESSANDRO DONADIO MIEBACH*
Qual é a política do terceiro mandato de Lula para o ensino superior? Até aqui, isto não está claro
Nunca antes na história
Em 2002, o programa de governo do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva fazia uma crítica contundente à gestão Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) na área da educação, particularmente no que se que denominou de “avanço da privatização do sistema”. Esta, por sua vez, não se expressaria “… pela venda das universidades e escolas públicas, mas pelo acelerado aumento proporcional da rede privada, a cada dia com maior peso no sistema, principalmente na educação infantil e na superior.”. Assumia-se o compromisso de ampliar “… vagas nas universidades públicas” e reformular o “sistema de crédito educativo”.
Os dados do Censo do Ensino Superior 2022, publicados em outubro de 2023, confirmam aquela visão: em 1995, havia 1,1 milhão de matrículas em instituições privadas, ante as 700 mil das instituições públicas. Tratava-se, portanto, de um “coeficiente de mercantilização” (vagas privadas/vagas públicas) de 1,5. Nas décadas de 1980 e 1990, tal razão oscilou entre 1,0 e 1,5. Em 2002, eram 2,4 milhões de matrículas privadas e 1,1 milhão em matrículas públicas, com o coeficiente de mercantilização chegando a 2,2. O sistema dobrou de tamanho, com as vagas privadas respondendo por 75% da tal incremento. A criação do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES), em 1999, em substituição ao Programa de Crédito Educativo (CREDUC), herdado do governo Geisel (1974-1979) foi fundamental na nova dinâmica deste setor.
Nos governos Lula (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016), as promessas de 2002 foram cumpridas, especialmente no que tange à expansão de vagas e à busca por maior democratização no acesso. Em 2016, o país contava com 8 milhões de pessoas matriculadas no ensino superior, 103% acima do montante de 2003 (3,9 milhões de pessoas). Todavia, o coeficiente de mercantilização cresceu ainda mais, passando de 2,3 (2003) para 3,0 (2016). Entre 2003 e 2016, houve uma expansão de 3,3 milhões de vagas da rede privada (+119%) e de 814 mil vagas na rede pública (+ 69%).[i]
Mercantilização e financeirização
FHC dobrou as matrículas no ensino superior em oito anos, com forte expansão do segmento privado e maior mercantilização (ou “privatização” nos termos do partido do presidente Lula) frente o sistema herdado dos governos militares e do início da Nova República. Os governos seguintes demoraram treze anos para dobrar novamente o contingente de entrada de universitários. O perfil de discentes se alterou de forma importante, com participação das populações com menor poder aquisitivo. Esta característica se deu mais pelo avanço do setor privado do que pela inclusão na rede pública. Por decorrência, a variação do coeficiente de mercantilização foi ainda mais intensa. Não houve reversão do modelo estimulado na era FHC, pelo contrário
Chegou-se, assim, em 2022, a uma razão entre matrículas privadas e públicas recorde (3,5), em meio a transformações estruturais, com destaque para a “mercantilização com financeirização” e o avanço no Educação à distância (EaD): (i) Em 2022, das 7,3 milhões de vagas ofertadas pelo ensino privado, 5,6 milhões estavam em instituições com “fins de lucro” e 1,7 milhão (24%) em instituições “sem fins de lucro”, usualmente as confessionais e comunitárias.
(ii) Cinco grupos educacionais[ii], que abriram seu capital e passaram a ter ações negociadas na bolsa de valores, respondiam 2,5 milhões de matrículas em 2022, mais do que toda a rede pública. (iii) Em apenas sete anos (2016-2022), a modalidade EaD passou de 17% para 46% das matrículas no ensino superior, com forte concentração destas no ensino privado com fins de lucro.[iii]
A educação superior brasileira seguiu as tendências observadas para o conjunto da sociedade e transformou-se nos marcos do neoliberalismo. O terreno da mercantilização e da financeirização foi preparado por FHC. A colheita farta veio com Lula e Dilma, a despeito das iniciativas de expansão da rede federal pública. Os governos de Michel Temer (2016-2018) e Jair Bolsonaro (2019-2022) preservaram as tendências de expansão da educação privada com fins de lucro e sustaram os esforços de ampliação da rede pública. Esse processo, que se articulou com a pandemia de Covid-19, gerou consequências importantes.
Na educação superior privada, a continuidade da expansão das instituições com fins lucrativos teve como contrapartida o encolhimento das instituições confessionais e comunitárias, que historicamente são comprometidas com a preservação da qualidade no tripé “ensino, pesquisa e extensão”. Já as entidades com fins lucrativos priorizam cursos de maior rentabilidade, raramente possuem programas de pós-graduação stricto sensu ou investem em pesquisa. Ademais, apresentam poucos vínculos com as comunidades onde estão inseridas: seu foco é a obtenção de lucro com a venda de ensino a baixo custo, particularmente via digitalização (EaD).
Na rede pública, criou-se um grave quadro de subfinanciamento. As condições de infraestrutura foram precarizadas e a defasagem tecnológica em certas dimensões é uma realidade. Diversos profissionais saíram do país. Sob a indiferença da oligarquia financeira brasileira e dos governos, e com o aplauso de grupos sociais fanatizados, o país assistiu a acelerada degradação de sua estrutura de educação superior e de produção de conhecimento, em um típico processo de autofagia irracional.
Diga-me com quem gastas e te direi quem és
São as universidades públicas – e algumas instituições privadas sem fins lucrativos – que lideram as avaliações oficiais sobre a excelência na formação de recursos humanos em nível de graduação e de pós-graduação, bem como concentram a produção científica e a geração de novas patentes (direitos de propriedade sobre inovações tecnológicas). Desde 2014, este sistema vem sofrendo com cortes expressivos de financiamento, os quais podem comprometer o futuro do que resta qualidade no ensino superior brasileiro. Assim, entre 2014 e 2024, o orçamento conjunto das duas principais agências de fomento à pesquisa científica e à pós-graduação, Capes e CNPq, caiu pela metade: de R$ 15,1 bilhões (2014) para 7,3 bilhões (2023 e 2024).[iv][v]
Houve forte compressão no custeio (-33%) e no capital (-78%) das universidades federais entre 2014 e 2022. Acima, inclusive, da variação negativa no orçamento total do MEC (-15%). Isso ocorreu em um período em que as matrículas/ano seguiram em alta: +13%. Em 2023 e 2024, em um novo contexto político, verificou-se recomposição parcial destas rubricas: a soma de custeio e capital na LOA 2024 atingiu R$ 9,4 bilhões, menos do que 2/3 do valor real de 2014 (14,5 bilhões). Fenômeno semelhante ocorreu no orçamento dos Institutos Federais.[vi]
A queda no custeio (dispêndios cotidianos com a manutenção das instituições com material de consumo, alimentação de estudantes, insumos para laboratórios de pesquisa, água, luz, comunicação etc.) e a deterioração da infraestrutura física (salas de aula, computadores, laboratórios e seus equipamentos, livros técnicos etc.) afetam relativamente mais os estudantes de baixa renda, que já são maioria nas instituições públicas.
Sem recomposição e ampliação nestes dispêndios será cada vez mais difícil para este segmento da população permanecer nas instituições públicas e, por decorrência, mais atraente serão as facilidades oferecidas pelo ensino privado com fins de lucros, especialmente quando há subsídio governamental.
O uso do crédito educacional como principal instrumento para a expansão no acesso ao ensino superior, especialmente nos governos Lula e Dilma, aprofundou o problema do financiamento da rede pública federal. O Relatório Contábil do 4º trimestre de 2023 do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação nos permite fazer a seguinte relação: entre 2014 e 2023, o subsídio implícito ao Programa FIES atingiu R$ 114 bilhões, a valores corrigidos pelo IPCA. Isso equivale ao valor de custeio e de investimentos (capital) de todas as universidades federais no mesmo período (R$ 110 bilhões a preços de 2023). O relatório do FNDE informa, também, que o saldo atual de créditos problemáticos do FIES atinge R$ 47 bilhões. O custeio e os investimentos acumulados dos IFs (2014-2023), corrigidos pelo IPCA, atingiram R$ 40 bilhões.[vii]
O que o governo Lula fará com o ensino superior?
Qual é a política do terceiro mandato de Lula para o ensino superior? Até aqui, isto não está claro. O presidente prometeu criar 100 novos Institutos Federais até 2026, o que parece ser um passo no sentido de fortalecer a oferta pública de vagas. Ao mesmo tempo, aposta na manutenção do FIES, agora com alcunha “social”.
Nas estimativas do MEC, seriam investidos R$ 3,9 bilhões via Novo PAC nos Institutos Federais, dos quais R$ 2,5 bilhões para os novos campi e R$ 1,4 bilhão para consolidar os que já existem. O custo médio de cada novo IF seria de R$ 25 milhões. Estes valores não incluem a contratação de pessoal. E não parecem ser realistas. O Painel do Orçamento registra que os 38 Institutos Federais que estão no orçamento do MEC têm um custo total (pessoal, custeio e capital) de R$ 19,9 bilhões (LOA 2024). O custo médio é de R$ 523 milhões/IF/ano. Com este parâmetro realista, 100 novos Institutos Federais custariam ao redor de R$ 52 bilhões/ano depois de implantados,[viii] vinte vezes mais do que registrado no anúncio oficial do MEC.
Os objetivos de expandir a rede de Institutos Federais ou de manter o FIES, são defensáveis per se. Todavia, também limitam o espaço para a recomposição necessária de orçamentos de IES federais que já existem, da Capes, do CNPq e das demais agências e fundos que sustentam a qualidade do ensino e da pesquisa. Salvo surjam novas fontes de financiamento, realmente robustas, ou caso seja possível reduzir gastos tributários (subsídios orçados em 524 bilhões no LOA 2024) e dispêndios em outras áreas, é inevitável imaginar um cenário de persistência na deterioração do ensino superior público e da pesquisa no Brasil.
O atual governo precisa sinalizar de forma mais clara o que pretende fazer com a rede de ensino superior que está sob a sua responsabilidade, bem como informar à sociedade como lidará com as difíceis escolhas orçamentárias. O estabelecimento do novo arcabouço fiscal e a opção por perseguir déficit zero, em 2024, e superávits orçamentários a partir de 2025, cria um claro dilema: para criar novas instituições e expandir subsídios ao ensino privado haveria de se ampliar os gargalos de financiamento das IES públicas e demais instituições governamentais do setor por meio de crescente “canibalização” do sistema. Com isso, futuros governos encontrarão um terreno fértil para completar a destruição de facto da rede pública.
A defesa da educação e da ciência não pode ser apenas retórica, mas orçamentária. Há que se estabelecer uma concepção articulada entre aquelas e os objetivos de desenvolvimento para a sociedade brasileira. A degradação do ensino público federal e do sistema de pesquisa é de interesse dos setores empresariais engajados na obtenção de lucros através da “venda de serviços educação”. Apesar da recente trajetória de restrições orçamentárias, o setor público ainda define os padrões de qualidade no ensino superior e na produção de ciência. No xadrez neoliberal em curso, esta é a última peça que o poder das finanças precisa derrubar. Se isso ocorrer, os historiadores (estrangeiros) do futuro possivelmente concluirão que o xeque mate ocorreu na gestão Lula III.
*André Moreira Cunha é professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
*Alessandro Donadio Miebach é professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Notas
[i] Além do reforço do FIES, o governo federal criou o Programa Universidade para Todos (PROUNI), com concessão de bolsas de estudos, integrais ou parciais para estudantes da rede privada de ensino superior. Em 2007, foi lançado o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI, 2007) , que permitiu com que as vagas destas instituições também dobrassem: de 641 mil (2007) para 1,3 milhão (2016).
[ii] São eles: Cogna (COGN3, ex-Kroton) e Estácio (YDUQ3), que entraram na Bolsa em 2007; a Ânima Educação (ANIM3) e o Ser Educa (SEER3), em 2013; e Cruzeiro do Sul (CSED3), em 2020. Suas ações se valorizam de acordo com as políticas de estímulo governamental, como a recente criação do FIES Social. Adicionalmente, apostam na redução de custos via expansão na oferta de cursos à distância (EaD) como estratégia de manutenção da rentabilidade
[iii] As instituições com fins de lucro geram 3,3 milhões de matrículas em cursos EaD (76% do total desta modalidade); e as privadas sem fins lucrativos responderam por 411 mil vagas (10% do total).
[iv] Os dados originais para CNPq, Capes, Universidades/Institutos Federais e MEC estão no Painel do Orçamento Federal (valores empenhados, com exceção de 2024, que é o valor da LOA) e foram atualizados pelo IPCA (preços médios de 2023). O número de discentes de pós-graduação é da Plataforma Geocapes e os dados de discentes de graduação estão no Censo do Ensino Superior 2022.
[v] Em termos per capita tal contração foi ainda maior: de R$ 68 mil/discente/ano (2014) para 28 mil/discente/ano (2023 e 2024).
[vi] Em termos de participação relativa, o orçamento com custeio e capital de universidades e institutos federais passou de 12,6% do empenho total do MEC, em 2014, para 8,1%, na proposta orçamentária de 2024. Incluindo as despesas com pessoal, esta estrutura responde por 50% do orçamento do MEC.
[vii] O somatório de subsídio com dívida contingente se aproxima de R$ 160 bilhões ou R$ 47 mil por cada um dos 3,4 milhões de beneficiários do FIES desde sua criação. Um valor que parece exceder o custo médio anual de discentes de universidades públicas.
[viii] Somente a parte de custeio e capital dos 38 IFs é de R$ 3,7 bilhões ou R$ 97 milhões/IF/ano. Para 100 IFs seria um valor de quase R$ 10 bilhões, quatro vezes mais do que o MEC projeta. Possivelmente, o governo deve estar planejando estruturas mais próximas das escolas técnicas e CeFets.
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