Por CARMEM NEGREIROS*
Na obra do escritor percebe-se as vozes dos silenciados pela história cultural.
Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) é dos escritores brasileiros mais conhecidos, apesar de a recepção crítica de suas obras se caracterizar pela circulação de alguns discursos que guardam duas peculiaridades: (a) marca-se pelo viés biográfico (a maneira como viveu, com quem e como se relacionou, a atuação na vida literária) que restringe toda a qualidade estética ao “confessional” e/ou ao “ressentimento”; (b) a redução da obra a um libelo e seu valor é circunscrito ao conteúdo de crítica social, na irreverência de atitudes e gestos.
Mas, como lidar com o movimento recíproco e paradoxal que só se resolve no momento da criação, isto é, “a vida do escritor está à sombra da escrita, mas a escrita é uma forma de vida” (Maingueneau, 2001, p. 47) considerando a obra do autor de Recordações do escrivão Isaías Caminha? Como ler suas obras acentuando o frescor de atualidade que carregam sem negligenciar a riqueza estética de seus textos? Talvez seja interessante conhecer algumas das múltiplas faces do escritor nas obras.
O colecionador e a criação literária
Um lado menos conhecido de Lima Barreto é o de pesquisador e estudioso com um método peculiar: colecionar “retalhos”, ou recortes de jornais. Organiza cadernos nos quais são colados recortes de jornais contendo assuntos diversos, desde acontecimentos políticos e culturais até críticas às suas obras, recortadas e arquivadas, além de estudos e esboços de textos iniciais para contos e romances. Possuem como suporte o papel, em cadernos com as folhas totalmente ocupadas em frente e verso por recortes de jornais acompanhadas do registro da data e veículo de publicação, sem observar clara sequência cronológica ou temática. Algumas anotações manuscritas são feitas à margem desses recortes, na horizontal ou vertical, de acordo com os espaços que sobram na folha de caderno. Ao lado do recorte, aparece às vezes uma observação ou um pequeno texto manuscrito.
Essa prática não é peculiar somente a Lima Barreto. Guimarães Rosa anotava em seus cadernos histórias contadas por sertanejos, ouvidas durante suas viagens. Usava esses registros como sugestões para descrições de espaços e, também, para temas de contos. O caso mais emblemático é o de André Gide (1869-1951), que manifesta o desejo de escrever um romance a partir de fait divers colecionados pelo autor durante muitos anos. “Voltei a pegar esta manhã alguns recortes de jornal atinentes ao caso dos moedeiros falsos. Lamento não ter conservado um maior número deles. Eles são do jornal de Rouen, de setembro de 1906. Creio que é preciso partir daí sem procurar por mais tempo construir a priori” (Gide, 2009a, p. 26).
Testemunhas do processo de gênese, os cadernos repletos de esboços que prenunciam a redação, recortes de jornais e anotações de livros cujos temas ou recursos de linguagem neles contidos abrem para a percepção de vestígios ou lembrança descritiva. Os cadernos oferecem, sobretudo, espaço para reflexão do escritor sobre os discursos de teor histórico-cultural e o quadro de referências que utiliza para pensar a escrita.
O romance de estreia: à janela do real
No prefácio de Recordações do escrivão Isaías Caminha Lima Barreto dramatiza o processo de autoria — a publicação do manuscrito do “amigo Isaías”, inserindo-se como personagem. Primeiro, observamos o relato das etapas de publicação da obra, isto é, o envio a Portugal em busca de editor, a justificativa para a inclusão do prefácio, que não consta na primeira edição. A seguir, nos são apresentados, em primeira pessoa, dados da recepção da obra, com fatos relacionados a sua vida literária e outros já conhecidos do leitor.
O mais interessante é a inclusão da crítica de José Veríssimo, quando o romance apareceu, em capítulos, na revista Floreal. Lima Barreto publica na segunda edição o prefácio do “autor Isaías Caminha”, que fora eliminado da primeira, acrescentando dados da recepção crítica e de sua trajetória pessoal de escritor, ficcionalizando, portanto, todo o processo de edição.[i] O prefácio apresenta três tempos diversos, mas coerentes e semelhantes.
O primeiro tempo corresponde ao presente da publicação da segunda edição,1916, quando o autor comenta a recepção crítica aos primeiros capítulos surgidos na revista que ele dirigia. Informa, ainda, que já transcorreram dez anos, tanto da primeira publicação quanto da escrita dos manuscritos por Isaías Caminha, recurso que permite narrar os acontecimentos na vida do protagonista depois do ponto-final do romance.
O prefácio guarda, ainda, outro prefácio, o do pretenso autor das Recordações, transcrito por Lima Barreto. Nele, aparece a justificativa para a escrita das memórias, que data de 1905 e marca um segundo tempo. O terceiro tempo, ainda no prefácio, trata do passado do escrivão Isaías, retomado por imagens-sínteses, a partir de reflexões, de sua trajetória anterior a 1905.
Observamos espelhamentos do texto e releitura de seus significados, isto é, o editor e escritor Lima Barreto retoma notas contidas nos cadernos Retalhos sobre a recepção crítica de seu romance de estreia e exemplos de sua própria atividade, como editor, na vida literária. Explica o prefácio e objetivos do escritor fictício Isaías Caminha e, ainda, relata a trajetória final do protagonista do romance. Um exemplo de mise-en-abyme que “constitui um enunciado que se refere a outro enunciado”, e tem fortes raízes, portanto, “num processo de intertextualidade, da chamada intertextualidade interna, compreendida como relação dum texto consigo mesmo” (Dallenbach apud Natividade, 2009, p. 53).
Assistimos no prefácio de Recordações do escrivão Isaías Caminha a um jogo narrativo por meio do efeito de mise-en-abyme que possui o efeito de dobra especular da narrativa. Trata-se do espelhamento do mesmo tema e, nesse caso, da dramatização dos bastidores da criação aos leitores. Método que teve em André Gide seu praticante mais famoso em Os moedeiros falsos.
No capítulo X, da edição de 1917, o autor inclui quatro parágrafos depois dos comentários sobre os “a pedidos”[ii] e cita duas pequenas estrofes de versos populares, sem conexão entre si, atribuídos a um poeta louco para, em seguida, encerrar a inclusão com um comentário sobre figuras conhecidas da vida urbana carioca como “Mal das Vinhas” e o “Príncipe Ubá”. A inclusão mistura o contexto cultural das ruas e quadrinhas registradas nos cadernos Retalhos acompanhadas da observação manuscrita: “Escrito numa janela do Hospital de Alienados do Rio”. Lima Barreto esteve internado no hospício no período de 18 de agosto de 1914 a 13 de outubro 10 de 1914, cinco anos antes da segunda edição de Recordações do escrivão Isaías Caminha. No entanto, na passagem do caderno para o romance, a quadrinha sofre uma atenuação para constar da obra. Nos cadernos Retalhos a segunda quadrinha aparece assim: “30 por uma tinha / 40 por uma vergalha / 60 por uma porra / 70 por um caralho”.
O exemplo mostra-nos o espaço entre o vivido e os cadernos, espaço feito de tensões e vestígios que a escrita vai fixar, mas expondo as fissuras do processo. Por isso, o texto não é nunca o vivido: “Ele é o produto de um movimento do espírito (pensamento, pulsão, reação), que se faz forma, e traz à luz o trabalho da pena” (Hay, 2007, p.13). Mosaicos, fragmentos colhidos à janela do real e que se fazem ficção.
Os cadernos e Triste fim de Policarpo Quaresma
Entre os cadernos da coleção Retalhos, arquivados na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional, encontra-se uma tira de jornal com o título “Floriano Peixoto. O momento político e financeiro em 93”, sem informar local de publicação, o recorte traz a observação do escritor na lateral: “Por ocasião da morte de Saenz Peña”.[iii] O artigo relata episódios curiosos acerca da atuação de Floriano na presidência do Brasil. A violência empregada pelo governo de Floriano Peixoto deixa marca indelével na memória cultural do período.
Lima Barreto colou também uma notícia publicada na Gazeta de Notícias de 1913 com a manchete “Os fuzilados da Fortaleza de Santa Cruz, em Santa Catarina. Um requerimento das famílias das vítimas ao Marechal Hermes”. Nela, destaca-se o terror instalado na ilha do Desterro, hoje Florianópolis, com a chegada do coronel Moreira César em abril de 1894. Eliminar os opositores com perseguições e execuções ilegais e arbitrárias, por degola ou enforcamento, com base em delações e sem julgamento, foi a sanguinária resposta do governo de Floriano aos participantes da Revolução Federalista (1893-1894) e da Revolta da Armada (1891 e 1893). A notícia também se referia ao requerimento apresentado ao então presidente, Marechal Hermes da Fonseca (1910-1914), solicitando a permissão para a retirada das ossadas das vítimas que foram encontradas na Fortaleza Santa Cruz, por ocasião de trabalhos de reforma e instalação de novos canhões.
Lima Barreto em Triste fim de Policarpo Quaresma depois de muitas pesquisas, como testemunham os cadernos, realiza um longo desenho do Marechal, cujos traços marcantes são: “tibieza de ânimo”, o exercício da “tirania doméstica”, a “preguiça doentia”, o “homem-talvez” que, paradoxalmente, angariou seguidores fanáticos.
Lima Barreto cria uma das páginas mais lancinantes da Literatura Brasileira quando descreve, a partir da perspectiva de seu personagem, o massacre dos prisioneiros das revoltas contra o governo Floriano. Designado como carcereiro de jovens inocentes, indigna-se Policarpo Quaresma com o destino prometido aos recrutas: feitos prisioneiros, seriam mortos e seus corpos jogados ao mar. Registra em carta toda a sua indignação ao presidente da República e é acusado de traidor, feito prisioneiro e logo também condenado à morte. Os recortes de jornal, nesse caso, tornam-se documentos de gênese externa. Permitem acompanhar como o escritor importa, deforma, transforma, integra os fragmentos discursivos dos jornais.
O resultado está no romance que é obra incontornável no conjunto das obras de Lima Barreto e merece leitura e releitura nos dias de hoje. A obra chama a atenção para a forma como o nacionalismo se constitui e se apresenta: por meio de narrativas e estratégias discursivas (e isso vale tanto para a Primeira República quanto para o contemporâneo). No começo do século XX, muitos intelectuais idealizaram projetos de nação, tendo a ciência como forte aliada na defesa do sanitarismo, eugenia e branqueamento como soluções para o país.
Poucos como Lima Barreto e Manoel Bonfim explicavam os problemas por razões sociais e não por causas biológicas. Toda uma geração de perfil cientificista procurava argumentar junto à sociedade que a experiência republicana representava o momento histórico de “fundação” ou “refundação” do país, junto à regeneração do povo. Num diálogo tenso com o passado histórico, os intelectuais propunham “novas técnicas”, “novo saber”, “nova sociedade” além de “novo governo”.
Então, no auge dessa euforia nacionalista, com tintas de ciência, Lima Barreto apresenta o seu “doce, bom e modesto Policarpo”, que paga com a vida por concluir que “a pátria era um mito” e o personagem expõe ao leitor onde assimilara essas narrativas de nação: nos livros de literatura, de história, nas narrativas de viagens, nas canções e lendas etc. Todos são dispositivos discursivos que plantaram “palmeiras e sabiás”, símbolos de uma natureza “exuberante” em nosso imaginário. Discursos que negam a questão estrutural que atravessa a cultura brasileira e trinca a imagem homogênea de brasilidade: a escravidão (indígena e negra), matriz da violência, do autoritarismo no controle de corpos e sujeitos excluídos, estigmatizados, recolhidos compulsoriamente ou expulsos da pátria amada.
A técnica impressionista e a militância
Lima Barreto traz para a literatura brasileira das primeiras décadas do século XX os personagens de baixa extração social, mas não para mostrá-los apenas como parte de um projeto de denúncia da desigualdade marcante no país. O escritor está interessado, e atento, “aos musgos dos mofos da alma”, como também afirmara Flaubert (1993) sobre a elaboração de seus personagens. Os textos de Lima Barreto realizam um movimento sofisticado: aprofundam o desenvolvimento do personagem no tempo, substituindo a ação pela análise psicológica.
Com isso, permitem o olhar crítico sobre impasses, dilemas e fracassos de figuras que, para a sociedade, não têm voz. Assim, conferem densidade psicológica a personagens comumente invisíveis. Uma das estratégias utilizadas para isso é o impressionismo literário, a técnica significativa para a representação dos impasses da consciência e dos atos de percepção, apresentando processos simultaneamente espaciais e temporais, como acontece em Clara dos Anjos.
O romance é muito rico, com várias tramas em paralelo, e foi bastante trabalhado por Lima Barreto em inúmeras versões, tendo sido postumamente publicado (inacabado) em folhetins na revista Sousa Cruz, Rio de Janeiro, entre 1923 e 1924.
Criada numa ambiência cujos traços gerais incentivavam a fantasia, a música dolente com versos repetitivos, todo um universo de exacerbações dos sentidos com “sons mágicos” de violões, o caráter da protagonista, Clara, vai sendo moldado pela idealização mesclada a sonhos vagos de amor. A realidade gradativamente passa a ser um pálido reflexo da imaginação cujo conteúdo lhe interessa mais do que o mundo ao seu redor. No entanto, a jovem de “débil inteligência” e com “falta de experiência”, segundo o narrador, passa por relevante processo de autoconhecimento e de reconhecimento profundo das tensões de raça, classe e gênero. Processo este que será antecipado por meio da imagem “mancha de carvão”, muitas vezes utilizada ao longo do romance e com diferentes possibilidades de sentido.
Aos poucos, como se fosse uma câmera, o foco do narrador vai se afunilando. Primeiro, vemos à janela a clássica moça namoradeira e, depois, gradativamente, imbricam-se o espaço exterior (o céu, as estrelas, as árvores, o luar, a escuridão da noite) e o “pensamento errante” (e angustiado) da personagem.
“Clara contemplava o céu negro, picado de estrelas que palpitavam. A treva não era total, por causa da poeira luminosa que peneirava das alturas. [..] Correu com o pensamento errante toda a extensão da parte do céu que avistava. Voltou ao Cruzeiro, em cujas proximidades, pela primeira, vez reparou que havia uma mancha negra, de um negro profundo e homogêneo de carvão vegetal. Perguntou de si para si:
— Então, no céu, também se encontram manchas?” (Barreto, 1956, p. 175).
Em seguida a essas imagens, o narrador esclarece: “Essa descoberta, ela a combinou com o transe por que passara. Não lhe tardaram a vir lágrimas; e, suspirando, pensou de si para si: — Que será de mim, meu Deus?” (idem, p. 175). Vemos o escritor utilizando o claro/escuro para revelar as dores íntimas dos personagens. A cor de “carvão vegetal”, que não reflete a luz, é invadida sutilmente por “uma poeira luminosa”. A escuridão da angústia de Clara coaduna-se com a “mancha negra, de um negro profundo” para representar o primeiro estágio do processo de conscientização da personagem. A “mancha” é “negra” como a represália moral que sofrerá por estar grávida e solteira. Pela primeira vez, Clara dos Anjos tomou consciência de que a culpa, o julgamento, a impotência irão acompanhá-la, como uma “mancha”. A doce, ingênua e angélica Clara toma consciência da opressão de gênero da sociedade patriarcal — montanhas que, como “gigantes negros”, montavam sentinela, indiferentes a sua dor.
Muito interessante a estratégia que utiliza o impressionismo literário para conferir humanidade e grandeza a seus personagens. Caso os leitores não tenham compreendido a linguagem de luz e sombra que exterioriza o conteúdo das emoções da personagem, o narrador fornece a informação por meio do discurso indireto. Num monólogo, Clara fala consigo mesma, revelando ao leitor o conteúdo de sua angústia. “Que havia de ser dela, agora, desonrada, vexada diante de todos, com aquela nódoa indelével na vida?” (Barreto, 1956, p. 187).
Perceber a “indelével mancha de carvão” transforma a personagem. O olhar desdenhoso de Dona Salustiana (mãe de Cassi Jones, pai da criança que Clara dos Anjos espera) foi fulminante e decisivo para nova etapa do amadurecimento da protagonista. “A moça foi notando isso e encheu-se de raiva, de rancor por aquela humilhação por que passava, além de tudo que sofria e havia ainda de sofrer” (Barreto, 1956, p. 193). Diante da humilhação responde fora de si sobre o motivo de sua visita: “Quero que se case comigo”. A reação veio em seguida. “Dona Salustiana ficou lívida; a intervenção da “mulatinha” a exasperou. Olhou-a cheia de malvadez e indignação, demorando o olhar propositadamente. Por fim, expectorou: — Que é que você diz, sua negra?” (Barreto, 1956, p.194).
Sutilmente, Lima Barreto nos mostra que o poder está do lado de dentro e do lado de fora das pessoas, isto é, a força do exterior molda, fixa, intimida, provoca, rebaixa, controla. Questão explorada por Franz Fanon em Pele negra, máscaras brancas: “[…] o outro, através de gestos, atitudes, olhares, fixou-me como se fixa uma solução com um estabilizador. Fiquei furioso, exigi explicações… Não adiantou nada. Explodi. Aqui estão os farelos reunidos por um outro eu” (Fanon, 2008, p. 103).
Como “um outro eu” que surge reunindo os cacos, Clara enxerga suas características étnicas e o racismo estrutural, sua vulnerabilidade econômica e, como explica o narrador, “Agora é que tinha a noção exata de sua condição social” (Barreto, 1956, p. 196). De fato, a personagem aprende a revidar o olhar como atitude de resistência, mesmo que ainda frágil. Pela reunião de todas essas estratégias que se alternam entre sutilezas e explicações, torna-se compreensível porque o romance termina com a afirmação de Clara dos Anjos à mãe, pronunciada com “grande acento de desespero: — Nós não somos nada nesta vida” (Barreto, 1956, p. 196).
O destacado uso da cor, em Clara dos Anjos, permite o mergulho na consciência da personagem e a percepção de como se afeta profundamente pelas pressões sociais, vindas da educação que recebera, da cor da pele, por ser mulher e pobre. As técnicas impressionistas permitem explorar o doloroso processo de amadurecimento da subjetividade para cultivar uma consciência crítica: Clara dos Anjos aprende a olhar e ver. Numa espécie de drama com imagens revelam-se as tensões e dilemas das subjetividades silenciadas e invisíveis. Aí reside a força de sua literatura — rebuscada, crítica, atenta e, em última instância, militante.
O intelectual na tribuna da imprensa
O escritor carioca demonstrou, nas crônicas publicadas nos jornais, erudição suficiente e conhecimento das principais tendências no pensamento crítico. Acompanhava e participava dos debates com propriedade e argumentação pertinente, construída a partir de leituras feitas.
Intelectual arguto, Lima Barreto enviou carta ao sociólogo francês Célestin Bouglé (1870-1940), discípulo de Durkheim e professor de Sociologia na Sorbonne, para contestar “os juízos falsos com que o mundo civilizado envolve os homens de cor”. Diz o escritor: “ao ler seu belo livro, observei que o senhor está a par das coisas da Índia e pouco sabe sobre os mulatos do Brasil. Nas letras brasileiras, já florescentes, os mulatos ocuparam lugar de destaque. O maior poeta nacional, Gonçalves Dias, era mulato; o mais erudito dos nossos músicos, espécie de Palestrina, José Maurício, era mulato; os grandes nomes atuais da nossa literatura – Olavo Bilac, Machado de Assis e Coelho Neto – são mulatos” (Barreto, Correspondência, 1956, tomo I, p. 158). O escritor demonstra também ter conhecimento das obras de Booker Taliaferro Washington (1856-1915), liderança afroestadunidense,[iv] que, após a guerra civil, defendeu o ensino técnico como uma educação exclusivamente centrada no trabalho à população negra abandonada e sem perspectivas.
É forte a preocupação do intelectual com a importante questão da cultura brasileira, especialmente no período em que as teorias de embranquecimento, entre outras, ganham forte apoio e defesa, concomitante à repressão violenta das manifestações culturais de matriz africana, sendo estas oprimidas, segregadas ou tornadas invisíveis, em nome do saneamento e da higiene em busca do progresso.
Em crônica de 16 de agosto de 1919 para o jornal A.B.C, Lima Barreto realiza uma longa exposição sobre os argumentos adotados pelos intelectuais para justificar a matança de grupos negros nos Estados Unidos e, indiretamente, naturalizarem o mesmo procedimento no Brasil e demais países em nome da ciência. A crônica começa com a citação do livro Le Préjugé des races (1906) do sociólogo francês, Jean Finot (1856-1922), um dos poucos teóricos franceses contrários à teoria das raças no período. Vale a pena acompanhar alguns momentos do debate.
“Com minha ignorância reconhecida, em alta de alguém mais competente, eu pretendi com essas linhas ligeiras dizer que a Ciência (com C grande) não autoriza, no seu estado atual, nenhuma matança de seres humanos, por serem desta ou daquela raça. Ela as autoriza tanto quanto os Evangelhos autorizaram as fogueiras de Sevilha, no tempo de Torquemada ou o Saint Berthélemy” (Barreto, 1956, Feiras e Mafuás, p. 188-193).
Destaca-se também no conjunto de sua atuação nos jornais a problematização sobre as formas de controle e violência destinadas aos mais pobres, particularmente na capital da República, em nome do saneamento e do progresso.
Lima Barreto realiza, como intelectual, a mediação entre as ideologias diversas e as necessidades dos cidadãos comuns. Há, na crítica, o olhar àqueles que na cidade habitam a zona de invisibilidade sem acesso às condições urbanas anunciadas pelos discursos da ordem, do progresso, da civilização. E a atenção para a violência cometida contra os trabalhadores empobrecidos pela inflação e carestia provocadas pela grande especulação financeira; contra imigrantes e ex-escravos que deambulam pela cidade; contra mulheres e trabalhadores precários denominados de vadios pela repressão policial.
Contingente grande de brasileiros, em sua maioria negros que, no auge do cientificismo, foram enquadrados numa categoria racial e biologicamente inferior. Por consequência, sofreram práticas discriminatórias no mercado de trabalho, no acesso à educação e toda a herança cultural que carregam é lida como manifestação de desocupados, incivilizados, bárbaros.
A população pobre é vista como a parte doente do corpo social que necessita ser saneada, disciplinada, com sua diversidade – e voz – silenciada, reprimida com violência. O criador de Policarpo Quaresma suspeita do olhar pedagógico dos mensageiros do progresso e questiona o aparato cientificista do controle sobre os sujeitos e a cultura. Afinal, na Primeira República, a “pobreza passou a significar sujeira, que significava doença, que significava degradação, que significava imoralidade, que significava subversão” (Patto, 1999, p. 184).
Na ordem do dia, no cenário da Primeira República, também estava o debate sobre a educação como alavanca ao progresso, sendo tema importante para Lima Barreto. No entanto, o escritor sempre foi crítico do que se preconizava como “instrução pública”, aquela que propõe ensinar a ler, escrever e fazer contas, apenas, sem qualquer premissa de conscientização. Ainda assim, inacessível para grande parte da população. “A municipalidade não dá mais livros, nem lápis, nem cadernos – não dá nada! Como é que os pobres pais pobres, ganhando o que mal dá para comer e morar, poderão arcar com as pequenas despesas de mantença de seus filhos no colégio primário?” (Barreto, Marginália, 1956, p. 112). Então podemos entender por que a cartilha sanitarista, que exige adesão imediata e irrestrita da população, não podia ser compreendida. No lugar da orientação e educação, entram duras medidas punitivas (e repressoras), que intimidam e não garantem formação social crítica.
É muito significativa essa crítica do escritor, pois traz à tona questões estruturais da cultura brasileira, presentes ainda hoje e escancaradas no difícil momento da pandemia de COVID-19 e suas consequências. Os governos mantêm ações equivocadas, abandono das áreas urbanas pobres que sofrem com a ausência de condições de higiene básica e moradias inadequadas em locais densamente habitados. Além disso, os moradores dessas áreas continuam à mercê da repressão policial que, como nas primeiras décadas do século XX, ainda invade residências e pratica a violência em nome da segurança e bem-estar da cidade. Nesse aspecto, pouco melhoramos no Brasil.
Em suas múltiplas vertentes, a obra de Lima Barreto traz-nos as vozes dos silenciados pela história cultural, com a linguagem que soube incorporar as novas tecnologias, a riqueza da experiência urbana, o diálogo tenso com a tradição literária.
Que esse 13 de maio possibilite o encontro de novos leitores com a obra de Lima Barreto.
*Carmem Negreiros é professora do Instituto de Letras da UERJ. Autora de Lima Barreto em quatro tempos (Relicário).
Referências
BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Ática, 1990.
BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1956. v. 2.
BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Clara dos Anjos. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1956. v.5.
BARRETO, Afonso Henriques de. Correspondência. Tomo 1. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1956.
BARRETO, Afonso Henriques de. Feiras e Mafuás. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1956. v.10.
BARRETO, Afonso Henriques de. Marginália. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1956. v.12.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução: Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
FLAUBERT, Gustave. Cartas exemplares. Organização, prefácio, tradução e notas de Duda Machado. Rio de Janeiro: Imago, 1993.
GIDE, André. Diário dos moedeiros falsos. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Estação Liberdade, 2009a.
GIDE, André. Os moedeiros falsos. Tradução Mário Laranjeira. São Paulo: Estação Liberdade, 2009b.
HAY, Louis. A literatura dos escritores. Questões de crítica genética. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária. Enunciação, escritor, sociedade. Tradução Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
PATTO, Maria Helena Souza. Estado, ciência e política na Primeira República: a desqualificação dos pobres. Estudos avançados, São Paulo, v. 13, no. 35, p. 167-198, jan./abr.1999. Disponível em: https://bit.ly/3eCpr5y.
Notas
[i] Vale lembrar aqui que a revista Floreal — publicação bimensal de crítica e literatura, fundada em 1907 por Lima Barreto e amigos como Antonio Noronha dos Santos, entre outros, durou apenas quatro números, sendo o quarto e último número publicado em 31 de dezembro de 1907. Nela o autor publicou os primeiros capítulos do romance, acompanhados de um prefácio do autor fictício, Isaías Caminha.
[ii] Antiga presença nos jornais, a seção representava o espaço para os leitores publicarem opiniões sobre personalidades, acontecimentos culturais, políticos e situações cotidianas; para estabelecer polêmicas a partir de ofensas e acusações; para declarações de amor, epigramas, exposição de trechos de poemas populares, com a linguagem avizinhando-se da obscenidade, do vulgar ou do absurdo.
[iii] Pode-se deduzir o ano de publicação do artigo como sendo 1907. Ano da morte de Luis Saenz Peña (1822-1907), que governou a Argentina entre 1892-1895. Seu filho, Roque Saenz Peña (1851-1919), também governou o país no período de 1910-1914. Há uma importante praça no bairro carioca Tijuca com o nome Saenz Peña.
[iv] Apesar do exitoso projeto de criação de escolas técnicas para negros em boa parte do território dos EUA, Booker Taliaferro Washington também foi duramente criticado por pensadores como William Edward Burghardt, conhecido como W.E.B Du Bois (1868-1963), autor do clássico As Almas do Povo Negro (1903) e considerado fundador da sociologia estadunidense – cujos trabalhos Lima Barreto também conhecia. Entre as críticas, pesa a acusação de não incentivar a formação universitária dessa população, a proposta de sujeição à política segregacionista e por não atuar de forma incisiva contra os frequentes linchamentos comuns à época.