Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*
Lupicínio Rodrigues, entre o tango e o samba, entre o lar e o cabaré, esculpiu canções que são facas de dois gumes: melodia suave para letras afiadas. Seu legado é a crônica de um machismo que se dissolve em poesia, onde a ‘dor-de-cotovelo’ revela menos paixão que o orgulho ferido de quem nunca soube amar sem posse
1.
Quem pensa em tango quando ouve certas canções de Lupicínio Rodrigues não está sozinho. Personalidade artística vigorosa, ele surgiu não no foco do samba, que é o Rio de Janeiro, mas no extremo Sul, já perto das margens de outro rio, o Rio de la Plata, pátria do tango portenho. Pode-se dizer que Lupicínio Rodrigues, a meio caminho, misturou os dois.
Lupicínio Rodrigues fazia samba-canção? Sim, e dos bons. Mas mais na linha, que é todo um gênero, da “dor-de-cotovelo”, de que temos obras-primas, e não só dele, também de Adelino Moreira, Valdick Soriano e tantos outros. Pois os compositores da “dor-de-cotovelo” dedicam-se a criar verdadeiros tangos em cadêmcia de samba.
Jorge Luis Borges – quem diria – dedicou muita reflexão ao tango. Em ficção ou ensaio, escreveu sobre tangos e milongas e compadritos e arrabaldes. Era um fã, embora detestasse o bandoneón, típico do gênero, que nem sequer o grande Astor Piazzolla dispensava, Borges gostava mesmo era do tango dos primórdios, de cunho feroz, ou, em suas palavras, mais “belicoso”.
Para Jorge Luis Borges, o tango pode ser “valente e feliz”, ou então “triste e melodramático”, Ele fala aqui do tango “de lupanar”, de que é exemplar um dos maiores sucessos de Carlos Gardel, que muita gente boa tem como o suprassumo do tango: Mano a mano. Dramatizado, encarna como narrador o dono da dama do cabaré. Descreve um universo paralelo, o do submundo noturno da boemia onde também transitava Lupicínio Rodrigues na vida real, pois segundo consta foi proprietário de nove bares. Hoje, seu filho e xará comanda uma casa com o nome do pai, em Porto Alegre, onde um pequeno regional toca suas músicas sem parar, para os fregueses cantarem junto.
Vejamos a cena em Mano a mano. É uma canção de despedida e quem se despede é um homem que pelo jeito foi trocado por outro (“el bacán que te acamala”), mas engole o orgulho ferido com estoicismo e se declara quites, pois ela sempre foi “a buena mujer”: “Tu presencia de bacana/puso calor em mi nido/fuiste buena y consecuente/…” Ela claramente vive de vender seus favores e o narrador é compreensivo a respeito: mesmo que tenha sido rejeitado.
Só tem boas coisas a dizer dela. Ou pelo menos assim é até a peripécia final, quando vai vaticinar um fim funesto para a dama, e lhe oferece sua comiseração, mimoseando-a com este galanteio: “…[quando seas] descolado mueble viejo”.
Em Quem há de dizer, Lupicínio também encena um ajuste de contas, que ficou no passado, mas com nuances. Veja-se esta revelação pungente, de grande arte musical e poética: “E eu o dono/ aqui no meu abandono/ espero morto de sono/ o cabaré terminar”. Nesse trecho, o vocábulo “dono” está contido em “abandono”. Ambos unidos pela rima do significante e opostos pelo significado (brilhante!).
E ademais resume tudo: a espera pela Dama do Cabaré se desincumbir de sua profissão – ele é apenas o dono, melhor dito o empresário por eufemismo. E explicita o que se passa: “Quando ela dança/ o cabaré se inflama/ e com a mesma esperança/ todos lhe põem o olhar”… Essa descrição do desejo masculino coletivo lembra Lev Tolstói, quando diz que as espáduas de Helena Kuragina, desnudadas pelo decote da toalete de gala, eram polidas pelos olhares dos homens.
O samba exala rancor e ânsia de retaliação (como em outra canção, Vingança) mal sopitada. Serve para apaziguar o ego ferido. E é de sua lavra uma das mais claras ameaças de crime em nossa música popular: “Eu só sinto/que quando a vejo/ me dá um desejo/ de morte ou de dor” (Nervos de aço).
Certa vez Lupicínio Rodrigues veio quase incógnito a São Paulo e deu um recital no Teatro Oficina. Na sessão final de “atendendo a pedidos”, ousei pedir Brasa, que ele cantou. Era bom intérprete de suas composições, de difícil enunciado, devido a frases quilométricas amarradas por cláusulas subordinadas. Mas ele as deslindava, escandindo-as com a maior clareza. Cantava suas violentíssimas palavras com a maior brandura, a reserva e a modéstia que lhe eram habituais, como se nada tivessem a ver com ele…
2.
Vem ao caso apresentar aqui um panorama, para examinar esse conhecido ponto de vista masculino sobre as mulheres: o rico filão da música popular que é o da “dor-de-cotovelo”. Podemos pedir ajuda a Copacabana -a trajetória do samba-canção (1929-1058, de Zuza Homem de Mello.
O livro analisa muito bem não só o contexto histórico em que surgiu e prosperou o samba-canção, mas também as biografias de seus luminares, como Ary Barroso, Antoniio Maria, Nora Ney, Linda Batista, Elizeth Cardoso, Dolores Duran, Dick Farney, Tito Madi, Lúcio Alves, Dalva de Oliveira, Maysa. E sua herdeira, a genial Nana Caymmi. Entre eles em lugar de honra, Lupicínio Rodrigues. E ainda mostra como o samba-canção terminaria por servir de humus fertilizador à bossa-nova.
Esse filão assume a aparência de algo razoável, até racional, quais sejam as tensões entre o lar e a boemia – problema grandioso para o homem, naturalmente. Mas é só escavarmos um pouco que, sob aquele verniz destinado a desencaminhar as críticas, logo se revela um tremendo machismo. Pois se fala em lar e boemia, como prerrogativas do macho, o que logo aparece é a hostilidade à mulher, mal disfarçada, e um patriarcalismo moralista de brutalidade sem limites.
No universo da vida real, não podemos deixar de nos regozijar porque a aberração constituída pelo princípio de “Legítima defesa da honra”, essa contribuição do Brasil à civilização, acaba de caducar, após décadas de vigência.
Tipicamente masculinas, estas canções postulam uma contradição entre o lar e a vida na boemia, mostrando posições muito conservadoras – aliás, a nota dominante nestes sambas em que a “dor-de-cotovelo” brada mais alto. Dos mais explícitos é Brasa, de Lupicínio Rodrigues, que atribui toda a culpa à esposa briguenta e intratável. O marido lhe diz sem rodeios que se ela amansasse ele nem sequer sairia de casa. E a compara às “mulheres da rua”, que sabem melhor agradar – razão suficiente para justificar as noites passadas na farra.
Não menos machista é A volta do boêmio, de Adelino Moreira, que sabe modular as sutilezas do tema da “volta”, que, a exemplo de todos esses autores, Lupicínio Rodrigues também burilou. Pois há mais de uma nesse samba, e com sentidos diferentes. O boêmio abandonou a boemia e escolheu o lar. Mas hoje voltou à boemia porque a mulher lhe deu permissão. E aí vem a chave de ouro: ela declara com orgulho que é a segunda em seus afetos, logo depois da boemia, e por isso está segura de sua volta.
Valdick Soriano fica aqui representado por esse primor que é Eu não sou cachorro não, verso genial que já diz tudo. Mas no corpo da canção deixa a situação ainda mais clara: “… amar sendo enganado”, “amar sendo humilhado” .É instrutivo assistir o documentário que Patrícia Pilar filmou sobre o compositor intitulado Sempre no meu coração.
O inigualável Noel Rosa era chegado às damas da noite em sua vida de boêmio, pois quase todo o seu trabalho era noturno, tocando violão e cantando nos bares e nos cabarés. Dizem que A dama do cabaré é uma muito concreta Ceci, de uma casa na Lapa, com quem ele manteve um turbulento romance de vários anos. Não falta o toque de humor típico do autor.
O grande letrista parnasiano Orestes Barbosa, autor de Chão de estrelas, em A mulher que ficou na taça faz das suas mais uma vez, ao descrever a visão do homem que busca consolo na bebida pela rejeição que sofreu. Embora cercado por outras mulheres, ele só quer aquela, que ele “vê” materializada dentro da taça de bebida e que o incita a beber ainda mais.
Se você jurar, de Ismael Silva, apimenta com uma muito necessária nota de humor todo esse dramalhão machista da “dor de cotovelo”. Só com muitas garantias da amada, e ainda assim no modo dubidativo (se…), o narrador poderia se regenerar, porque, do contrário, diz ele, “a orgia assim não vou deixar”.
Em Trem das onze, de Adoniran Barbosa, subjaz ao casal um surpreendente triângulo, introduzindo um elemento edipiano na relação. O narrador, morador do subúrbio, desculpa-se por ser obrigado a alcançar o último trem, pois sua mãe não dorme enquanto ele não chega – ele, o filho único.
*Walnice Nogueira Galvão é professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Sesc\Ouro sobre Azul). [amzn.to/3ZboOZj]
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