Por EUGÊNIO BUCCI*
No 8J governo defunto parece ter reencarnado na malta para terminar o serviço de destruição que deixara incompleto
O empastelamento da República no domingo passado, 8 de janeiro de 2023, ficará para a História como o resumo compacto do governo que acabou em 31 de dezembro de 2022. Os depredadores teleguiados encenaram a sanha-mestra do bolsonarismo: a vandalização das instituições democráticas, do patrimônio histórico, dos valores culturais, da política, da Justiça e dos equipamentos públicos.
O governo defunto parece ter reencarnado na malta para terminar o serviço de destruição que deixara incompleto. Ao espatifar relógios, quadros, vidraças e cadeiras, os bandidos quebraram as repartições e moldaram, em definitivo, a máscara mortuária da presidência de Jair Bolsonaro. O retrato post mortem é o mais nítido. É aquilo lá, sem tirar nem por. Você não pode mais dizer que não esperava.
Ao longo da semana, entidades da sociedade civil e autoridades públicas repudiaram o assalto golpista. Acertaram na intenção, o que é bom, mas erraram no objeto, o que não é tão bom. A imundície que inundou o Supremo Tribunal Federal, o Congresso Nacional e o Palácio do Planalto no domingo não foi a verdadeira tentativa de golpe de Estado. A grande intentona – esta, sim, ameaçadora – foi o governo que se estendeu de 2019 a 2022. Durante esse período, o Poder Executivo se estruturou como um projeto persistente de ruptura da ordem democrática para instaurar um Estado de exceção.
Aquilo, sim, foi um golpe, dia após dia, golpe em gerúndio. Órgãos públicos como o Ibama e a Funai foram desmantelados, tradições de luz como a do Itamaraty receberam enxovalhos, a ciência não mereceu nada além de desprezo, a Justiça sofreu afrontas diárias, a saúde pública foi pisoteada e a imprensa, intimidada por falas diretas do chefe de Estado. Não, a verdadeira agressão à democracia não foram as patetadas do 8 de janeiro que estropiaram obras de arte, mas a presidência do tal que se refugiou na Flórida depois de humilhar a toda a cultura nacional. A tarde de domingo foi apenas o arremate póstumo – que deve ser execrado, sem dúvida, mas o pior veio antes.
E não veio sem aviso. O próprio ex-presidente cuidou de alardear seus propósitos, muitas vezes. Há quase quatro anos, ele disse: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa.” Foi na noite de 17 de março de 2019, em Washington, num jantar que reuniu a nata fedegosa do rebotalho reacionário. Já naquela ocasião, pouco mais de dois meses depois da posse, o sujeito se definia publicamente como um desconstrutor, um destruidor. Agora, seus seguidores amestrados levaram a coisa ao pé-da-letra: emporcalharam tudo o que viram pela frente – e pelas costas (você deve ter visto na internet).
O nível de alucinação não tem precedentes. Seguramente, os mandantes não acreditavam que derrubariam Lula com a arruaça tardia; queriam fustigar, agredir, causar, criar um clima adverso – e, é lógico, queriam fazer isso sem dar as caras, sem se incriminar. Quanto aos depredadores de corpo presente, estes pareciam certos de que seriam condecorados no dia seguinte. Quanta insânia.
Narcisistas como o dono, gravaram cenas incontáveis em que aparecem perpetrando ilicitudes em série. Produziram provas e mais provas contra si mesmos. Uns bradam, em transe místico: “É o Brasêêêo!” Outros exultam: “É nosso! É nosso! Isto aqui é nosso!” Ato contínuo, despedaçam o cenário, deixando ver o que entendem por “é nosso” e, mais ainda, o que vai na mente turva de quem os comanda.
Entre as leituras que já foram feitas sobre a vesperal da infâmia, não percamos de vista a interpretação, por assim dizer, semiótica. A turba em catarse condensou em performance a ideologia do governo ido. O espetáculo se organizou como um infográfico de horrores. No teatro tanático, os capangas ficaram nus, como o seu rei já está. Não temos mais o direito de fingir que não vimos.
E aqui estamos nós. Enquanto os tontos úteis se hospedam na cadeia, os chefes e os chefetes tentam disfarçar. Fingem que não é com eles e renegam seus paus-mandados. Diligentes, tramam novos complôs. Vão atacar de novo. Sonham com confrontos armados. Desde que o prócer planejou soltar bombas porque não estava satisfeito com o soldo, o que existe aí é um terrorismo identitário e, pior ainda, zumbi, do tipo que morre e ressuscita. A máscara mortuária vai pleitear a reativação do cadáver. Apoios tácitos, velados e hipócritas não lhe faltam, inclusive fardados.
Que as instituições funcionem, pelo menos para investigar, julgar e punir os vândalos de camiseta amarela, seus gurus, seus financiadores e, principalmente, os prevaricadores que, armados ou não, facilitaram o ataque. Se virar pizza, a nação descarrila. A Justiça terá que fazer sua parte, sem demora.
Mas só isso não bastará. Daqui para a frente, teremos de aprofundar o combate à desinformação e à fábrica de fanatismo, ou não quebraremos o feitiço da servidão fascista a que tantos brasileiros e tantas brasileiras sucumbiram. E seguiremos um país sem juízo por baixo do quepe.
*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de A superindústria do imaginário (Autêntica).
Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.
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