Greve de docentes nas Universidades Federais

Imagem: Franco Garcia
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Por MARCELO SEVAYBRICKER MOREIRA*

A atual greve fortalece ou enfraquece o campo que luta pela consolidação de um sistema público, gratuito e de qualidade no ensino superior no Brasil?

Depois de seis anos sem qualquer reajuste salarial e sem qualquer greve (a última ocorreu em 2016), o governo federal – por meio da Medida Provisória 1170/2023 – concedeu aumento salarial para todo o funcionalismo público de 9% e reajustou o Auxílio-Alimentação de 458 para 658 reais. Além disso, retomou às mesas de negociação com os docentes federais, aumentou o número de bolsas e reajustou os seus valores para o mestrado e o doutorado (40%), o pós-doutorado (25%) – o que impacta positiva e decisivamente nas condições de trabalho dos docentes – além de ter expandido o número de bolsas e de seus valores para os estudantes (bolsas de Iniciação Científica, por exemplo, chegaram a um reajuste de 200%).

É inquestionável, por essas e outras razões, a notável inflexão da relação entre o governo Lula e as instituições federais de ensino em comparação com os últimos dois governos – Michel Temer e Jair Bolsonaro, quando houve um projeto deliberado de ataque, sucateamento e, inclusive, de privatização (alguém se lembra do “Future-se”) das instituições de ensino superior.

Ora, poder-se-ia alegar: é insuficiente. Claro que é! Mas são problemas que se acumulam há anos! Seis anos sem reajuste salarial e cinco anos de diminuição crescente das receitas das instituições federais de ensino (desde 2019), para uma estrutura de ensino – lembremos – que cresceu muitíssimo, tornando-se muito mais democrática e plural (não é demais lembrar, a partir do primeiro governo Lula).

Ora, o que alguns sindicatos de docentes têm decidido recentemente? Paralisar as atividades. Alegam, com razão, que não há previsão de reajuste salarial para a categoria em 2024 (ainda que exista a previsão orçamentária de reajuste de 4,5% nos dois anos seguintes e de aumento dos benefícios de saúde, creche e alimentação, já para 2024). Acrescenta-se a esse motivo a indignação do reajuste maior concedido pelo atual governo a outras categorias do funcionalismo público – em especial, a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal (que, como sabemos, havia cerrado fileiras com o bolsonarismo).

Injustiça, sim, mas, como já ensinava Maquiavel, a política não é, necessariamente, o reino das ações justas e corretas, mas das ações que produzem uma consequência desejável – talvez, nesse caso, disputar com a extrema direita, a adesão dessas corporações tradicionalmente fortes no país. E novamente, não é de hoje que existem disparidades grandes no funcionalismo público. Militares, Judiciário, Polícia Federal, dentre outros setores, sempre tiveram salários e benefícios injustificáveis do ponto de vista da razão, mas compreensíveis dada a história nacional.

Como demonstrou Wanderley Guilherme dos Santos, no modelo de cidadania regulada, o Estado brasileiro sempre utilizou-se da regulamentação do mercado de trabalho a fim de garantir a submissão das corporações profissionais ao establishment. Portanto, ainda que a indignação seja justa, não é este governo, ou mesmo a greve docente que irá produzir uma modificação nesse padrão histórico.

É preciso, então, ser realista e compreender bem quais são os efeitos imediatos de uma greve docente. Em primeiro lugar, a suspensão das aulas e o prejuízo aos estudantes. E, lembremos, isso não significa nem propriamente o fim do trabalho docente. Todos nós teremos que continuar pesquisando, publicando artigos, orientando, formulando pareceres para revistas e órgãos de pesquisa etc. E, além disso, teremos que repor as aulas perdidas posteriormente.

Não basta voltar a trabalhar, como ocorre com muitos outros trabalhadores, pois uma consequência particular de uma greve de professores é a de ter que reorganizar o calendário letivo de modo a repor a carga horária não lecionada, perdendo o período das férias regulares e intensificando o trabalho (como ocorreu recentemente por conta da pandemia do novo coronavírus). Além desses dois efeitos, as universidades tendem a ficar esvaziadas, como sabemos por experiências anteriores. Com a suspensão das aulas, os estudantes, em geral, não irão mais para os campi e alguns deles voltarão para suas cidades de origem.

Então, para quê a greve? Que tipo de politização, debate e ação política será possível nesse cenário? At last but not least, se é verdade, como se argumentou aqui, que este governo, (a despeito das suas inúmeras limitações) é inequivocamente melhor para as universidades, para a ciência e para a classe docente, será a greve uma medida sensata neste momento? Ainda que seja um direito constitucionalmente assegurado e uma forma de ação coletiva legítima, é preciso que ela seja adotada quando o cenário for conveniente ao ator que a realiza.

Ora, a correlação de forças da política nacional é sabidamente muito favorável ainda à ultradireita, com sua ideologia anti-ciência e contrária às universidades públicas – vistas pelo bolsonarismo como um reduto de esquerdistas e vagabundos. Nenhuma greve dos docentes federais nos quatro anos do governo Bolsonaro e uma greve contra o governo Lula (que, diga-se de passagem, ainda se dispõe a negociar com a categoria) sinalizaria, então, o que para a opinião pública? Como essa greve será apropriada pelo campo contrário à consolidação de um sistema público, gratuito e de qualidade de ensino superior no Brasil em um ano eleitoral?

Por outro lado, é lógico que o governo Lula precisa ter igualmente uma compreensão mais adequada do cenário. Que os ditames de austeridade que se impõe hoje sobre toda democracia não o cegue totalmente. Não estou nem me referindo a declarações indevidas do presidente da República sobre a “grevizinha” dos professores ou à postura dos burocratas enviados às mesas de negociação com os sindicatos e que estabelecem a interrupção do movimento grevista como condição para a conversa. O erro político mais grave do atual governo parece estar associado à incompreensão de que seu sucesso como projeto político-eleitoral pressupõe necessariamente ir muito além da agenda neoliberal. E que a estratégia adotada nos governos anteriores de Lula (assentada em um pacto conservador e uma reforma gradual, como argumentou André Singer) não pode ser replicada, pois o contexto atual não é o mesmo de outrora, dentre outros fatores porque o país conta agora com uma ampla franja de eleitores radicalizados e mobilizados à direita. Que é preciso, portanto, construir políticas sólidas de bem-estar social, inclusive na educação, para ampliar sua base de apoio e para garantir que os eleitores saiam em sua defesa quando o governo for atacado. Que o segundo governo Dilma sirva de exemplo ao presidente da República e aos seus ministros é o mínimo que se deve esperar.

*Marcelo Sevaybricker Moreira é professor do Departamento de Ciências Humanas da Universidade Federal de Lavras (UFLA). Autor do livro O pensamento político de Wanderley Guilherme dos Santos (Appris). [https://amzn.to/3ToA2H0]


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