Manguebeat: a cena, o Recife e o mundo

Willem de Kooning, de Kooning, 1965
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DANIEL BRAZIL*

Comentário sobre o livro recém-lançado de Luciana Mendonça.

Pense numa pessoa que se envolve profundamente com a música de sua geração, a ponto de transformá-la em motivo central de sua carreira acadêmica. Assim é Luciana Mendonça, que publicou em 2020 este ensaio sobre o manguebeat, o movimento musical gestado em Recife que se tornou uma das mais influentes correntes culturais da década de 1990.

Surgido como tese de doutoramento pela Unicamp, em 2004, o trabalho se estendeu com o acompanhamento da cena mangue (expressão cara à autora) e acabou gerando uma detalhada análise sobre o impacto cultural, ético, político e estético, causado pela turma de Chico Science e Fred Zeroquatro, à frente das bandas fundadoras Nação Zumbi e Mundo Livre S/A.

Cumprindo o rito acadêmico, o livro é balizado por um conjunto de referências sociológicas que dão munição ao debate sobre indústria cultural, massificação, identidade nacional, cultura popular e modernidade. Autores como Adorno, Benjamin, Eco, Canclini, Hobsbawm e, principalmente, Bordieu e Stuart Hall, fundamentam os arrazoados sobre cultura e mercado, nacional e estrangeiro, erudito e popular, música autêntica e world music.

Luciana costura com habilidade esses teóricos com os pesquisadores brasileiros que se debruçaram sobre a música popular. Estão lá os questionamentos de Tinhorão, Suassuna, Vianna, Sandroni (autor do prefácio), Wisnick e outros, junto com o material “quente” de dezenas de artigos, entrevistas, ensaios e manifestos, muitos surgidos do próprio movimento.

A autora mudou-se para Recife, e hoje é professora de sociologia e pós-graduação em música da UFPE. Mas, atenção: não é uma musicóloga, e sim uma mestra em antropologia social, que estuda o impacto sociocultural do chamado manguebeat sobre Pernambuco, abordando temas como revalorização do folclore, projetos sociais, dança, moda e redefinição dos espaços de vivência cultural da cidade de Recife.

Não esperemos análises de composições, estrutura musical ou elementos melódicos e harmônicos. Aqui a música popular é tratada como um produto social, um fenômeno de viés identitário capaz de portar mensagens impactantes e motivadoras. Ou, em outros cenários, como anestesiadora de conflitos e maquiadora da realidade.

Um dos capítulos mais interessantes do livro é quando são levantadas e discutidas as comparações do movimento mangue com a axé music baiana, analisando a velha rivalidade Recife x Salvador. O impacto social do Olodum, que introduziu uma nova estética, criou um mercado próprio e turbinou a música baiana, transformando-se num projeto com várias vertentes, levou a comparações com a cena mangue, muitas vezes impróprias. A principal diferença é o forte componente de identidade racial do movimento baiano, de valorização da cultura negra.

Os “caranguejos da lama” apostaram na mistura, na miscigenação, na busca de elementos da música pop mundial (rock, rap, reggae e outras), sobre uma base percussiva oriunda dos maracatus. Mas não só: a pesquisa da autora incorpora músicos tão diversos quanto os cultores do punk-rock do Alto José do Pinho (principalmente os Devotos), o rabequeiro Siba e a banda Mestre Ambrósio, a cirandeira Lia de Itamaracá, DJ Dolores ou os posteriores Mombojó e Cascabulho. Luciana Mendonça constata que a cena mangue criou condições para a convivência de todas estas ramificações, reunindo-os em festivais como o Rec-Beat, que rola durante o Carnaval.

Um dos capítulos mais saborosos aborda as relações conflituosas entre o movimento Armorial, capitaneado por Ariano Suassuna, e o mangue. Tradição versus modernidade? Erudito x popular? O próprio Suassuna, durante seu período como secretário de cultura de Recife (1994/98), estabeleceu diálogos e criou algumas condições (verbas) para os mangueboys. No entanto, em público sempre deu declarações ácidas contra as misturas promovidas por Chico Science e Zeroquatro. Mas no velório de Chico (1997) estava lá, contrito, derramando sua lágrima pelo jovem catalisador de energias criativas.

Contraditório? Claro, mas como bem sublinha a autora do estudo, o panorama cultural pernambucano é cheio de contradições. Em certa medida, ela parece demonstrar que as contradições são o próprio motor de transformação, pois do atrito de ideias surgem faíscas que podem gerar uma nova combustão.

Podemos traçar paralelos do caso pernambucano com outros cenários brasileiros: samba tradicional x pagode, escolas de samba x MPB, música caipira x sertanejo, invenção x tradição. Do choro ao pop, da bossa nova ao jazz, as inovações nunca surgiram sem superarem vários obstáculos ideológicos, sociais e financeiros. Mas poucas vezes veremos estes conflitos serem expostos de maneira tão consciente e minuciosa quanto nesse livro, desde já fundamental para os estudos de nossa música popular e suas transformações.

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

Referência


Luciana Mendonça. Manguebeat: a cena, o Recife e o mundo. Curitiba, Appris, 2021, 314 págs.

 

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • A massificação do audiovisualcinema central 11/11/2024 Por MICHEL GOULART DA SILVA: O cinema é uma arte que possui uma base industrial, cujo desenvolvimento de produção e distribuição associa-se à dinâmica econômica internacional e sua expansão por meio das relações capitalistas
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Ainda estou aqui — habeas corpus de Rubens Paivacultura ainda estou aqui 2 12/11/2024 Por RICARDO EVANDRO S. MARTINS: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • O porto de Chancayporto de chankay 14/11/2024 Por ZHOU QING: Quanto maior o ritmo das relações econômicas e comerciais da China com a América Latina e quanto maior a escala dos projetos dessas relações, maiores as preocupações e a vigilância dos EUA
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Ainda estou aquicultura ainda estou aqui 09/11/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES