Eleições atípicas

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por TARSO GENRO*

O enigma é se a mera demarcação é capaz de produzir políticas capacitadas para enfrentar os efeitos da emergência fascista

Viktor Orban ganhou as eleições na Hungria. Aqui, Jair M. Bolsonaro firma um campo político que pode viabilizá-lo como um candidato forte num segundo turno, logo depois da vitória de Gabriel Boric no Chile. O processo eleitoral é um momento decisivo na disputa pela hegemonia na sociedade liberal-democrática, pois a informação visual instantânea – predominante nestes processos – se apresenta como uma espécie de “história em marcha”, dentro da qual, em cada episódio da disputa hegemônica, o “visual” é uma forma simplificada de explicação.

A partir da informação visual – com telegráficas mensagens de ódio em sequência –, o acontecimento pode ser apresentado como “único”, com ou sem conexões com o passado. Através dele, a história pode aparecer como pura cotidianidade: História fixa onde o espectador passivo pode frui-la sem qualquer compromisso com o conhecimento do presente.

A produção da informação em redes, desta forma, facilita a criação de mentes sem memória, como se a vida fosse um “presente perpétuo” instável, mas sempre acompanhada pelo olhar. Nesta perspectiva, o viver não é uma sequência da história, logo com origens e consequências, mas um fluxo de momentos sem hierarquia e sem valores: a memória é sufocada pelas infinitas superposições de outros novos fatos, igualmente desconectados entre si, igualmente “descartáveis” e igualmente vinculados ao presente do mercado, onde se sucedem “estabilidade” e anarquia. Assim, o presente é tendencialmente apropriado como se futuro fosse e é, em consequência, a verdade aceitável.

O enigma neste início de século de destruição da sociedade burguesa clássica é se a mera demarcação (não a ausência de demarcação, mas a mera demarcação) é capaz de produzir políticas capacitadas para enfrentar os efeitos da emergência fascista. No Chile, isso ocorreu, mas por fora do sistema partidário da democracia liberal. No imaginário das pessoas comuns, em regra a destruição deste presente é sempre uma destruição em que os fatos perturbadores da vida comum são sempre “vistos” como contrários à (falsa) segurança e estabilidade que já temos. No Chile, mobilizado pelas mulheres em luta, os jovens, os de “fora” do mercado suntuário, os famintos de todas as ordens superaram esta contradição e fizeram vencer a indeterminação criadora.

A esquerda nascida dos movimentos no Chile passou a levar em conta que as fronteiras entre as classes também já não eram mais demarcadas como antigamente, logo a forma de apreensão da realidade social pelos indivíduos não era mais a mesma. A exclusão e a precariedade – de um lado – e, de outro lado, também as classes empresariais, já não estavam (e não estão) mais alicerçadas na ideologia burguesa “clássica”. O seu manto fáustico-produtivista foi dissolvido e nelas restam só resíduos ideológicos da implantação da nação construída nos mercados locais, já desagregados pelo poder global do “capital-dinheiro”.

A ausência de fronteiras nítidas e definidas entre as classes, do ponto de vista cultural e existencial, não significa, todavia, uma maior proximidade entre elas. Significa uma maior fragmentação na totalidade social, que não só desconstituiu os valores tradicionais que as unificavam e as contrapunham, mas também determinou que, em vez delas se aproximarem pela contradição negociada, passassem a afastar-se na sua recíproca diluição.

A incerteza também confere uma instabilidade extraordinária aos setores privilegiados dentro do sistema, associados aos destinos do capital-dinheiro: a ironia é que, se eles têm força suficiente para criar as crises que eles mesmos fruem, eles também têm cada vez menos controle sobre o seu destino nacional. Neste contexto, a demarcação exclusiva fixa campos políticos irremovíveis, no qual o fascismo se reproduz, mas a concepção que pauta a luta pela hegemonia cria “zonas de compromisso”, que obstruem o extremismo assassino do fascismo.

Os projetos do período “clássico” de democratização republicana pela demarcação tradicional apoiava-se em identidades hoje desorganizadas que, na sua relação social cotidiana, estão cada vez mais informadas pela violência (fora da política) ou por micro negociações corporativas. A disputa pela hegemonia na sociedade, como consequência, secundariza as ações demarcatórias e torna predominantes as ações que orientem os indivíduos e os grupos sociais – mais além das ideologias – com projetos políticos que combatam a incerteza. O agrupamento em torno de determinadas ideias-força, que tenham mais caráter constitutivo e menos conteúdos demarcatórios, passa a ser fundamental para a produção de um novo imaginário emancipatório.

Gramsci, à sua época, já criticava o “denuncismo” – forma tradicional de “demarcação” –, cuja “atividade crítica reduzia-se a desvendar truques, a suscitar escândalos, a vasculhar a vida privada de homens representativos”, inclusive esquecendo uma outra proposição da filosofia da “práxis”, a saber, que as “crenças populares”, ou as crenças do tipo daquelas, têm a validade de forças materiais”.[1] Não é gratuito que a imprensa tradicional adote sempre um “denuncismo” generalizado e, ao mesmo tempo, recuse-se a reconhecer a existência de alternativas de fundo ao neoliberalismo.

Cumpre a todos aqueles que não desistiram dos ideais utópicos da igualdade resgatar a força da política, dando novas energias e nova vitalidade ao processo democrático e às lutas pela igualdade. A renovação reacionária do liberalismo (Wallerstein)[2]na era digital-informática; a revolução microeletrônica; a revolução das comunicações e da informação; o surgimento de milhares de novas profissões de vanguarda; o novo lazer individualizado nos “games” e a quebra das identidades nacionais, são algumas das mudanças que produzem uma nova e diluída socialidade, no dizer de Frederic Jameson, com a sublimação histérica do presente.[3]

Os excluídos do conhecimento tecnológico revolucionário, os alienados da informação sem hierarquia quanto aos valores humanos, os “sem” perspectiva de pão, terra, afeto, teto e convívio, lançados à marginalização e ao desemprego, à horizontalização, intermitência e à precariedade, vêm dissolvendo os padrões éticos e a moral do trabalho que formava a identidade operária e o sentido da revolução. Isso mudou a vida política, mas pode impulsionar uma esquerda que afirme os valores da igualdade do velho sujeito revolucionário, junto com as práticas de radicalização democrática dos novos movimentos e das classes trabalhadoras tradicionais: as velhas classes estão definhando na nova genética do capital, assim como os valores iluministas estão se prostrando pela emergência do fascismo.

Nestas eleições tudo isso estará em disputa, como esteve no Chile de Pinochet e na Hungria de Viktor Orban. No Chile de Allende, ganhamos. Na Hungria de Lukács, perdemos. No Brasil, venceremos.[4]

*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).

 

Notas


[1] GRAMSCI, Antonio. Obras Escolhidas. Lisboa: Editorial Estampa, 1974, vol. I, p. 310.

[2] WALLERSTEIN, Immanuel. Após o Liberalismo – Em busca da reconstrução do mundo. Petrópolis: Vozes, 2002, p.23.

[3] ANDERSON, Perry. As Origens da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 67-68.

[4] Este texto é inspirado no que foi publicado na revista Teoria e Debate nº. 53.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Chico Alencar Airton Paschoa Luiz Renato Martins Daniel Afonso da Silva Luis Felipe Miguel Jorge Luiz Souto Maior Marcelo Módolo Luiz Bernardo Pericás Andrés del Río Paulo Martins Alexandre de Lima Castro Tranjan Bruno Machado Gilberto Maringoni Benicio Viero Schmidt Bento Prado Jr. Michael Löwy Michel Goulart da Silva Lincoln Secco Armando Boito João Carlos Loebens Thomas Piketty Eleonora Albano Alysson Leandro Mascaro Henri Acselrad João Paulo Ayub Fonseca Juarez Guimarães Berenice Bento Ricardo Musse Ari Marcelo Solon Francisco Fernandes Ladeira Annateresa Fabris Julian Rodrigues Carla Teixeira Salem Nasser José Luís Fiori Anselm Jappe Antonino Infranca André Márcio Neves Soares Ricardo Abramovay Daniel Costa Paulo Sérgio Pinheiro Marcelo Guimarães Lima Leda Maria Paulani Lucas Fiaschetti Estevez Andrew Korybko José Machado Moita Neto Leonardo Boff Ricardo Fabbrini Carlos Tautz Paulo Nogueira Batista Jr José Raimundo Trindade Mário Maestri Paulo Fernandes Silveira Francisco de Oliveira Barros Júnior Maria Rita Kehl João Carlos Salles Francisco Pereira de Farias Tales Ab'Sáber Flávio Aguiar Caio Bugiato Ronald Rocha José Costa Júnior Yuri Martins-Fontes Priscila Figueiredo João Lanari Bo Luiz Eduardo Soares Walnice Nogueira Galvão Tadeu Valadares Vinício Carrilho Martinez Jean Marc Von Der Weid Antônio Sales Rios Neto Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Valerio Arcary Luciano Nascimento Marilena Chauí Slavoj Žižek Rodrigo de Faria Luiz Werneck Vianna Eleutério F. S. Prado Heraldo Campos Manuel Domingos Neto Antonio Martins Michael Roberts Matheus Silveira de Souza Ronaldo Tadeu de Souza Renato Dagnino Liszt Vieira José Geraldo Couto André Singer Bernardo Ricupero Ricardo Antunes Gabriel Cohn Eugênio Bucci Dênis de Moraes Alexandre de Freitas Barbosa Érico Andrade Henry Burnett Dennis Oliveira Luiz Roberto Alves Rubens Pinto Lyra Plínio de Arruda Sampaio Jr. Remy José Fontana Chico Whitaker Osvaldo Coggiola Vanderlei Tenório Leonardo Sacramento Eduardo Borges Daniel Brazil Elias Jabbour Luiz Carlos Bresser-Pereira Samuel Kilsztajn José Micaelson Lacerda Morais Celso Favaretto Fábio Konder Comparato Eliziário Andrade Eugênio Trivinho João Feres Júnior Flávio R. Kothe João Adolfo Hansen Luiz Marques Jean Pierre Chauvin Fernão Pessoa Ramos Atilio A. Boron Rafael R. Ioris Paulo Capel Narvai Fernando Nogueira da Costa Milton Pinheiro Valerio Arcary José Dirceu Igor Felippe Santos Alexandre Aragão de Albuquerque Manchetômetro Denilson Cordeiro Marjorie C. Marona Jorge Branco Gerson Almeida Ladislau Dowbor Lorenzo Vitral Celso Frederico Claudio Katz Sandra Bitencourt Otaviano Helene Tarso Genro Kátia Gerab Baggio Leonardo Avritzer Mariarosaria Fabris Vladimir Safatle Sergio Amadeu da Silveira Gilberto Lopes Marilia Pacheco Fiorillo Everaldo de Oliveira Andrade Ronald León Núñez Marcos Silva Bruno Fabricio Alcebino da Silva Afrânio Catani Marcus Ianoni Boaventura de Sousa Santos João Sette Whitaker Ferreira Marcos Aurélio da Silva Luís Fernando Vitagliano

NOVAS PUBLICAÇÕES