Por LINCOLN SECCO*
Homenagem ao historiador e professor, recém falecido
Marcos Antônio Silva foi historiador e professor. Essas duas dimensões eram inseparáveis nele. Sua obra está voltada não apenas para pesquisadores, mas também para trabalhadores da educação. Ele atuou muito nas reformulações do currículo de história.
Marcos Silva propugnou um currículo com ênfase na história do Brasil, o que lhe rendeu críticas apressadas, pois como Caio Prado Junior demonstrou: pensar o Brasil é compreendê-lo no mundo. Assim como discutir o catolicismo na colônia é, segundo Marcos Silva, retomar as Antiguidades romana, grega ou as do Egito e Mesopotâmia. Ele admitia que até era lícito estudar aqueles temas antes da História do Brasil, desde que não fossem tomados como origens cronológicas ou causas[i].
A ideia de América Portuguesa apagaria as presenças afro e indígena. Temas clássicos continuariam imprescindíveis, como Revolução Industrial, mas acompanhados dos seus impactos na reestruturação das hierarquias geopolíticas, exploração internacional e resistências e revoluções.
Professor titular de metodologia da história na USP era dotado de grande coragem intelectual. Para ele não havia vacas sagradas isentas de crítica. Politicamente, eu diria que Marcos Silva se apropriava tanto do marxismo quanto de diversas orientações teóricas socialistas. Valorizava a cultura popular, combatia todas as formas de preconceito na universidade.
Não podemos esquecer que ele era um trabalhador nordestino que estudou na década de 1970 na USP e que não quis ingressar em nenhuma das igrejas do poder acadêmico. Marcos Silva era um decidido partidário dos de baixo e, por conseguinte, da historiografia que valorizava o olhar do oprimido.
Isento de modismos, recorria a autores sem qualquer compromisso com os silenciamentos impostos por pequenos poderes efêmeros universitários. Reconhecia autores comunistas anatematizados como Edgard Carone e Nelson Werneck Sodré. E também citava músicos populares em seus artigos científicos.
Quando a imprensa e parte da universidade festejavam a obra jornalística de Elio Gaspari sobre a ditadura, Marcos Silva submeteu seus livros a uma rigorosa crítica científica que publicou na Revista Adusp e posteriormente no livro A Ditadura Relativa, pela editora Maria Antônia do GMarx-USP. Desmontou a “versão definitiva” do porta-voz de Golbery.
Fez o mesmo, embora reconhecendo a qualidade dos autores, com a coletânea História da Vida Cotidiana no Brasil, livro que deixou inédito. Entre suas referências estavam Antonio Gramsci, E. P. Thompson, Eric Hobsbawm, Michel Foucault, Luisa Passerini e Jean Chesnaux, autor que ele traduziu. Cultivava a história oral, mas combatia a ideia de que só havia um uso consagrado no Brasil. Propunha outras abordagens. Leu profundamente Gilberto Freyre, Câmara Cascudo, Mário de Andrade, Paulo Prado e muitos autores e autoras brasileiros.
Apesar de sua incessante rebeldia intelectual que incluia o diálogo crítico com o seu próprio espaço institucional de atuação, Marcos manteve uma marca da Faculdade de Filosofia da USP: a preocupação permanente com a forma. Chamo atenção para sua leitura da música popular, tangenciando o significado histórico dos tons e dos ritmos, além do conteúdo das letras. Marcos Silva também era exímio leitor do cinema e dava aulas sobre a utilização de fontes visuais na história.[ii]
Eu conheci Marcos Silva quando eu era aluno de graduação em história na USP e ele já era professor. Estivemos juntos em muitos debates, festas populares que ele organizava e manifestações políticas. Organizei com ele e Olga Brites o livro Mulheres que interpretam o Brasil, pela editora Contracorrente. A presença de mulheres que normalmente não participariam de uma antologia desse tipo deve-se principalmente ao Marcos Silva. Para ele não havia patamares diferentes entre Mãe Menininha, Carolina de Jesus e Emília Viotti da Costa.
Marcos Silva era assim. Avesso a hierarquias. Diferentemente de Ferdinand Braudel, o mestre que não acreditava na superação de todas as opressões, Marcos Silva concordava mais com Jean-Paul Sartre. E sonhava uma sociedade transparente e livre. Não fazia nenhuma diferença entre a fala de um aluno e a de um acadêmico consagrado e submetia ambos à crítica. Ele pensava assim e agia assim. [iii]
*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê). [https://amzn.to/3RTS2dB]
Notas
[i]Silva, Marcos. “Tudo que você consegue ser: Triste BNCC/História (a versão final)”, Ensino em Re-Vista, dezembro 2018. https://www.researchgate.net/publication/332691681_TUDO_QUE_VOCE_CONSEGUE_SER_-_TRISTE_BNCCHISTORIA_A_versao_final_ALL_YOU_CAN_BE_-_SAD_BNCCHISTORY_The_final_version
[ii] Uma amostra de sua variedade de interesses pode ser vista nos artigos que publicou no site A Terra é Redonda. Disponível em https://aterraeredonda.com.br/tag/marcos-silva/
[iii]Uma primeira versão do texto foi originalmente publicada em https://adusp.org.br/memoria/marcos-silva/
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