Por JOSÉ CORREIA LEITE & RENATO JARDIM MOREIRA*
No momento em que o negro começa a tomar consciência de sua situação social aparece um negro, Antônio Carlos, com a ideia de formar uma biblioteca exclusivamente para negros
Para que se compreenda a história dos movimentos de negros é necessário que se comece no primeiro quartel do século, considerando duas forças que, durante muitos anos, conseguiram abafar, ou melhor, impediram a formação de condições para que os negros tomassem consciência da situação em que se encontravam.[1]
Uma provém do fato de: “muitas famílias negras terem permanecido ligadas aos seus ex-senhores, procurando-os comumente para pedir conselhos quando precisavam tomar decisões. As tentativas de organizar-se em movimento eram infrutíferas porque os senhores diziam que isso era bobagem, que nesta terra todos são iguais”.
A outra origina-se das relações de italianos e negros: “Os italianos diziam, na ocasião, que fora o rei da Itália que fizera a abolição. Tratavam bem aos negros afim de conseguirem empregados baratos. Batizavam os filhos dos negros. No Bixiga havia negros que falavam bem o italiano, jogavam baralho com eles, etc. Em uma palavra, o negro italianizou-se.”
“Enquanto isso se dava aqui, nos Estados Unidos o negro não podia andar na calçada e sofria inúmeras outras restrições que o levaram a reagir e organizar-se.”
Só depois da Grande Guerra, com o surto de industrialização verificado, foi que: “os negros mais conscientes observaram o aparecimento da pequena burguesia de imigrantes produzir uma transformação nas camadas dirigentes, pois começavam os imigrantes a substituir uma suposta aristocracia rural, sem iniciativas na indústria e no comércio, os quais ficavam nas mãos de italianos e turcos”.
À estas transformações de estrutura social, corresponde uma série de outros sucessos que influíram na tomada de consciência por parte dos negros, de seus “problemas específicos”: “A partir da guerra de 14-18, começou a efervescência dos negócios de ‘ismos’ (socialismo, comunismo). Frequentei reuniões da U.T.C., onde se embaralhava a revolta do negro com reivindicações do proletariado.[2] Nas nossas rodas de conversa apareciam negros e brancos envolvidos nas teorias marxistas. Estes diziam que a posição verdadeira do homem negro era lutar contra a ordem social, pois a culpada da situação era a exploração do regime capitalista. Falavam de um famoso pintor mexicano que tinha feito um mural onde aparecia Lenin no meio de dois trabalhadores: um branco e um negro com as mãos entrelaçadas, tendo Lenin as mãos sobre eles” (deve ser nos ombros, abraçando-os).[3]
Teve também intensa repercussão no meio negro, o caso Scottsboro, pois nessa ocasião os comunistas trabalhavam intensamente entre os negros no sentido de demonstrar que haviam tomado a defesa, através de seu Socorro Vermelho, daqueles sete negros acusados, por mulheres brancas, de as haverem violentado. Ficou provado que essas mulheres eram prostitutas”.[4]
“Em 1920 apareceram notícias dos primeiros êxitos dos negros na música. Dizia-se aqui que os primeiros ragtimes eram ‘coisa de negro’”.
“De 1922 a 1927, o movimento modernista trouxe a sua contribuição para a criação de uma consciência que possibilitasse a organização de um movimento de negros para atender às suas reivindicações específicas, com os negros fornecendo temas para a poesia e a pintura. Era uma espécie de reabilitação do negro para o próprio negro, pelo branco”.
“Conheceu-se nessa época as ideias garveistas de fundar um império negro na África, para cuja efetivação foram levantados milhões de dólares”. [5]
“Soube-se de movimentos de negros nos Estados Unidos, com desfiles de protesto contra restrições aos negros”.
“Em 1924, já havia consciência formada, do idealismo do negro. Em Campinas, onde o emparedamento do negro era maior, essa consciência apareceu primeiro. Havia lá, um bom jornal (O Getulino) de combate e luta. De 24 a 26, Benedito Florêncio, Gervásio de Moraes e Lino Guedes transferiram-se para São Paulo e passaram a ser os principais oradores em todas as festas cívicas do meio negro”.
“Começou-se a sentir a revolta que causavam os negros capangas de políticos, bajuladores, e a necessidade de formar-se um grupo consciente para lutar contra esses que tinham sentimento de inferioridade”.
“Esclarece bem esta situação o jornal Clarim d’Alvorada, que Jayme de Aguiar teve a ideia de fundar, fazendo-o em companhia de José Correia Leite. Aparecendo em janeiro de 1924, com pretensões puramente literárias, tornou-se um ano depois um jornal doutrinário e de luta, por força da colaboração que recebia. A orientação que se imprimiu ao jornal, neste início, foi de aproximação ao branco e recuperação do negro, além da ideia constante da necessidade de união de classe (de homens de cor, porque o termo só mais tarde foi aceito).” (…).
“Desde 1915 vinham sendo fundadas organizações de negros que acabavam se desvirtuando e virando bailes. É fato que os fins dessas sociedades não eram de arregimentação da raça, mas sim culturais e beneficentes. Assim foram fundadas de 1918-1924 a Sociedade Beneficente 13 de Maio, o Grêmio Dramático e Recreativo Kosmos e outras. Constitui exceção, nesta época, o Kosmos, que realizou o seu programa educativo: teve um grupo dramático, e um jornal que publicava notícias sociais e ensaios literários.”
“Ao lado destas intenções sérias, continuavam os negros a serem capangas e, quando não, a fazer peregrinações em escritórios políticos. São dessa época duas organizações: a Federação dos Homens de Cor e a Sociedade Beneficente Amigos da Pátria. A Federação foi fundada pelos componentes da Ordem do Rosário e outras entidades, tendo duração efêmera; entretanto, um negro, Jayme de Camargo, continuou a recolher contribuições, em nome dela, nas altas esferas políticas.” (…)
“Em 1926, um negro, filho de um professor de latim, negro, muito conhecido, quis entrar num clube de regatas (Tietê ou Espéria, não me lembro bem). Foi barrado. O cronista Carlos de Campos Sobrinho iniciou, pelo Diário da Noite, uma campanha contra essa atitude. Como resultado da posição do cronista, o jornal recebeu uma grande quantidade de cartas apoiando o gesto da diretoria do clube. A argumentação que então se fez para justificar o clube, invocava o atraso de Cuba e outros países dirigidos por negros e cuja maioria da população era constituída de negros. Nessa ocasião, o cronista foi procurado por um grupo de negros que, cumprimentando-o, ofereceu-lhe uma braçada de flores. Entretanto, a disposição geral favorável ao clube levou-o a desistir da campanha.” (…). [6]
Nesse momento, em que o negro começava a tomar consciência (uma consciência ainda nublada, confusa, toda cheia de contradições) de sua situação social: “aparece um negro, Antônio Carlos, hoje major em Barbacena, com a ideia de formar uma biblioteca exclusivamente para negros.”
Surgiu dessa ideia uma instituição com o nome de Centro Cívico Palmares, que assumiu logo um papel sui-generis entre os movimentos de negros: “A finalidade nitidamente cultural com que surgiu – organização de uma biblioteca – foi por força das condições em que vivíamos, passando essa sociedade a ter papel na defesa dos negros e dos seus direitos. É esclarecedora, nesse sentido, a campanha que fez contra uma portaria do chefe de polícia dr. Bastos Cruz, que impunha a condição de branco para a aceitação na Guarda-Civil. Conseguiu o Palmares, que o deputado Orlando de Almeida Prado fizesse um discurso de grande repercussão, o qual provocou a queda dessa determinação. O diretor da Guarda, nessa ocasião, disse: ‘com a entrada de negros, podemos abrir a porta a morféticos e portadores de defeito físico’.” (…).
O Palmares reuniu os homens que, mais tarde, no decênio de 30, iriam separar-se em dois grupos e travar uma luta sem tréguas para a imposição de seus ideais aos negros. Aí estavam os irmãos Veiga dos Santos e José Correia Leite; Vicente Ferreira aí se integrou e veio para São Paulo.
Vejamos ainda outros fatos, ocorridos no período de 1927-30, de importância para a compreensão dos movimentos negros: “Em 1927, Vicente Ferreira, vindo do Rio exclusivamente para falar no sepultamento de Carlos de Campos, impressionou, pela sua oratória, todos os presentes à cerimônia fúnebre – e discursou ao lado dos maiores oradores da época (Roberto Moreira, Alfredo Pujol, Armando Prado)”. [7]
“Depois disto, ficou em São Paulo, pois aqui encontrou o elemento que no Rio não conseguia formar ou não existia, e se integrou, desde logo, no convívio social dos negros. Era pobre, paupérrimo; dormia numa hospedaria quando tinha dinheiro para o quarto. Não trabalhava e bebia pinga. De seus negros, recebia dinheiro; de branco, nunca. Era semianalfabeto, não sabendo escrever o próprio nome, mas era um grande orador popular. Como tal participou, nessa ocasião, de uma série de comícios populares, realizados a fim de preparar as homenagens a serem prestadas aos tripulantes do Jahú. Foi, desde essa época, o principal orador de todas as reuniões de negros.”
“Tendo encontrado o Palmares fundado, nele se integrou, dando, por ocasião de sua entrada nessa organização, uma entrevista, no São Paulo Jornal, que abalou os negros daqui, devido às acusações que fazia contra eles, por não estarem apoiando aquela organização. Disse entre outras cousas: ‘os negros de São Paulo estão sambando em cima dos túmulos dos seus avós e amarelecendo na maior promiscuidade nos porões da cidade’.”
“Quem respondeu a esses insultos, defendendo os negros, foi o Clarim d’Alvorada. [8] Assim, entraram em choque, só mais tarde sendo apaziguados pelo presidente do Palmares, na época um negro estrangeiro”.
“Foi Vicente Ferreira quem introduziu o termo negro para substituir o então usado e vazio homem de cor. Homem de cor também é o amarelo e o índio; acabou com essa baboseira de homem de cor, que não quer dizer nada.” (…).
“Outro fato liga-se à viagem do Jahú, em 1927. Em Casablanca, um dos tripulantes brigou com os demais porque seu nome não figurava como membro da tripulação. Os jornais daqui atribuíram essa atitude à sua cor – era mulato. As insinuações safadas eram feitas nas entrelinhas, mas nós negros, acostumados a ver essas safadezas, percebemos logo. Para desmentir o que foi dito desse tripulante, um outro, Newton Braga, também mulato, manteve-se junto dele, fielmente.” (…). [9]
“No fim da célebre conferência do dr. Batista Pereira, sob o título ‘O Brasil e a Raça’, em que criticava Gobineau, houve um grande tumulto entre os estudantes para resolver se o Vicente Ferreira devia ou não falar. Acabou falando e defendendo a raça negra.” (…) [10]
“Em 1928, o Clarim d’Alvorada tentou realizar o que se chamou, então, Primeiro Congresso da Mocidade Negra, tendo enviado convites aos intelectuais negros. Deste, somente o dr. Arlindo Veiga dos Santos aceitou-o, tendo escrito uma mensagem publicada no Clarim e no A Capital e ficado encarregado de redigir o programa. O dr. Evaristo de Morais enviou uma carta dando sua adesão ao Congresso. Houve nessa época, uma reação contrária, na imprensa da capital, tendo o Diário da Noite publicado editorial nesse sentido.” [11]
“É também desse período – 1928 – o movimento para que 28 de setembro fosse considerado o dia da Mãe Negra. Em 28 de setembro de 1928 A Gazeta publicou a notícia do roubo, por uma negra, do colar de sua patroa, sob o seguinte título: ‘No dia da Mãe Negra, Josefina roubou o colar’. Dois dias depois um português publicou, na seção-livre do Diário Nacional, um artigo com o título: ‘Pede-se mais respeito aos negros’. O grupo do Clarim descobriu quem era o autor e foi visitá-lo afim de agradecer a defesa espontânea – era um guarda-livros recém chegado de Portugal.” (…) [12]
“Havia, na Faculdade de Direito, um esqueleto de uma negra conhecida por Jacinta. Mudando o diretor da faculdade, o novo achou que aquilo era uma heresia e mandou que o enterrassem com toda a pompa que um corpo merece. No dia do enterro compareceram representantes de muitas organizações negras e, no Cemitério de São Paulo, Vicente Ferreira pronunciou um dos mais felizes discursos de sua vida: fez os estudantes chorarem, descrevendo São Paulo do tempo de Jacinta.” (…). [13]
“O Fanfula, jornal da colônia italiana e arauto do fascismo, publicou um artigo no qual se dizia que São Paulo, colonizado pelos italianos, ainda não havia conseguido branquear sua população. Ainda mais: os estrangeiros sentiam-se mal, quando aqui chegavam, vendo tanto negro andando pelas ruas. Estes comentários provocaram uma reação nos estudantes de direito que, numa atitude de repulsa, tentaram depredar o jornal.” (…). [14]
“Ainda nessa época foi lançada a ideia de erguer-se uma herma a Luiz Gama. O idealizador desse movimento (Argentino Celso Wanderley, presidente do clube carnavalesco Campos Elísios) convidou o jornalista Lino Guedes (mais tarde conhecido como poeta) para exercer as funções de diretor intelectual.” (…) [15]
As condições de vida dos negros, pouco satisfatórias até então, agravaram-se com a crise de 29, que fez grassar entre eles o desemprego. Este fato criou uma situação favorável para a emergência de um movimento reivindicatório, ao deixar sem ocupação elementos em condições de estabelecer o contato entre elite e massa, elementos esses que, por sua vez, encontraram campo favorável para a ação, num meio descontente com o desemprego. (…).
“Antevendo a possibilidade de ter a sua situação mudada com a revolução de 30, os negros entusiasmaram-se e passaram a encará-la como a solução de todos os seus males. Na fase revolucionária os negros estavam contentes… podia mesmo ser observado, entre eles, um espírito vingativo: a satisfação de ver aqueles velhos homens da política perderem a posição dominante. A revolução, feita para liquidar um estado de cousas que predominava desde o início da República, serviu, na realidade, para satisfazer a ânsia, dos que estavam por baixo, em ocupar uma posição de destaque na vida nacional – pelo menos, aos que viverem a situação revolucionária, assim se apresentava.” (…). [16]
“Se, nessas condições, existiam forças agindo no sentido de possibilitar a emergência do movimento, assim como de impulsioná-lo na direção do êxito, existiam também outras a emperrá-lo. A dependência econômica dos negros em relação aos brancos diluía o espírito de revolta. É sugestivo, nesse sentido, o seguinte fato: um dos responsáveis pela Frente (Isaltino Veiga dos Santos) quis dar uma entrevista violenta contra os brancos, em um dos jornais da capital, mas o redator objetou, argumentando que ele ia atacar os brancos em um jornal de brancos. Há também a considerar o medo das consequências de incentivar negros à revolta, o qual, pela boca de um deles, assim se expressa: ‘se você assanhar todos esses negros, como é que isto vai ficar?’” (…).
“A Frente Negra congregou, inicialmente, todos os grupos existentes no meio negro. Com o tempo, a sua orientação foi descontentando alguns dos grupos que a integravam e provocando o desligamento deles.” É fácil o conhecimento da referida orientação, através dos fatos sucedidos nessa fase de organização. (…).
“Ao se fundar a Frente Negra, em meados de 31, São Paulo via o entusiasmo com que a colônia italiana abraçava e pregava as novas ideias políticas surgidas na Itália com o advento do fascismo. As reuniões em organizações dessa colônia eram presididas por pessoas de camisa negra, fazendo-se, aí, a saudação fascista; nos círculos de trabalhadores já se falava muito em Dopolavoro. Os alemães, de seu lado, entusiasmavam-se com a subida de Hitler ao poder. Apareciam, aqui, os primeiros pruridos da ação integralista, semelhante em muitos pontos ao movimento patrianovista dirigido pelo dr. Arlindo Veiga dos Santos.” (…).
“A identificação da orientação da Frente com os ideais direitistas fica bem evidenciada através do fato – ocorrido mais tarde, quando da realização do Primeiro Congresso da Ação Integralista – de haver o dr. Arlindo Veiga dos Santos feito um discurso no qual hipotecava ao referido partido a solidariedade da Frente e seus 200.000 negros. O Grupo do Clarim, percebendo desde já a intenção dos irmãos Veiga dos Santos de fazer dos demais elementos simples caudatários de seus ideais, assumiram uma atitude vigilante e independente em relação aos acontecimentos. Apareceram nesse momento os primeiros sintomas da divergência logo depois manifestada entre a direção da Frente Negra e o grupo do Clarim.” (…).
“Na primeira grande reunião da Frente Negra, realizada nos salões das Classes Laboriosas, que ficaram totalmente lotados, o grupo do Clarim teve o primeiro choque com a direção da Frente.” (…)
“Logo na elaboração dos estatutos, os quais deram à organização um caráter nitidamente fascista, surgiram as primeiras divergências, afastando-se nessa ocasião alguns elementos (entre os quais Alberto Orlando).” (…).
“É sugestivo para se avaliar o espírito dos negros nessa ocasião e também para se ver como abriram-se as portas da Frente Negra a Vicente Ferreira, o seguinte fato, ocorrido nessa primeira reunião: “Tendo um dos oradores pronunciado uma palestra muito patriótica sobre o primeiro movimento de independência – a Inconfidência Mineira –, Vicente Ferreira, até então colocado à margem do movimento, pediu a palavra e rebateu as ideias do orador, fazendo ver que, no Brasil, o primeiro grito de liberdade foi dado pelos negros, no seu reduto de Palmares. A grande repercussão de suas palavras, expressa nos aplausos que recebeu, levou a direção da Frente Negra a afrouxar a ordem de que o grande tribuno não poderia participar do movimento.” (…).
“Estavam as cousas nesse pé quando, encontrando o dr. Arlindo Veiga dos Santos na rua José Bonifácio, em frente ao prédio onde funcionava o jornal A Razão, perguntei-lhe se pretendia usar a Frente Negra para a consecução de seus ideais políticos. Respondeu-me afirmativamente, acrescentando que os integralistas haviam roubado suas ideias – tinham-lhe, mesmo, convidado para ser diretor deste jornal (apontou-me o prédio d’A Razão), mas deram o lugar a Plínio Salgado. Isto foi a gota d’água que produziu meu pedido de demissão do Conselho da Frente Negra.”
“Uma vez definidas as posições opostas, da Frente Negra e do grupo do Clarim, começou uma luta surda entre eles. Na Frente dizia-se que o grupo do Clarim, e outros considerados inimigos, eram os judas da raça. [17] Acusava-se o grupo do Clarim de ser sem ação, de nunca ter feito nada pelos negros, de só saber falar e criticar – são palavras do sr. Isaltino: ‘os nossos seguidores não precisam de intelectuais; precisamos de mais ação e menos palavras’. Por seu lado, o grupo do Clarim continuava a fazer críticas, pelo jornal, à orientação seguida pela direção da Frente.”
“Essa luta teve um desfecho imprevisto. O Isaltino cometeu uma falta que envolveu os negros de São Sebastião do Paraiso, onde tinha ido organizar um núcleo da frente. De lá, pediram que o Clarim advogasse a causa deles, no sentido de ser aplicado um corretivo ao Isaltino. O grupo do Clarim entendeu que a discussão desses assuntos fugia à tradição de seu jornal, lançou um outro, chamando-o de A Chibata. Foi um alvoroço nas hostes frentenegrinas, aumentando o clima, aí existente, contrário ao Clarim, e chegando mesmo o Isaltino Veiga dos Santos a bradar ‘é preciso morrer um’. Quando estava para sair o terceiro número d’A Chibata, no sábado anterior à semana santa de 1932, a redação do Clarim foi invadida por um grupo de negros armados de cacete que, numa fúria de vândalos, depredaram a casa do diretor do jornal, sr. José Correia Leite, sem, no entanto, tocar na pequena oficina do jornal, situada no mesmo local. (Esta cena foi rápida e brutal, tendo as vítimas do atentado solicitado a abertura de inquérito policial, que terminou sendo arquivado).” (…). [18]
“Formou-se, no espírito dos membros da Frente Negra, graças ao trabalho de Isaltino Veiga dos Santos, a ideia de que a divergência entre o grupo do Clarim e eles não passava de uma mera questão de despeito e inveja, porque aquele grupo queria ser dono da Frente. Isto, dizia o Isaltino, porque não foram capazes de organizar uma sociedade como era a Frente. Foi este o motivo pelo qual se resolveu fundar o Clube Negro de Cultura Social. Era a resposta à acusação que nos faziam.”
“O Cultura, como era chamado, foi instalado na rua Major Quedinho, numa sede modesta, no dia 1 de julho de 1932.”
“Estourando o movimento revolucionário de 32, não houve campo para as atividades desses dois grupos no meio negro. O Cultura, recém fundado, nem chegou a iniciar suas atividades. A Frente, ‘fundada sob a égide de 30’, com sua atitude pró governo federal, manteve-se isolada da vida de São Paulo no período revolucionário: o movimento, em sua sede, limitava-se quase que apenas aos seus dirigentes, que nela residiam (Isaltino Veiga dos Santos, Roque A. Santos e outros) e alguns cabos.” (…).
Antes de tratarmos da formação da Legião Negra de São Paulo, preocupamo-nos com a figura de um de seus organizadores, Guaraná de Santana, antigo membro da Frente Negra.
Tendo se retirado da Frente Negra, pouco antes da revolução: “fundou um partido político com o nome de Partido Nacional Socialista, aliás, o mesmo nome do partido de Hitler, que despertava simpatias em muitos que não previam suas verdadeiras finalidades. Lançou um jornal com o nome de Brasil Novo, onde se declarou o maior líder negro do Brasil Novo. Partido e jornal tiveram vida efêmera porque São Paulo, em plena efervescência dos preparativos para a revolução, absorvia tudo e todos – a palavra de ordem era ‘tudo por São Paulo’, ‘São Paulo unido’ etc.” (…).
“Instalada que foi a revolução – embora se soubesse de uma carta secreta do governador Pedro de Toledo aconselhando os chefes no sentido de que evitassem alistar negros e mendigos – Guaraná de Santana e o Major Goulart, auxiliados pelo capitão Arlindo e por Vicente Ferreira, fundaram a Legião Negra de São Paulo.” (…).
“Os negros da capital, que se alistavam, conseguiam postos de sargento ou de cabo, mas faziam força para ficar por aqui, num posto qualquer da legião. Os do interior faziam preparativos muito rápidos e seguiam para o front. É curioso que muitas mulheres acompanharam seus maridos.” (…).
“Nesta fase surge a Voz da Raça, órgão oficial da Frente. É essa a segunda tentativa de jornal que fizeram; a primeira, de pouca duração, foi feita antes da revolução, sob a direção dos irmãos Freitas e sob o nome de A Promissão. A Voz da Raça era dirigida pelo dr. Raul Amaral. A colaboração era exclusiva de elementos frentenegrinos e estava sujeita a censura por parte da direção. (…)
“Foi expulso das fileiras frentenegrinas Isaltino Veiga dos Santos; logo depois retirou-se da presidência Arlindo Veiga dos Santos. Foram substituídos por Justiniano da Costa, presidente, e Francisco Lucrécio, secretário. Saiu, nessa ocasião, um grupo que fundou a Frente Negra Socialista, sem maiores consequências.”
“O golpe de 37 encontrou a Frente Negra registrada como partido político e o governo a fechou. Transformou-se imediatamente em União Negra Brasileira, sob a presidência do dr. Raul Amaral, que se esforçou para continuar a obra até maio de 1938, quando dos festejos do cinquentenário da abolição.” (…).
“De 32 a 45, bem ou mal, o Cultura existiu. Atravessou a fase da ditadura despistando, tendo seus dirigentes suprimido a palavra negro do seu nome, que ficou apenas Clube de Cultura Social.” (…).
Não quis o depoente prestar informações sobre este período (de 1945 em diante), alegando ser história recente. Forneceu-me uma coleção de Alvorada, órgão oficial da Associação dos Negros Brasileiros, fundada com a democratização do país.
Observa-se, pela análise do jornal, que os elementos responsáveis por esta organização foram os mesmos que tomaram parte nos acontecimentos passados. Sangue novo praticamente não existia. (…) A base do programa é a necessidade de levantamento social, econômico e cultural do negro. Esta intenção é perseguida através de um planejamento objetivo, onde não figura qualquer relação com a política, desligamento esse constantemente afirmado. (…).
Em 1948, o sr. José Correia Leite foi substituído, na presidência, pelo dr. Raul de Amaral. Logo depois, a Associação suspendeu suas atividades. [19]
*José Correia Leite foi redator dos jornais: O Clarim d’Alvorada, A Chibata e Alvorada. Militou no Centro Cívico Palmares (CCP); na Frente Negra Brasileira (FNB); no Clube Negro de Cultura Social (CNCS), na Associação dos Negros Brasileiros (ANB) e na Associação Cultura do Negro (ACN). Participou da pesquisa UNESCO em São Paulo (1951), coordenada por Roger Bastide e Florestan Fernandes. [20]
*Renato Jardim Moreira foi professor sociologia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Participou da pesquisa UNESCO em São Paulo (1951), coordenada por Roger Bastide e Florestan Fernandes.

(LEITE; MOREIRA, 1951b, p. 65).

(LEITE, 1951, p. 91).
Referências
A ALTIVA reação do povo de São Paulo (1928). ). Diário Nacional, 25 de setembro de 1928, p. 12. Disponível neste link
ABUSANDO da hospitalidade insultam e ameaçam os brasileiros (1928). Diário Nacional, 23 de setembro de 1928, p. 4. Disponível neste link
A CONSCIÊNCIA jurídica brasileira (1936). O Imparcial, 29 de março de 1936, p. 1. Disponível neste link
AGUIAR, Jayme (1951). Autobiografia. Caso 5. In. Observação em Massa – Questionários e depoimentos livres de militantes e informantes. Mimeo. Documento disponível no arquivo PDF 02.04.4530. São Carlos: Fundo Florestan Fernandes (BCo/UFSCar), p. 175-183.
AGUIAR, Jayme (1929). Faremos o congresso, O Clarim d’Alvorada, 27 de outubro de 1929, p. 2. Disponível neste link
A IRONIA de um congresso (1930). Folha da Manhã, 12 de janeiro de 1930, p. 5. Disponível neste link
BARBOSA, Márcio (1998). Frente negra brasileira: depoimentos, entrevistas e textos. São Paulo: Quilombhoje.
BATALHA da Praça da Sé – A versão dos anarquistas sobre a “revoadas dos galinhas verdes” e o movimento antifascista em São Paulo (2020). Novo Horizonte Anarquista, 27 de junho de 2020. Disponível neste link
BERIMBAU, Mariana (2024). Jacinta Maria de Santana: uma mulher negra mumificada pela/ na história da educação e das ciências, Teias, v. 25, n. 78, p. 31-47. Disponível neste link
BORGES, Nestor (2024). Sitação econômica do negro brasileiro – razões e consequências, A terra é redonda. Disponível neste link
BUONICORE, Augusto (2022). Minervino de Oliveira, Centro de Memória Sindical, 15 de agosto de 2022. Disponível neste link
BUONICORE, Augusto (2020). Reflexões sobre o marxismo e a questão racial, Arquivo Marxista na Internet, janeiro de 2020. Disponível neste link
CAMPOS, Antônia (2014). Interfaces entre sociologia e processo social: a Integração do negro na sociedade de classes e a pesquisa UNESCO em São Paulo. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Disponível neste link
CAMPOS, Humberto de (1934). Vicente Ferreira, A Noite, 17 de outubro de 1934, p. 2. Disponível neste link
CHASIN, José et al. (1986). Florestan Fernandes: a pessoa e o político, Educação em Revista, n. 3, p. 61-68. Disponível neste link
CONGRESSO da mocidade negra brasileira (1929). O Clarim d’Alvorada, 9 de junho de 1929, p. 1. Disponível neste link
COTRIM, Renata (2020). Trabalhadores e a luta por memória – A Associação Auxiliadora das Classes Laboriosas, Instituto Astrogildo Pereira, 14 de outubro de 2020. Disponível neste link
CUTI, Luiz (2007). ...E disse o velho militante José Correia Leite. São Paulo: Noovha América.
DESAPARECE uma figura popular da cidade (1934). Correio da Manhã, 12 de outubro de 1934, p. 5. Disponível neste link
EMBALSAMENTO (1901), O Comércio de São Paulo, 1 de dezembro de 1901, p. 1. Disponível neste link
FERNANDES, Florestan (2017). Significado do protesto negro. São Paulo: Expressão Popular; Fundação Perseu Abramo.
FERNANDES, Florestan (2008). A integração do negro na sociedade de classes, v. 2. São Paulo: Globo.
FERNANDES, Florestan (1977).Em busca de uma sociologia crítica e militante. In: A sociologia no Brasil: contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, p. 140-212.
FOI EMPASTELLADO o jornal “Chibata” (1932). Diário Nacional, 20 de março de 1932, p. 1. Disponível neste link
FOI ENTERRADA a múmia da faculdade (1929). Diário Nacional, 7 de junho de 1929, p. 1. Disponível neste link
FRENTE NEGRA Brasileira: a história de luta (1985). Instituto Cultne, Rio de Janeiro. Disponível neste link
FUNDOU-SE ONTEM a Frente Negra Brasileira (1931). Diário Nacional, 17 de setembro de 1931, p. 2. Disponível neste link
GARVEY, Marcus (1930). CHEGOU a ocasião de reduplicarmos as nossas forças, O Clarim d’Alvorada, 28 de setembro de 1930, p. 3. Disponível neste link
GOES, Fernando (1960). Amigo e mestre, Diário da Noite, 23 de agosto de 1960, p. 4. Disponível neste link
GOMES, Flávio (2005). Negros e política (1988-1937). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
GONZÁLEZ, Lélia (1982). O movimento negro na última década. In. GONZALEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos. Lugar de Negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, p. 9-66.
GUALBERTO, Edney (2008). Vanguarda sindical: União dos Trabalhadores Gráficos de São Paulo (1919-1935). Dissertação (Mestrado em História Econômica). Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo (USP). Disponível neste link
HERMA Luiz Gama (1931). A Gazeta, 16 de novembro de 1931, p. 5. Disponível neste link
JUDAS da raça (1932). A Chibata, fevereiro de 1932, p. 1. Disponível neste link
LEITE, José (1951). Autobiografia. Caso 1. In. Observação em Massa – Questionários e depoimentos livres de militantes e informantes. Mimeo. Documento disponível no arquivo PDF 02.04.4530. São Carlos: Fundo Florestan Fernandes (BCo/UFSCar), p. 91-113.
LEITE, José; MOREIRA, Renato (1951a). Movimentos sociais no meio negro. In. Estudos de Caso. Mimeo. Documento disponível no arquivo PDF 02.04.4527. São Carlos: Fundo Florestan Fernandes (BCo/UFSCar), p. 217-345. Disponível neste link
LEITE, José; MOREIRA, Renato (1951b). História de vida de José Correia Leite. In. Histórias de Vida. Mimeo. Documento disponível no arquivo PDF 02.04.4528. São Carlos: Fundo Florestan Fernandes (BCo/UFSCar), p. 65-125. Disponível neste link
MACHADO, Gisele; ULIAM, Leandro (2019). O voo do João de Barros, Portal da Câmara Municipal de São Paulo, 17 de outubro de 2019. Disponível neste link
MARQUES NETO, Floriano (2021). Visitar a história, assumir o erro, permitir o futuro, Consultor Jurídico, 10 de abril de 2021, s/p. Disponível neste link
MEDEIROS, Daniela; SILVA, Marcelo; QUITZAU, Evelise (2022). De promotor de saúde a vetor de doenças: o rio Tietê na perspectiva dos clubes de remo paulistanos, 1900-1940, História, Ciência, Saúde-Manguinhos, n. 30, p. 1-17. Disponível neste link
NA PASSAGEM da data de execução de Sacco e Vanzetti (1934). Diário de Notícias, 16 de agosto de 1934, p. 8. Disponível neste link
NA PRAÇA Antônio Prado (1927). O Combate, 29 de abril de 1927, p. 1. Disponível neste link
NEVES, Daniel (2013). Como se defende um comunista: uma análise retórico-discursiva da defesa judicial de Harry Berger por Sobral Pinto. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária e Crítica da Cultura). Programa de Mestrado em Letras da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Disponível neste link
O ADVOGADO de Dinitrof vem defender Berger e Carlos Prestes (1937). Jornal do Brasil, 6 de fevereiro de 1937, p. 8. Disponível neste link
O BRASIL e a raça (1928). Diário Nacional, 20 de junho de 1928, p. 3. Disponível neste link
O CASO do Centro Rockfeller (1934). Correio Paulistano, 28 de setembro de 1934, p. 4. Disponível neste link
O CORPO da preta Raymunda foi ontem sepultado no Cemitério São Paulo (1929). Folha da Manhã, 7 de junho de 1929, p. 11. Disponível neste link
O EMPASTELLAMENTO de “Il Piccolo” (1928). Diário Nacional, 25 de setembro de 1928, p. 2. Disponível neste link
O FAMOSO processo dos negros de Scottsboro terminou com a libertação dos acusados (1937). Diário da Noite, 27 de julho de 1937, p. 2. Disponível neste link
O FILHO dileto da desgraça (1930). Diário Nacional, 14 de junho de 1930, p. 5. Disponível neste link
OLIVEIRA, Eduardo de (1998). Quem é quem na negritude brasileira. São Paulo: Congresso Nacional Afro-Brasileiro; Brasília: Secretaria Nacional de Direitos Humanos do Ministério da Justiça. Disponível neste link
ONDE ESTÁ o caráter? (1923). O Trabalhador Gráphico, 23 de fevereiro de 1923, p. 4. Disponível neste link
ORADORES POPULARES (1927). A Tribuna, 3 de maio de 1927, p. 2. Disponível neste link
O RAIDE dos brasileiros (1927). A Gazeta, 2 de fevereiro de 1927, p. 3. Disponível neste link
OS REPAROS do “Fanfulla” refletem nova investida do fascio (1929). Diário Nacional, 10 de outubro de 1929, p. 1. Disponível neste link
OS SANGRENTOS acontecimentos de ontem na praça Tiradentes (1934). Diário Carioca, 24 de agosto de 1934, p. 1 e p. 3. Disponível neste link
OUTROS DISCURSOS (1927). Correio Paulistano, 29 de abril de 1927, p. 2. Disponível neste link
PRECONCEITO condenável (1927a). Diário da Noite, 29 de abril de 1927, p. 4. Disponível neste link
PRECONCEITO condenável (1927b). Diário da Noite, 13 de maio de 1927, p. 4. Disponível neste link
RAMOS, Graciliano (1953). Memórias do cárcere, vol. 4. Casa de detenção. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora. Disponível neste link
ROQUE, Daniel (2021). Como a principal faculdade de direito do país violou o corpo de uma mulher negra por 30 anos, Ponte Jornalismo, 9 de abril de 2021, s/p. Disponível neste link
SALLES, Silvana (2023). Direito da USP retira homenagem a professor que expôs corpo de mulher negra como curiosidade, Jornal da USP, 6 de abril de 2023, s/p. Disponível neste link
SANTOS, Ivair (2007), Apresentação. In. CUTI, Luiz (2007). ...E disse o velho militante José Correia Leite. São Paulo: Noovha América, p. 9-10.
SILVA, Ernesto (1928). Pede-se um pouco mais de respeito para com os pretos, O Clarim d’Alvorada, 21 de outubro de 1928, p. 6 Disponível neste link
SILVA, Mário (2012). Fazer História, Fazer Sentido: Associação Cultural do Negro (1954-1964), Lua Nova, p. 227-273. Disponível neste link
SILVEIRA, Paulo (2023). O emparedamento social nas experiências escolares de Florestan Fernandes. In: MOLL, Jacqueline; BARBOSA, Márcia (orgs.). Em defesa da escola pública. Porto Alegre: Editora Sulinas, p. 174-189.
SOUZA, Frederico (1929a). A Jacinta, O Clarim d’Alvorada, 14 de julho de 1929, p. 1. Disponível neste link
SOUZA, Frederico (1929b). O negro deve ser político?, O Clarim d’Alvorada, 27 de outubro de 1929, p. 3. Disponível neste link
STUMPF, Lúcia; VELLOZO, Júlio (2018). “Um retumbante Orfeu de Carapinha” no centro de São Paulo: a luta pela construção do monumento a Luiz Gama, Estudos Avançados, v. 32, n. 92, p. 167-191. Disponível neste link
TIÉDE, Lívia (2023). União da raça: Frederico Baptista de Souza e a militância negra paulista no Brasil pós-abolição (1875-1960). Tese (Doutorado em História Social). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Disponível neste link
TRADIÇÃO acadêmica que desaparece (1929). O Estado de S. Paulo, 7 de junho de 1929, p. 10. Disponível neste link
TUDO PRETO (1929). O Clarim d’Alvorada, 28 de setembro de 1929, p. 3. Disponível neste link
UM GRANDE dia (1931). A Gazeta, 21 de novembro de 1931, p. 4. Disponível neste link
VERDADEIRAS verdades (1928), O Clarim d’Alvorada, 5 de fevereiro e 1928, p. 2. Disponível neste link
Notas
[1] Pesquisa, edição e notas de Diogo Valença de Azevedo Costa (UFRB) e Paulo Fernandes Silveira (FEUSP e GPDH-IEA).
Esse texto é um dos relatórios elaborados por Renato Jardim Moreira para a pesquisa UNESCO, coordenada em São Paulo por Roger Bastide e Florestan Fernandes. O trabalho de Moreira recebeu uma parte do financiamento da UNESCO (FERNANDES, 2017).
Cópias desse mesmo relatório encontram-se na Coleção Especial do Fundo Florestan Fernandes (BCo/UFSCar) e no acervo de Renato Jardim Moreira, no site do Museu Nacional. Em sua dissertação de mestrado, Antônia Campos (2014) anexa uma cópia desse relatório.
Fizemos uma edição com algumas passagens do relatório. Adequamos o texto às normas atuais do português e corrigimos algumas referências imprecisas. Mantivemos as aspas nas diversas passagens que indicam testemunhos de José Correia Leite, razão pela qual o consideramos um dos autores desse relatório.
Sobre a contribuição de Correia Leite na pesquisa UNESCO, Florestan Fernandes argumenta: “As lacunas da documentação histórica sobre a situação econômica e social do negro aconselharam a apelar para os testemunhos dos agentes humanos. Porém, o principal informante, sr. José Correia Leite, somente possuía conhecimento pessoal dos anos posteriores ao início do século, relatando ocorrências anteriores com base em lembranças mantidas na tradição oral” (FERNANDES, 2008a, p. 414, n. 95).
Sobre a pesquisa UNESCO, Correia Leite afirma: “Dentre as três partes da pesquisa (de São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia), a mais bem feita foi a de São Paulo, pois na metodologia os professores utilizaram os alunos para saírem pelas ruas, irem à porta de fábrica etc. Eu fui procurado, também, por um rapaz que depois se tornou muito meu amigo. Ele se formou em sociologia e foi aluno do prof. Roger Bastide. O nome dele era Renato Jardim Moreira. Ele fez comigo um trabalho sobre a minha participação nas lutas sociais, nas entidades, nos jornais. Esse trabalho foi incluído na pesquisa da UNESCO e também, mais tarde, na tese do prof. Florestan Fernandes, A Integração do negro na sociedade de classes” (CUTI, 2007, p. 153).
Em seu cuidadoso trabalho, Antônia Campos (2014) especifica as contribuições de cada militante do movimento negro na pesquisa UNESCO em São Paulo. Não houve nenhuma fala de Correia Leite nas mesas redondas promovidas por Roger Bastide e Florestan Fernandes. Todavia, num testemunho recente, Correia Leite indica que esteve presente num dos encontros: “O primeiro seminário foi na Biblioteca Municipal. Estiveram no auditório negros importantes, graduados em especialidades, com floreios de oratória…” (CUTI, 2007, p. 152).
As contribuições de Correia Leite para a pesquisa UNESCO se concentram em três documentos: dois relatórios elaborados com Renato Moreira, “Movimentos sociais no meio negro” e “História de vida de José Correia Leite” e uma “Autobiografia” escrita à mão. Os três documentos encontram-se na Coleção Especial do Fundo Florestan Fernandes (BCo/UFSCar).
[2] Nos anos 1930, a CGTB (Confederação Geral dos Trabalhadores Brasileiros) foi presidida pelo operário negro Minervino de Oliveira (BUONICORE, 2022). Em 1930, Oliveira foi candidato à presidência pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB). De todo modo, nesse período, o PCB não colocou o racismo no centro dos seus debates (BUONICORE, 2009).
Em outros testemunhos, Correia Leite afirma que muitos debates sobre as questões negras ocorriam na Associação Auxiliadoras das Classes Laboriosas (BARBOSA, 1998; CUTI, 2007). O salão das Classes Laboriosas era utilizado por associações do meio negro (COTRIM, 2020). Em 1929, o Clarim d’Alvorada patrocinou o espetáculo “A malandragem” nesse salão, localizado na rua do Carmo (TUDO PRETO, 1929). Em setembro de 1931, a Frente Negra Brasileira foi fundada no salão das Classes Laboriosas (FUNDOU-SE ONTEM, 1931).
Não encontramos nos jornais publicados na década de 1930 nenhuma referência a uma organização brasileira com a sigla UTC.
Talvez, por equívoco de digitação, a associação indicada seja a UTG (União dos Trabalhadores Gráficos). Essa associação defendia posições comunistas e revolucionárias (GUALBERTO, 2008). Alguns textos do jornal O trabalhador gráfico, mantido pela UTG, comparam a opressão ao operário à opressão ao escravo. Um texto publicado em 1923 afirma: “Parece incrível que, em pleno século XX, século das Luzes, haja homens que não passam de verdadeiros ignorantes; homens que julgam que estamos em 1888, tempo da escravidão da raça preta” (ONDE ESTÁ, 1923, p. 3).
Agradecemos a colaboração acadêmica de João Prado e Luiz Bernardo Pericás na confirmação de algumas informações sobre esses temas.
[3] Em setembro de 1934, o Correio Paulistano tratou da questão envolvendo a imagem de Lenin no painel criado por Diego Rivera (O CASO, 1934).
[4] Em outro testemunho, Correia Leite afirma que o caso Scottsboro, ficou “tão falado quanto o caso Sacco e Vanzetti” (CUTI, 2007, p. 54). Como ocorreu nos Estados Unidos e em diversos outros países, o Socorro Vermelho organizou comícios e manifestações no Brasil em defesa dos jovens negros de Scottsboro.
Em 23 de agosto de 1934, 8º aniversário da execução, nos Estado Unidos, de Nicola Sacco e Bartolomeu Vanzetti, o Socorro Vermelho organizou um comício no Rio de Janeiro: “Convidamos a massa a dar seu apoio decisivo contra o imperialismo americano que assassinou Sacco e Vanzetti e agora pretende exterminar fisicamente os nove jovens negros de Scottsboro, vítimas do indecoroso processo do Alabama” (NA PASSAGEM, 1934, p. 8).
O comício sofreu uma brutal repressão policial, muitas pessoas ficaram feridas, ao menos dois manifestantes morreram (OS SANGRENTOS, 1934, p. 1).
Em 1937, um dos advogados dos jovens negros de Scottsboro, David Levinson, veio ao Brasil para contribuir na defesa dos presos políticos Harry Berger (Ernest Ewert) e Luís Carlos Prestes (O ADVOGADO, 1937). Harry Berger e sua esposa Elisa haviam sido barbaramente torturados (NEVES, 2013). Em 1936, Elisa Berger e Olga Benário Prestes, esposa de Luís Carlos Prestes, foram deportadas para Alemanha (A CONSCIÊNCIA, 1936).
Sobre o momento da deportação, escreveu Graciliano Ramos: “Uma noite chegaram-nos gritos medonhos do pavilhão dos primários, informações confusas de vozes numerosas. Aplicando o ouvido, percebemos que Olga Prestes e Elisa Berger iam ser entregues à Gestapo: àquela hora tentavam arrancá-las da sala 4. As mulheres resistiam, e perto os homens desmandavam em terrível barulho. Tinham recebido aviso, e daí o futuro protesto, embora a polícia jurasse que haveria apenas uma mudança de prisão. – Mudança de prisão para a Alemanha, bandidos” (RAMOS, 1953, p. 111).
Depois de inúmeros processos e de sete anos de prisão, quatro dos nove jovens negros acusados de estupro em Scottsboro foram libertados (O FAMOSO, 1937, p. 2).
[5] Segundo Correia Leite, o Clarim d’Alvorada foi procurado pelos baianos Alcino dos Santos e João Sotero da Silva, que lhes apresentaram o poliglota Mário de Vasconcelos: “E foi daí que começamos a conhecer melhor o movimento pan-africanista, o movimento do Marcus Garvey. Tudo por meio desse Mário de Vasconcelos, porque lá da Bahia ele começou a mandar colaboração já traduzida para o nosso jornal sobre o trabalho do movimento negro nos Estados Unidos e em outras partes” (CUTI, 2007, p. 77).
O Clarim d’Alvorada chegou a publicar um pequeno texto de Marcus Garvey (1930).
[6] Numa série de artigos com o título “Preconceito condenável”, publicados no Diário da Noite, em 1927, o campeão de natação Carlos de Campos Sobrinho criticou os clubes náuticos por não aceitarem pessoas negras como sócias. Sobrinho não se referiu a nenhuma situação envolvendo especificamente qualquer dos clubes de regatas.
No entanto, no decorrer do debate, o Diário da Noite publicou uma carta de José Ramalho, diretor de regatas da Associação Atlética São Paulo, defendendo o emprego de critérios racistas na seleção dos sócios: “Quer queiram, quer não queiram, o preconceito de cor existe e tem que existir sempre. Se um preto frequentasse as reuniões dos clubes náuticos, tenho certeza que isso descontentaria muitos sócios, que certamente se retirariam do ambiente por julgá-lo inconveniente” (PRECONCEITO, 1927a, p. 4).
No dia 13 de maio de 1927, em nome de um grupo de homens de cor, o sr. Horácio da Cunha foi até a sede do Diário da Noite levar um ramalho de flores para Carlos de Campos Sobrinho (PRECONCEITO, 1927b, p. 4).
Fato análogo ocorreu em 1978, quando o clube de Regatas Tietê proibiu quatro meninos negros de treinarem voleibol (RACISMO, 1978). No início do século XX, o fechamento do clube de Regatas São Paulo deu origem ao clube de Regatas Tietê e à Associação Atlética São Paulo (MEDEIROS; SILVA; QUITZAU, 2022).
Em protesto contra o racismo sofrido pelos quatro meninos e contra outras violências racistas noticiadas naquele período, em 7 de julho de 1978, o Movimento Negro Unificado (MNU) promoveu o primeiro Ato Público contra o Racismo (GONZALEZ, 1982).
[7] Em sua cobertura do funeral de Carlos de Sampaio, o Correio Paulistano fez um relato do discurso de Vicente Ferreira:
“O professor Vicente Ferreira, da capital da República, usou também a palavra, proferindo, em eloquente improviso, um discurso que causou a melhor impressão, seja pela sinceridade que o ditou, fazendo o elogio fúnebre do estadista, do cidadão, do artista e do patriota que ora desapareceu do nosso convívio. Falando em nome dos homens de cor, dos representantes dessa grande raça que colaborou na formação da nossa nacionalidade, rememorou numa expressão de profunda simpatia e reconhecimento aquela passagem da vida do saudoso extinto, descrita ligeiramente por Menotti Del Picchia em artigo de anteontem incerto nas colunas dessa folha. Salientando o coração bondoso do dr. Carlos de Campos, para quem não havia preconceitos nem barreiras sociais, estendendo a todos a sua saudação e o seu trato. O orador terminou o seu discurso dando os adeuses dos amigos e admiradores do eminente estadista residentes na capital do país” (OUTROS DISCURSOS, 1927, p. 2).
Nos testemunhos de Correia Leite sobre o movimento negro nos anos 1920 e 1930, sempre há referências a Vicente Ferreira: “Ele era um homem extraordinário, mas ninguém da nossa época quis mencionar o nome de Vicente Ferreira. Eu sou a única pessoa que, nas pesquisas do Florestan Fernandes, sempre citei o Vicente Ferreira como um dos maiores negros que houve em nosso tempo” (CUTI, 2007, p. 68).
Apesar dos laços com Correia Leite e com o grupo do Clarim, no momento dos conflitos, Vicente Ferreira optou por ficar ao lado dos frentenegrinos: “O Vicente Ferreira ficou uns tempos na redação do Clarim d’Alvorada, mas quando a coisa entre o grupo nosso e a Frente Negra ficou ruim, o que eles fizeram? Eles conseguiram levar o Vicente Ferreira para lá. E ele passou a ter as razões dele. Na redação do Clarim não era lugar de se fazer discurso. Lá na sede da Frente Negra era um campo bom para isso” (CUTI, 2007, p. 69).
Após a Revolução de 1932, a Frente Negra rompeu com Vicente Ferreira: “Como eles voltaram a ser donos da situação, fizeram uma terrível encrenca na polícia, dizendo que ele era um inimigo de São Paulo, um subversivo. O Vicente Ferreira foi embora de São Paulo. Foi embora para o Rio de Janeiro. Ele já devia estar bem doente de saúde. Numa excursão que uns estudantes daqui de São Paulo fizeram pro Rio, passaram em Petrópolis e viram o Vicente Ferreira. Um dos bedéis da Faculdade de Direito reconheceu-o e parou para conversar. Ele ficou muito contente e pediu informações do pessoal de São Paulo. Disse que de São Paulo só tinha gratidão e amizade sincera por três pessoas. Eu era uma delas” (CUTI, 2007, p. 70).
Depois de passar alguns meses internado no Hospital Pedro II, em Santa Cruz, periferia da zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, Vicente Ferreira faleceu em 11 de outubro de 1934 (DESAPARECE, 1934).
Numa das homenagens feitas a Vinicius Ferreira, o escritor Humberto de Campos (1934) narra o episódio em que o acadêmico e jornalista Leônidas de Rezende, na redação de O Imparcial, conferiu-lhe o título de “professor”. Segundo Campos, desde os anos 1910, Vicente Ferreira havia largado o ofício de sapateiro para se tornar um grande orador autodidata. Morreu minado “pela tuberculose, filha da miséria” (CAMPOS, 1934, p. 2).
[8] A resposta do Clarim às críticas de Vicente Ferreira ao Centro Cívico Palmares saiu na edição de fevereiro de 1928 (VERDADEIRAS, 1928).
[9] Correia Leite refere-se ao raide Gênova-Santos com o hidroavião Jahú, pilotado pelo brasileiro João de Barros (MACHADO; ULIAM, 2019). O tripulante negro substituído durante o raide foi Arthur Cunha, na etapa de Cabo Verde (O RAIDE, 1927).
Assim que o Jahú foi avistado a 725 milhas de Recife, os paulistanos foram às ruas comemorar: “Nessa ocasião, falou o conhecido orador Vicente Ferreira, que, ao terminar sua eloquente oração, foi carregado em triunfo pelos populares” (NA PRAÇA, 1927, p. 1).
A Tribuna dedicou um artigo ao orador: “Neste momento, porém, mais do que em nenhum outro, tornou-se necessária aqui uma voz interpretativa do entusiasmo popular. Sem um orador de comícios, São Paulo faria a figura mais ratona desse mundo. O avião Jahú, antes de ser uma glória nacional, é uma glória paulista. (…) Eis que aparece o professor Vicente Ferreira! O povo logo o elegeu seu intérprete nas demonstrações de simpatia pela vitória de João de Barros” (ORADORES POPULARES, 1927, p. 2).
[10] Numa reportagem sobre a palestra de Baptista Pereira “O Brasil e a raça”, ministrada a convite do Centro Acadêmico XI de Agosto, em 19 de junho de 1928, na Faculdade de Direito da USP, o Diário Nacional relata a intervenção de Vicente Ferreira:
“Pediu a palavra então um representante do Centro Palmares, associação de homens de cor, pronunciou uma saudação a Baptista Pereira. A princípio, olhado com certa estranheza, o orador conquistou logo francos aplausos do auditório. Era o professor Vicente Ferreira, que veio trazer a Baptista Pereira, em nome daquela sociedade, os agradecimentos de sua raça pela parte em que fez a defesa de suas qualidades” (O BRASIL, 1928, p. 3).
[11] Na edição de junho de 1929, o editorial do Clarim d’Alvorada apresentou a proposta do Congresso da Mocidade Negra (CONGRESSO, 1929). Na edição seguinte, Jayme de Aguiar (1929) rebateu as críticas feitas à proposta destacou a importância que o congresso poderia ter para as gerações futuras.
Em janeiro de 1930, a Folha da Manhã também criticou a proposta. O jornal ironizou cartazes sobre o Congresso da Mocidade Negra colados nos postes de luz da cidade com o desenho de um homem negro acorrentado. No final do artigo, o jornal elenca os direitos e liberdades de que gozam as pessoas negras no Brasil:
“a) Gozam de todos os direitos políticos; b) Gozam das mesmas prorrogativas dos homens brancos; c) Estão sujeitos às mesmas leis e aos mesmos rigores; d) Têm entrada livre em todas as Faculdades e todas as Escolas superiores; e) Têm direitos, enfim, iguais aos homens brancos” (A IRONIA, 1930, p. 5).
[12] O Clarim d’Alvorada reproduziu esse artigo do guarda-livros português Ernesto Silva (1928).
[13] Na edição de 7 de junho de 1929, o Diário Nacional fez uma reportagem sobre o enterro da Jacinta (Jacyntha), no Cemitério São Paulo: “Encerrou-se ontem, definitivamente, o ciclo de permanência, na Faculdade de Direito, da célebre múmia ali existente. Foi ela dada à sepultura por vontade da viúva do dr. Amâncio de Carvalho, que há muito insistia nesse propósito, muito embora lhe fosse ponderado ser a múmia um trabalho científico, de alto valor, devendo antes ser enviada a um museu” (FOI ENTERRADA, 1929, p. 1).
No início do século, Amâncio de Carvalho, professor da Faculdade de Direito da USP, mumificou Jacinta e a colocou na sala de aula do seu curso de medicina pública. Na edição de 1 de dezembro de 1901, o jornal O Comércio de São Paulo trouxe um testemunho de Carvalho sobre o seu experimento:
“J… preta, de cerca de trinta anos, hóspede habitual da polícia por sua desmedida intemperança, toda infiltrada, particularmente no ventre, onde havia derrame peritoneal, ia ser recolhida ao hospital de Misericórdia com o diagnóstico de lesão cardíaca, feito por um dos médicos daquela repartição, quando, em caminho, faleceu no carro que a conduzia: isto no dia 26 de novembro de 1900, às 10 horas da manhã. O cadáver me foi entregue nesse mesmo dia, às 12 horas, e, presto, comecei a praticar o processo modificado por mim” (EMBALSAMENTO, 1901, p. 1).
Por quase três décadas o corpo de Jacinta ficou numa caixa de vidro, exposta na sala 7 da Faculdade de Direito (O CORPO, 1929). As pessoas da faculdade lhe deram diferentes nomes: Jacinta, Raimunda e Benedita (TRADIÇÃO, 1929). Mesmo guardado dentro da caixa de vidro, seu corpo exalava um forte cheiro. Foi alvo das troças dos estudantes: “Quando sumia o chapéu de alguém, era fácil encontrá-lo enfeitando a cabeça da Jacinta. Outras vezes aparecia com velas nas mãos. E não raro nas mais estranhas posições que o espírito dos seus algozes inventava…” (FOI ENTERRADA, 1929, p. 1).
O Centro Acadêmico XI de Agosto participou da organização da cerimônia fúnebre. Foram convidados representantes do meio negro: do Centro Cívico Palmares, do Grêmio Dramático e Recreativo Kosmos e da Associação dos Homens Pretos. Pelo Centro Acadêmico XI de Agosto discursou o estudante Scalamandré Sobrinho, pelas associações do meio negro tomou a palavra o professor Vicente Ferreira:
“À beira da sepultura, falou o sr. Vicente Ferreira, pelos pretos. Orador bem conhecido em São Paulo, dos comícios de praça pública, tem sempre o sr. Vicente Ferreira a palavra fácil e entusiasmada. Desta vez, entretanto, o orador retumbante das reuniões cívicas cedeu lugar ao sentimentalista. Falou admiravelmente bem, ainda assim, com uma fluência que vinha mais do coração que de uma exteriorização de uma sequência de raciocínios.
Lembrou da significação do gesto dos acadêmicos, no seu aspecto cristão e humano, deixando no ar, soltas à imaginação de cada um, interrogações sobre o possível romantismo dessa vida obscura da Raimunda. Há trinta e mais anos, S. Paulo ainda era uma cidade de serenatas, sem arranha-céus e cimentos armado. Nestas mesmas ruas da Paulicéia de hoje, vagabundeadas por Castro Alves e Álvares de Azevedo, também Raimundo, vítima da terrível fraqueza de excessivo amor ao álcool, palmilhara, cantarolando inconsciente as músicas desses tempos. Depois – quem poderia dizer que não – talvez tivesse ela, em tempos menos infelizes, acalentado algum senhor-moço. Vicente Ferreira falou então sobre a figura da Mãe-Preta, sempre lembrada no seio das grandes famílias de nossa terra, como um exemplo de dedicação.
A voz do orador era firme, sem esmorecimentos, mas as lágrimas já lhe corriam dos olhos, quando disse as últimas palavras” (O CORPO, 1929, p. 11).
Sobre esse discurso, percebeu Correia Leite: “Ninguém esperava que aparecesse alguém para tocar na vida de uma mulher da condição de Jacinta. (…) Foi um dos [discursos] mais felizes da carreira dele, de tribuno do povo. Ele descreveu a Jacinta na sua época, como é que ela andava pelas ruas de São Paulo, fez descrição da cidade e narrou como é que ela vivia. O que eu sei é que, quando ele terminou, estava ele chorando e toda aquela gente lá (estudantes, professores…) de lenço na mão” (CUTI, 2007, p. 67-68).
No Clarim d’Alvorada, Frederico Baptista de Souza (1929a), funcionário da Faculdade de Direito da USP, publicou um encômio à Jacinta.
Um dos militantes mais influentes do movimento negro nos anos 1920, Frederico de Souza ajudou a fundar o Grêmio Dramático e Recreativo Kosmos e colaborou com os jornais: Liberdade, Elite, Clarim d’Alvorada e Progresso (TIÉDE, 2023). Como funcionário da Faculdade de Direito da USP, Frederico de Souza acompanhou de perto as iniciativas políticas dos estudantes do Centro Acadêmico XI de Agosto.
Em 9 de abril de 2021, a Ponte Jornalismo fez uma reportagem retomando a história de Jacinta (ROQUE, 2021). A partir da pesquisa da historiadora Suzane Jardim, o jornalista Daniel Roque discute o racismo envolvido nessa história. Segundo Suzane Jardim: “Esse episódio tem gerado bastante choque entre meus colegas, sobretudo por não ser amplamente conhecido. Todos concordam que é um exemplo a ser trazido para reportagens, salas de aula, debates públicos. Trata-se de um fragmento simbólico da história brasileira, com vários elementos importantes para a compreensão do racismo em nosso país.” (ROQUE, 2021, s/p).
Numa perspectiva semelhante, a educadora Mariana do Berimbau argumenta: “A Faculdade de Direito se fez cenário de uma demonstração ostensiva do poder dos brancos sobre corpos negros (sobretudo femininos) no contexto do pós-abolição. Ali se expressou o poder da branquitude, da masculinidade, da ciência e da instituição que formava as elites condutoras da nação. O poder da violação do corpo e da reputação, da invisibilização da memória e da destituição da humanidade dos negros” (BERIMBAU, 2024, p. 42).
Em 10 de abril de 2021, um dia após a publicação da reportagem de Daniel Roque (2021) sobre a história de Jacinta, o então diretor da Faculdade de Direito da USP, Floriano de Azevedo Marques Neto, publicou um artigo sobre o tema: “Importa menos ser um fato ocorrido faz mais de 120 anos. Relevante é que o episódio aponta desrespeito ao corpo de um ser humano e também o viés racista fortíssimo naquela sociedade (que perdura, infelizmente, ainda) recém saída formalmente da escravidão. Jacinta era negra, pobre e mulher. Foi desrespeitada em sua dignidade em vida e mesmo após a sua morte” (MARQUES NETO, 2021, s/p).
Em 30 de março de 2023, a Congregação da Faculdade de Direito da USP aprovou, por votação, retirar o nome do professor Amâncio de Carvalho de uma de suas salas. Segundo Silvana Salles: “A mobilização dos estudantes negros da FD foi fundamental para o resultado da votação na Congregação (…). Na véspera da reunião da Congregação, a Coletiva Negra Ângela Davis, a representação discente e o Centro Acadêmico XI de Agosto realizaram um ato por memória e justiça a Jacinta, com o apoio de entidades como a Marcha das Mulheres Negras, as Mães de Maio e o Movimento Negro Unificado” (SALLES, 2023, s/p).
[14] Em outro testemunho, Correia Leite indicou um artigo racista publicado pelo jornal de imigrantes italianos: “Outro fato com a colônia italiana foi a publicação do jornal O Fanfulla, com um artigo de página inteira dizendo que São Paulo tinha muitos negros, parecendo a Bahia. Eles já vinham veiculando ideias fascistas e aquilo contribuiu para os estudantes irem lá e empastelarem o jornal” (CUTI, 2007, p. 117).
Em sua critica a esse artigo do Fanfulla, o Diário Nacional citou uma passagem do texto: “Olhamos com desconfiança para os estrangeiros e permitimos que São Paulo assuma aos poucos a fisionomia etnográfica da Bahia. Você já parou para contar quantos negros e mulatos se encontra num breve passeio pelas ruas?” (OS REPAROS, 1929, p. 1).
No Clarim d’Alvorada, Frederico de Souza também criticou o artigo: “Se o negro fosse unido, teríamos o orgulho de ter feito um protesto, pelo modo como foi tratado pelo Fanfulla, de 3 de outubro, conforme se vê no Diário Nacional, do dia 10; e, no entanto, o protesto foi feito, porém, pela mocidade acadêmica, por intermédio do Centro Acadêmico XI de Agosto” (SOUZA, 1929b, p. 3).
Há um equivoco no testemunho de Correia Leite. A manifestação dos estudantes a que se refere Frederico de Souza ocorreu em 24 de setembro de 1928, um ano antes da publicação do artigo do Fanfulla. Essa foi uma manifestação organizada pelo Centro Acadêmico XI de Agosto contra a publicação de artigos fascistas do jornal Il Piccolo.
Milhares de manifestantes tomaram as ruas do centro de São Paulo. A redação do jornal foi empastelada: “A acolhida desaforada por parte dos escrevinhadores do Il Piccolo, no momento em que rapazes brasileiros iam pedir-lhes explicação ou retificação de insultos mesquinhos ao nosso brio de povo livre, exaltou os ânimos dos que aguardavam o resultado da conversa. Foi então que as primeiras pedras começaram a chover, estilhaçando vidraças e estabelecendo a balbúrdia, dentro e fora do prédio. (…) Ao ataque dos invasores, responderam os jornalistas italianos com uma série de tiros” (A ALTIVA, 1928, p. 12).
Segundo o Diário Nacional, Vicente Ferreira foi um dos oradores: “Em seguida, fez uso da palavra proferindo magnífico discurso à maneira pela qual o fascismo quer manifestar seu imperialismo no Brasil, o sr. Vicente Ferreira. As suas eloquentes palavras receberam calorosas palmas da multidão” (O EMPASTELAMENTO, 1928, p. 2).
Entre outras razões, o protesto foi motivado pelos insultos e ameaças de Luiggi Freddi, publicadas no Il Piccolo, à Maria Lacerda de Moura (BATALHA, 2020).
No dia anterior à manifestação dos estudantes, edição de domingo, o Diário Nacional fez uma reportagem instigando uma reação popular aos textos de Freddi publicados no Il Piccolo: “Antes que haja uma dolorosa reação por parte de brasileiros de brio, refreiem os hóspedes mal educados a sua linguagem” (ABUSANDO, 1928, p. 4).
O Diário Nacional citou um dos artigos de Freddi: “Homens que pertencem a uma raça milenar, que deu ao mundo três civilizações e o esplendor de todas as artes e de todas as ciências, que dominou e que voltará a dominar ‘ROMANAMENTE’, podem rir dos insultos de todos os idiotas porque têm a consciência segura de poder ENSINAR a qualquer um todas as leis da educação e da hospitalidade” (ABUSANDO, 1928, p. 4).
[15] Depois de três anos de campanha, a herma foi inaugurada. Segundo Correia Leite: “No mês de junho de 1930, exatamente no dia 21. A comissão que o Argentino tinha encabeçado conseguiu terminar a herma de Luiz Gama e houve a inauguração no Largo do Arouche com uma festa bonita. O Largo do Arouche ficou coalhado de negros. E houve também a presença de políticos e intelectuais brancos, como por exemplo o dr. Marcelo Soares, um político de família tradicional. Foi impressionante aquela manifestação” (CUTI, 2007, p. 88).
Correia Leite equivocou-se com relação à data da inauguração da herma. Ela só ocorreu no dia 22 de novembro de 1931 (HERMA, 1931; UM GRANDE, 1931). A militância do movimento negro pretendia que a herma fosse inaugurada no dia 21 de junho de 1930, data do centenário de nascimento de Luiz Gama (STUMPF; VELLOZO, 2018).
Frederico de Souza foi um dos militantes do movimento negro que colaboraram com o projeto da inauguração da herma de Luiz Gama (O FILHO, 1930, p. 3).
[16] (Nota dos autores). Talvez o sucesso econômico dos imigrantes moradores do Bixiga, que viviam ao lado dos negros, também tenha um papel importante no despertar da ideia de uma organização para patrocinar o levantamento social, econômico e cultural do negro, assim como na defesa de suas reivindicações. Não tenho elementos para esta afirmação, mas me parecem sugestivos dois fatos: um, o de terem, os movimentos de negros, surgido no Bixiga e não na Barra Funda, zona também de população negra densa, outro, o do depoente, tendo passado sua adolescência em casa de família italiana, fazer referências ao “erro que o negro estava percebendo em 27-28, de não ter imitado o imigrante, ao ter este último passado necessidades e se alimentado mal – fato de que o negro caçoava. Nessa época, os italianos eram donos de todo o Bixiga e seus filhos, quando não doutores, eram guarda livros, alfaiates, marceneiros, ou tinham pequenas casas de comércio, enquanto os negros ainda viviam em porões e sofriam as mesmas picadas da desigualdade econômica. O Clarim chamou a atenção para este fato muitas vezes.”
[17] O primeiro número do Chibata traz na capa a denúncia de que conselheiros da Frente Negra estavam acusando os diretores do jornal de serem “judas da raça” (JUDAS, 1932).
Em seu livro sobre o debate político da comunidade negra nos anos 1930 e 1940, Flávio Gomes trata das dissidências da Frente Negra motivadas pelas posições do seu presidente: “A despeito das constantes defesas de Arlindo tentando dissociar seu ‘patriotismo’ de sua atuação na FNB, a discussão e os conflitos internos provocaram o aparecimento de grupos dissidentes. Entre eles, um intitulado Frente Negra Socialista, liderado por Manoel dos Passos. Havia ainda as posições de José Correia Leite e de Alberto Orlando” (2005, p. 60).
[18] Como nos protestos dos estudantes, em 1928, contra Il Piccolo, os ataques contra a sede dos jornais Clarim d’Alvorada e Chibata, em 1932, foram considerados como um empastelamento. Em uma nota, o Diário Nacional informa que a polícia, ainda que chamada, não compareceu à redação dos jornais após o empastelamento (FOI EMPASTELADO, 1932).
[19] Em 1954, ao lado de outros militantes, Correia Leite participou da criação da Associação Cultural do Negro (ACN) (SILVA, 2012). Entre 1965 e 1976, a ACN passou a ser coordenada por Glicéria de Oliveira e Eduardo de Oliveira e Oliveira, esse último, uma grande referência para o Movimento Negro Unificado (MNU). Em momentos diferentes, a ACN foi coordenada pelas duas gerações do movimento negro.
Em 1985, o Cultne promoveu um encontro de militantes da Frente Negra Brasileira com militantes do MNU, em resposta a Correia Leite, que afirma não existir uma ligação entre as duas gerações do movimento negro, Milton Barbosa (Miltão), militante do MNU, argumenta: “No início de 1972, eu, o companheiro Rafael (Pinto) e o Neninho (de Obaluaê), a gente se reuniu para discutir a situação do negro, a gente pensava que estávamos inventando o movimento negro, ou qualquer coisa desse tipo. Quando começamos a buscar as informações, começamos a descobrir que já haviam feito outros trabalhos, a gente ficou sabendo da questão da Frente Negra Brasileira, trabalhos que foram realizados pela Associação Cultural do Negro, e nós buscamos as pessoas. Conversamos com o sr. Correia Leite, com o sr. Henrique Cunha, ficou claro para gente que, na realidade, a questão não é que não há uma ligação, o que falta é a memória da população negra. (…) Há uma ligação que a gente aprendeu com eles formas de intervir, formas de reivindicar, justamente, em função do processo que eles desencadearam. Realmente, há uma ligação” (FRENTE NEGRA, 1985, 2m.52s.-4m.17s.).
Sobre a ligação entre as duas gerações do movimento negro, outro grande militante do MNU, Ivair dos Santos sustenta: “A fala do sr. Correia Leite reproduz longas conversas que nós militantes mantínhamos sobre o passado recente. Com generosidade e desprendimento ele se colocava diante da juventude que o procurava. Sua paciência e experiência de vida garantiam seus comentários, feitos com tal leveza e simplicidade, que suas críticas se tornavam uma lição” (SANTOS, 2007, p. 9).
Agradecemos a colaboração acadêmica de Ivair dos Santos e Rafael Pinto na confirmação de algumas informações sobre esses temas.
[20] As histórias de vida de Correia Leite, Vicente Ferreira e Florestan Fernandes se assemelham em alguns aspectos. Os três tiveram uma origem muito humilde.
Quando Florestan nasceu, sua madrinha, que era a patroa da sua mãe, preferia que ele se chamasse Vicente, pois ela achava que “Florestan não era nome de filho de criada” (CHASIN et al., 1986, p. 61). Vicente passou a ser seu apelido familiar.
Na infância, Florestan perdeu seu grande amigo para a fome e a tuberculose, doença que também vitimou Vicente Ferreira. Sobre a morte desse menino, que trabalhava com ele engraxando sapatos, lamentou Florestan: “para nós não era fácil sobreviver” (CHASIN et al., 1986, p. 64).
Numa referência às barreiras sociais impostas às pessoas negras, Correia Leite e Renato Moreira (1951a) retomam uma expressão do poeta Cruz e Souza: o emparedamento (SILVEIRA, 2023). Ao analisar as dificuldades que enfrentou para conseguir uma ascensão social, Florestan utiliza essa expressão: “Essa situação, por sua vez, voltou à minha observação mais tarde, na pesquisa com Bastide: o tema do ‘emparedamento do negro’” (FERNANDES, 1977, p. 150).
Tanto Correia Leite quanto Florestan foram criados por mães solteiras que trabalhavam como empregadas domésticas. Ambos passaram a infância no bairro do Bixiga. Os dois precisaram trabalhar desde crianças.
Segundo Correia Leite, os meninos do seu bairro conseguiam ganhar alguns níqueis trabalhando como “caddie” no clube de golfe que existia no Morro dos Ingleses. Naquele descampado afastado do comércio, as crianças corriam o risco de serem violentadas: “era comum aqueles negros pegarem um moleque e levar para o mato, os que ficavam com pena, se é que ficavam, mandavam o garoto tocar uma punheta. (…) Eu era cheio de malícia, cresci na rua – eu sempre me safei” (LEITE; MOREIRA, 1951b, p. 4).
Num texto biográfico, Florestan denuncia esse mesmo tipo de ameaça contra as crianças pobres que trabalhavam nas ruas: “A violência entrou na minha vida muito cedo, era um processo de autodefesa: se não a usasse, eu acabaria sofrendo uma utilização sexual violenta por parte dos adultos” (CHASIN et al., 1986, p. 62).
No período em que Florestan morou no centro da cidade, o clube de golfe não ficava mais no Morro dos Ingleses. Todavia, o lugar continuava sendo frequentado pelas crianças da região: “Às vezes fugíamos da escola. Nós íamos ao Morro dos Ingleses, onde existiam alguns palácios e um grande descampado com um muro” (CHASIN et al.,1986, p. 64).
Sem terem o suporte financeiro de suas famílias, Correia Leite, Vicente Ferreira e Florestan não conseguiram permanecer por muito tempo nas escolas. Ainda que tenham atravessado percursos de vida diferentes, os três se consideravam autodidatas.
Na história de vida que elaborou para a pesquisa UNESCO, Correia Leite discorre sobre sua breve experiência escolar: “Minha vida foi na rua, aprendendo a ler um pouco aqui, outro lá. Via, muitos meninos com quem brincava, irem à escola. Depois de rondar algum tempo uma delas (Escola Mixta 13 de Maio, particular), indo muitas vezes esperar a saída de meninos conhecidos, acabei me apresentando à professora. Disse que desejava ir à escola, mas não tinha como pagá-la – propunha-me, então, prestar serviços à troco de ensino. Três meses depois, a professora, que viera do interior por causa de um noivo e montou a escola para se manter aqui, tendo desmanchado o compromisso, fechou a escola e voltou para o interior. Na última aula, ao despedir-se, deu-me alguns livros, aconselhou-me ir procurando ler e me disse que uma das coisas que mais sentia era deixar-me” (LEITE; MOREIRA, 1951b, p. 3-4).
Foi Jayme de Aguiar, seu parceiro no Clarim d’Alvorada, quem lhe ensinou a calcular e escrever: “Ele marcou o dia e passou a ir lá onde eu morava, no Bixiga, no porão da casa de uns italianos. Ele ia duas vezes por semana e me dava aulas de matemática e português. Comecei a melhorar” (CUTI, 2007, p. 27).
A colaboração de Jayme de Aguiar (1951) na pesquisa UNESCO restringiu-se ao preenchimento do questionário autobiográfico. Com 52 anos, Aguiar era professor particular e contador no funcionalismo público. Correia Leite também era funcionário público, trabalhava como guarda numa repartição. Segundo Aguiar, no funcionalismo havia menos racismo.
Ao completar 60 anos, Correia Leite recebeu uma homenagem do militante Fernando Goes: “Vindo da pobreza, não frequentou escolas, não conviveu com pessoas importantes e ilustradas. Aprendeu a ler sozinho e sozinho adquiriu amor pela leitura. Aos trinta anos, sabia mais do que uma turma de bacharéis, e era capaz de conversar sobre os temas mais diversos com um conhecimento, uma ponderação e um raciocínio de espantar. Quando todos, quase sempre, sabem as coisas porque leram os tratadistas, estudaram em mil compêndios, José Correia Leite sabe-as porque a sua inteligência privilegiada leva-o sempre às mesmas conclusões a que nós chegamos depois de muita leitura. Por isso é que digo sempre que tudo que sei devo aos livros e a ele. Sua palavra, seus conselhos, suas ideias, suas observações valeram-me pela escola que não tive” (GOES, 1960, p. 4).
Quando Correia Leite faleceu, em 1989, Florestan era Deputado Federal. O sociólogo foi à tribuna homenageá-lo: “Demonstrou José Correia Leite um grande equilíbrio e, ao mesmo tempo, desempenhou um papel construtivo, elaborando uma ideologia que, em termos sociológicos, chamaríamos de contraideologia, pois se opõe à ideologia mistificadora da raça dominante, uma contraideologia racial, pela qual os negros pretendiam adquirir a condição plena de cidadãos, de homens livres, emancipados, não oprimidos e capazes de contribuir para o desenvolvimento econômico, cultural e político do Brasil de uma maneira mais fecunda” (FERNANDES, 2017, p. 144-145).
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA