Por ANTONIO VALVERDE*
Comentário sobre o filme dirigido por Fábio Barreto
“Eu não sei bem o que seja/ Mas sei que seja o que será/ O que será que será que se veja/ Vai passar por lá.” (Chico Buarque, Linha de montagem).
Se é correto afirmar que o cinema pode educar a sensibilidade e até politizar, o filme Lula, o filho do Brasil confirma a premissa por ser impactante, sobretudo, pela construção realista do personagem título. Além de manter, sem concessões, a tensão narrativa ao limite do necessário. O lastro biográfico de Lula e o recurso à história recente do movimento dos metalúrgicos do ABCD dão sustentação à narrativa, de modo a reforçar o realismo da abordagem.
A tensão latente deriva de diversos filmes e documentários, que o antecederam e que, de certa forma, se encontram incorporados. Assim, assisti-lo é como rever outros tantos correlacionados às condições do operariado, em um salto para além deles. Afinal, o movimento dos trabalhadores ensaiou sua emancipação política entre os anos 1970 e 1980, na região brasileira em que mais, claramente, delineou-se a contradição capital trabalho.
Lula, o filho do Brasil é uma adaptação do livro homônimo de Denise Paraná. A Autora, fundada no conceito de “cultura da pobreza” criado pelo antropólogo norte-americano Oscar Lewis, resultante de pesquisas realizadas nas cidades do México, Porto Rico e Nova York, em movimento de construção do conceito “cultura de transformação”, opera com maestria a interpretação teórica do fenômeno Lula, desde sua relação com os pais, calcada na conduta ética, até a emergência do líder sindical de maior altura política do Brasil contemporâneo.
A passagem do universo da ética tradicional filtrada, sobremaneira pela mãe Dona Lindu, para os contornos da ética familiar, aos limites da ética da responsabilidade, observada nas tomadas de decisões de Lula frente aos sindicalistas e aos políticos profissionais, é exemplar. Em outras palavras, como fora possível agir politicamente sem perder de vista os valores e os princípios que nortearam a formação ética basilar até o desenvolvimento pleno de sua virtù política? Assim, o passo mais complexo foi o operado pelo entrelaçamento entre a ética da responsabilidade e a explicitação dos conflitos políticos em pauta na luta operária dos sindicalistas paulistas.
No filme, os nexos da conscientização ética e da ação política do personagem central encontram-se muito bem explorados, sem didatismos. O mesmo ocorre ao mostrar o movimento dialético de superar conservando, utilizado por Lula para aos poucos desalojar o pelego Feitosa, então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, de sua posição, aparentemente intocável e de bem com a política repressiva do Estado, na década de 1970. Como hipótese, talvez seja este o segredo do sucesso político do Presidente Lula: superar conservando, sem perder de vista o impreterível lastro social das decisões políticas. Contudo, o filme termina antes do momento de fundação do Partido dos Trabalhadores.
Em debate acerca do filme Lula, o filho do Brasil, realizado no auditório do jornal O Globo, no Rio de Janeiro, no dia 09 de dezembro de 2009, o diretor Fábio Barreto enquadrou o filme sob o gênero épico melodramático. Disse que parte considerável da concepção da obra debita-se à escola cinematográfica do neorrealismo italiano, particularmente ao filme Roma, cidade aberta (1946), de Roberto Rossellini. Em que a novidade era a filmagem em ambientes abertos, a mostrar a dura realidade da miséria, do desemprego, a cidade sob o domínio nazista, com atores praticamente desconhecidos, salvo a atriz Anna Magnani.
No filme de Barreto, de certa forma, todos esses elementos estão presentes. A atriz Glória Pires, no papel de Dona Lindu, figura como destaque do filme. As tomadas em antigas fábricas da Mooca, como palco da ação política dos trabalhadores nos anos 1960, e no Estádio da Vila Euclides, cenário das assembleias, dos anos 1970, em que ocorriam as decisões acerca dos rumos das greves dos metalúrgicos, correspondem de certa forma aos ambientes abertos do filme de Rossellini.
O filme mantém um diálogo interno com uma série de outros filmes, particularmente documentários, acerca da classe operária e da migração de nordestinos para o Sudeste do país. O único deles, lembrado por Barreto no aludido debate, foi O grande momento, de Roberto dos Santos (1957), considerado precursor do Cinema Novo. O filme trata das vicissitudes do casamento de um operário da Mooca, bairro paulistano, obrigado pelas circunstâncias a vender o único bem disponível, a bicicleta, para custear uma festa modesta de núpcias. Gianfrancesco Guarnieri, jovem, faz o protagonista em apuros financeiros e desencanto. Indiretamente, outros filmes estão contidos no de Barreto, como I Compagni, de Mario Monicelli (1963), inspirado em romance homônimo de Cesare Pavese. Marcello Mastroiani vive o professor desempregado Sinegaglia, um aristocrata decadente, que em visita a fabril Turim, ajuda os operários de uma indústria têxtil a lutar por melhores condições de trabalho, a meados do século XIX.
Incontornável a remissão ao filme Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos (1963), com retirantes nordestinos a cumprirem a sina do êxodo rural, saltado das páginas do romance homônimo, de Graciliano Ramos. As cenas iniciais de Lula, o filho do Brasil, relembram as de Vidas secas, naquelas em que Átila Iório, no papel de Fabiano, deixa o sertão com a família, acompanhados até certa altura da cadela Baleia. Ainda contido no filme de Barreto encontra-se Eles não usam black-tie, de Leon Hirszman (1981), adaptação e atualização da peça teatral de G. Guarnieri, estreada no dia 22 de fevereiro de 1968 no Teatro de Arena, em São Paulo. Durante uma paralização fabril, Tião, filho de um velho líder sindical, fura a greve alegando a proximidade do casamento. A noiva, uma colega de fábrica, estava grávida. Afinal, ela o abandona dada a não adesão ao movimento.
O documentário inaugural a retratar os nexos entre o fluxo migratório do Nordeste para o Sudeste, a par da integração social do migrante nordestino na cidade mais nordestina do Brasil, foi Viramundo, de Geraldo Sarno (1965), sob a colaboração dos sociólogos Octávio Ianni, Juarez Brandão Lopes e Cândido Procópio F. de Camargo. – A via crucis do migrante retratada através do subemprego, miséria, caridade e misticismo.
Alguns documentários acerca do movimento operário do ABCD paulista estão contidos no filme de Barreto. O primeiro é Braços cruzados, máquinas paradas, de Roberto Gervitz e Sérgio Toledo (1978). E, em duas versões complementares no tempo, 1979 e 1992, ABC da greve, de Leon Hirszman, e Greve, média-metragem, de João Batista de Andrade (1979). Resta saber se o destacado documentário Linha de montagem (1982), de Renato Tapajós, filmado entre 1978 e 1981, e Peões, de Eduardo Coutinho, filmado entre 1979 e 1980, lançado em 2004, também foram assimilados.
Se o documentário é sempre um recorte histórico valioso, temporal e datado, o longa-metragem viaja no tempo para além do aspecto circunstancial. É o que ocorre com Lula, o filho do Brasil, realizado para “cair no mundo”, parafraseando o personagem título à mãe, ao início do filme. Em movimento de estranhamento e de aproximação, na perspectiva da educação da sensibilidade e da politização, assistir Lula, o filho do Brasil é como assistir a outros tantos que, consciente e inconscientemente, foram incorporados a ele, como uma síntese atualizada dos anteriores. Somente com vagar, sem pré-juízos nem preconceitos, é possível perceber tais remissões e síntese. Afinal, os versos de Chico Buarque findaram por profetizar uma parte da história do Brasil contemporâneo.
*Antonio José Romera Valverde é professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUC-SP.
Publicado originalmente no Terra Magazine, em 09 de janeiro de 2010.
Referência
Lula, o filho do Brasil
Brasil, 2009, 130 minutos
Direção: Fábio Barreto
Roteiro: Daniel Tendler, Denise Paraná e Fernando Bonassi
Adaptação do livro Lula, o filho do Brasil, de Denise Paraná.
Elenco: Glória Pires, Rui Ricardo Diaz, Lucélia Santos, Antonio Pitanga, Cleo Pires, Juliana Baroni.