Por ANDRÉ SINGER*
Peripécias e reviravoltas da tragédia política brasileira.
“Eu não quebro, não, porque sou macio” (Chico Buarque)
Primeiro ato: Fachin rearruma o tabuleiro
A tarde quente e nublada do sábado, 7 de abril de 2018, em que Luiz Inácio Lula da Silva, então com 72 anos, saiu preso do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo, marcou um momento fatal na carreira do ex-operário convertido em presidente da República. Ninguém, nem mesmo “o cara” de Obama, passa impune por 580 dias preso sob a sombra de encardidas acusações. Ali se encerrava um ciclo.
Foi no período que se abriu, pós-prisão, que vimos emergir o atual presidente Jair Bolsonaro, ocupando o vácuo de liderança popular encarcerada em Curitiba. Eis que, passados três anos, em que o vazio de uma oposição politicamente efetiva ao ex-militar reformado vinha tornando irrespirável o ar nacional, acontece o milagre da ressurreição. Para tanto, não bastava Lula estar solto. Tinha que poder concorrer às eleições presidenciais, desde sempre a sua arma infalível para ser ouvido no Brasil.
Anos atrás, no início desta infindável crise, um amigo mencionou, a propósito de Dilma Rousseff, a peça Filoctetes, de Sófocles, que eu não conhecia, sobre uma vítima de ostracismo. Ao observar o que aconteceu nas 72 horas desde que Lula foi reabilitado até o fim do seu discurso “épico”, a lembrança voltou.
Sem avisar ninguém, na segunda-feira, 08 de março, com o número de mortos pela Covid-19 crescendo sem parar, Edson Fachin, o enigmático ministro do STF que apoia Moro e Lula ao mesmo tempo, arvorou-se no papel de Ulysses, não o Guimarães, mas o grego, e tirou o personagem desterrado da ilha deserta.
Talvez, com a reabilitação do lulismo, os aqueus vençam Troia, terá pensado o juiz? No caso da tragédia brasileira, goste-se ou não do passado de Lula, à esquerda ou à direita, o rol que lhe foi agora conferido é o de salvar a democracia. O regime democrático é o único meio de voltarmos a ter não a resolução de todos os problemas, coisa que, sabemos, só ocorre nos contos de fadas (e os dramaturgos neles não creem), mas um mínimo de racionalidade na condução do Estado.
Note-se que a reserva de Fachin foi tal que até Lula, escalado de uma hora para outra, foi pego de surpresa. O que lhe deu certo espaço para o indispensável aquecimento foi a entrada em cena de outro membro do STF, cuja longa costura contra a Lava Jato explica, em parte, o lance espetacular do colega que fez carreira no Paraná.
Sim, pois no dia seguinte à decisão de Fachin, quando Lula já anunciava a coletiva que foi obrigado a adiar, Gilmar Mendes, esgrimindo o julgamento da suspeição de Moro, tomou à força o centro do palco para contar, em cadeia nacional, como o ex-chefe autonomeado da Lava Jato, uma espécie de guardião da Torre de Londres – na expressão célebre de outro Sérgio (Machado) –, tramara com procuradores e policiais para incriminar e condenar Lula e, quem sabe, de passo, proclamar, ao arrepio das leis, uma República independente no Paraná.
Enfim, secundado por Ricardo Lewandowski, Mendes acabou por calçar moralmente a decisão tomada por Fachin no “take” anterior. (Se esta peça não fosse tão curta, seria interessante explorar a disputa por protagonismo entre suas excelências. Fica para outra oportunidade).
Mas, apesar do interesse provocado pela oratória de Mendes, a qual não poupou referência nem sequer à própria decisão escandalosa de impedir Lula de assumir a chefia da Casa Civil em março de 2016, Fachin roubara a cena, pois o principal estava resolvido: até segunda ordem, Lula é candidato. Talvez isso explique, em parte, o repentino acesso democrático de Fachin. Antecipando-se a Gilmar, Fachin tentou salvar Moro da suspeição.
Afinal, Kassio Nunes Marques, estreando na condição de primeiro indicado pelo bolsonarismo ao STF, pediu vista do processo, com o que adiou a provável condenação do “constable” curitibano, a qual vingaria todos os que há um lustro denunciam em vão as flagrantes ilegalidades cometidas na versão local da torre londrina.
Do ponto de vista político, o passo processual determinado por Nunes Marques é secundário. Muita água vai correr por baixo da ponte jurídica até a campanha de 2022, e ninguém pode saber ao certo o que vai ocorrer, nem mesmo se Lula será de fato candidato. O importante é que Lula voltou a ser candidato agora e, de lambuja, teve reconhecida, por Mendes e Lewandowski (mas Cármen Lúcia também pronunciou um sonoro “gravíssimo” durante a fala de Gilmar), a condição de vítima de armação macabra.
Antes de passarmos ao segundo e derradeiro episódio desta obra sumária, vale notar que Fachin preparou com cautela o “ippon” do 8 de março. Um mês antes, concedeu entrevista à Folha cheia de recados fortes, cujo alcance só agora é compreensível.
Na ocasião, Fachin criticou a “remilitarização do governo civil” promovida por Bolsonaro; alertou para “intimidações de fechamento dos demais Poderes”; lembrou o assalto ao Congresso norte-americano, ocorrido em 6 de janeiro, para dizer: “Lá não ocorreu a adesão de lideranças políticas à tentativa de golpe e não ocorreu a atuação ilegítima das Forças Armadas”.
Por fim, declarou, de modo a que não restassem dúvidas: “Como vice-presidente do TSE e como futuro presidente que vai preparar as eleições de 2022, estou extremamente preocupado com as ameaças que a democracia vem sofrendo no Brasil e com aquilo que pode resultar das eleições de 2022”.
Segundo ato: Lula enxerga uma avenida e parte para o gol
Como o cenário geral era dos piores, as condições atmosféricas para a reentrada lulista eram ótimas. A gestão negacionista da pandemia transformou o Brasil na possível estufa mundial de variantes do coronavírus. Com mais de 2.000 mortos por dia, um recorde desde que a Covid-19 começou a se espalhar, doentes morrem à espera de vaga em UTIs, médicos são obrigados a escolher entre os que têm mais chance de sobreviver, e cadáveres são acondicionados em contêineres.
Com a demora governamental na compra de vacinas, apenas 5,8% dos cidadãos receberam a primeira dose. Nos Estados Unidos, outra nação administrada por um negacionista até 20 de janeiro passado, quase 20% da população foi vacinada. Aqui, a responsabilidade do ministro da Saúde, apelidado de general Pesadelo no Congresso, segundo um comentarista da TV, é investigada no STF.
A recusa de Bolsonaro em promover o isolamento social, tendo como bandeira a economia, também não funcionou. Enquanto a China, que optou por medidas duras de confinamento, conseguiu crescer 2,3% em 2020, o Brasil perdeu 4,1% do PIB. Em consequência, o desemprego subiu de 11,9% para 13,5%.
O quadro descrito seria suficiente para abrilhantar a “rentrée” de qualquer exilado. Bastava demonstrar alguma empatia com o povo e enumerar um programa mínimo – vacina, emprego e escola – para sair-se bem.
Mas Lula, no discurso que pronunciou na quarta-feira (10 de março), entre o final da manhã e o almoço prolongado, fez muito mais. Além de se apresentar na pele do anti-Bolsonaro, com uso explícito de máscara, fazendo questão de pedir conselho médico antes de tirá-la para falar, e elencar os contatos internacionais para contrastar o isolamento verde-amarelo, desarmou os espíritos, falando do sofrimento pelo qual passou. Aí, Lula deu uma de Churchill, mexendo com a emoção dos que o viam, desde os escritórios da Faria Lima até os recantos desta nação sem fim.
Começou por relatar parábola verídica que, segundo a revista Época, consta de A autobiografia do poeta-escravo”, de Juan Francisco Manzano, publicada em 1840, único material do tipo escrito por um latino (cubano). Depois de levar 98 chibatadas, o escravo é posto diante da alternativa de economizar as duas últimas se agradecer ao senhor. Prefere levar as que faltavam, antes que ceder aos dominantes. Mensagem: meus algozes me fizeram sofrer muito, mas não conseguiram me quebrar; mantive a dignidade.
Em seguida, consciente de que havia se mostrado inteiro, ou seja, apto para governar, o candidato afirmou o inesperado: não guardo mágoa de ninguém. Vida que segue. Reeleito, conversará, literalmente, com todos: empresários, financistas, militares, sindicalistas, sem-terra, sem-teto, jornalistas, líderes identitários. Abriu uma curiosa excepcionalidade para os donos de meios de comunicação, de quem afirmou preferir guardar alguma distância, recusando almoços privados.
As reações ao pronunciamento mostram que Lula, em linguagem futebolística, recebeu a bola de Fachin e enxergou uma avenida aberta, levando-a direto para o gol. Em questão de minutos, a mídia passou a veicular que Bolsonaro, afetado pela volta do ex-chefe de Estado, passara a usar máscara em cerimônias públicas.
Hamilton Mourão, que em 2018 falava em autogolpe, virou um democrata ao afirmar que “se o povo quiser a volta de Lula, paciência”. João Doria reconheceu que Lula (e Bolsonaro) têm “forte densidade política e eleitoral”. Rodrigo Maia, mesmo criticado por Lula por não ter colocado o impeachment em votação, fez questão de ressaltar que o líder do PT possui visão de país e “respeita e defende a democracia”.
O que aconteceu? Surgiu o Joe Biden brasileiro? Ainda não. Ocorre que a escalação precisa de Fachin, seguida pela demonstração de que o jogador se encontrava em forma, ergueu um dique de contenção temporário para Bolsonaro e suas loucuras de extrema direita pós-moderna.
Diante da possibilidade de alternância do poder em 2022, os ocupantes do Planalto perceberam que não podem fazer qualquer coisa. Ficam limitados, o que é a essência da democracia moderna. O governante de hoje estará na planície amanhã. Por isso, precisa ter medo.
Claro que, na prática, nada será tão simples quanto parecem prometer os passes vindos de cima protagonizados entre a segunda (8) e a quarta (10). No chão da realidade, o tecido sociopolítico vem sendo ocupado por grupos cada vez mais agressivos e predatórios.
A nota do Clube Militar em repúdio à volta de Lula mostra que os militares, completamente fora da política entre 2003 e 2010, entraram na arena (passe o trocadilho) para valer. Agora que a pasta saiu do tubo, quem vai colocá-la para dentro outra vez?
É evidente que Bolsonaro, tal como Trump, vai ameaçar um golpe se perder a eleição de 2022. No dia seguinte à decisão de Fachin, o presidente declarou: “Não tem problema. Gostaria de enfrentar qualquer um, se eu vier candidato, com um sistema eleitoral que pudesse ser auditado”. Em que pese a sintaxe presidencial estranha, quando Fachin deu a entrevista à Folha em fevereiro, avisou que isso iria acontecer. Com Lula na parada, Bolsonaro, se perder, vai dizer que houve fraude. Como reagirão os militares?
Fachin sabe do que fala. Em abril de 2018, seguido por Cármen Lúcia, Luiz Fux, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e Rosa Weber, liderou a recusa ao habeas corpus que poderia ter aberto a porta para Lula constar das urnas já naquele ano, poupando-nos, talvez, desta agoniante travessia.
Relator do caso, argumentou “ausência de ilegalidade, abusividade ou teratologia” na decisão de prender Lula, mesmo depois de o comandante do Exército ter ameaçado a corte na véspera (ou “alertado”, como preferiu reafirmar no livro General Villas Bôas: conversa com o comandante (Editora FGV).
Coro final
“Last but not least”, para que não digam que não falei de flores (o espaço acabou). No bojo da tensão militar, o “mercado” fará todo tipo de chantagem para que Lula, se candidato, assuma compromisso com um equilíbrio fiscal que o impedirá de gerar os empregos, a picanha e a cerveja que prometeu ao “povaréu sonâmbulo” no discurso de quarta.
Mantidas as condições presentes, a sétima vida do lulismo implicará que o Brasil vai comemorar os 200 anos como nação independente, e eternamente semiconstruída, em meio a uma campanha, esta sim, épica.
*André Singer é professor titular de ciência política da USP. Autor, entre outros livros, de Os sentidos do lulismo (Companhia das Letras).
Publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo.