Piotr Kropotkin, 100 anos

Imagem: Vasco Prado
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Por RITH KINNA*

Comentário sobre a trajetória intelectual do pensador russo.

O centenário da morte de Kropotkin é um belo momento para retornar à pergunta que ele fez em Freedom (Liberdade) em 1886: o que devemos fazer? As diferentes respostas de Kropotkin a essa pergunta foram informadas por suas variadas avaliações da situação política na Europa. Na década de 1870, ele descreveu tal situação como “revolucionária”. Dez anos depois, sua terminologia mudou: ele falava em processos evolutivos e ajuda mútua. No entanto, não é óbvio que essa mudança sinalizou uma grande redução de suas ambições políticas. A evolução ainda apontava para “a anarquia vindoura”, uma proposição revolucionária que residia na mente da maioria das pessoas.

Kropotkin costumava escrever sobre a transformação anarquista como se o copo estivesse meio cheio. Ele destacou as tendências sociais e econômicas que poderiam aumentar a confiança nesta mudança anarquista. Mas ele temperou seu “utopismo” com uma dose saudável de realismo. A maior parte dos dados que utilizou para mostrar a iminência da anarquia, de fato, também atesta a terrível saúde do sistema de mercados regulados pelo estado, caso continuasse a crescer sem obstáculos. A essência do pensamento de Kropotkin sobre a transformação social era que o potencial para a anarquia não era a mesma coisa que sua probabilidade.

Os contornos do futuro alternativo de Kropotkin são bem conhecidos. Para combater a urbanização e o desenvolvimento do agronegócio, ele previu a integração da agricultura e indústria e a criação do que os economistas agora chamam de “10-minute neighbourhoods (bairros de 10 minutos)”. Sua globalização alternativa priorizou o compartilhamento de informações sobre o comércio internacional e previu a federação descentralizada comunista como oposição ao monopólio governamental e ao conglomerado corporativo. O plano pode ter parecido especulativo, mas o objetivo de Kropotkin era aumentar os esforços organizacionais práticos e perturbar os arranjos socioeconômicos existentes.

Para Kropotkin, o fortalecimento do liberalismo era uma perspectiva desoladora. Ele antecipou que a internacionalização do laissez-faire prenderia os parceiros comerciais em uma competição por recursos escassos e vantagens econômicas. O livre comércio apontou para a militarização do sistema interestatal, investimento de capital na guerra e patrocínio governamental da produção industrializada de armas. Os padrões de troca desiguais e colonizadores que moldaram a atividade econômica em todo o mundo incentivariam simultaneamente a oposição à dominação europeia e estimulariam os movimentos migratórios das regiões mais pobres para as mais ricas.

Essas pressões provavelmente se intensificariam à medida em que o processo de aquecimento global (que Kropotkin não vinculou à atividade humana) afetasse a produção e a distribuição. Mais cedo ou mais tarde, o liberalismo abraçaria a social-democracia. Uma vez que os liberais entrariam em contato com a ideia da marcha histórica do socialismo, a noção de luta de classes poderia ser facilmente neutralizada pelo assistencialismo. O socialismo de gás e água controlaria a lealdade dos trabalhadores.

As esperanças de Kropotkin sobre a anarquização da vida social e econômica foram frustradas e ele provou estar totalmente certo sobre os rumos do liberalismo. Ele advertiu que a democratização dos estados ocidentais diminuiria o apetite pelo internacionalismo ao longo das linhas propostas por ele e, em vez disso, aumentaria a rivalidade chauvinista e xenófoba. A democracia liberal implicou a profissionalização da política e a abdicação do poder de decisão para especialistas. Mas isso seria mal interpretado como uma tremenda redistribuição de poder e uma vitória para a classe trabalhadora.

Cooptados pelas franquias, o povo seria soberano apenas no momento em que renunciasse à sua soberania individual. A igualdade criaria oportunidade e privilégio. Kropotkin previu as linhas gerais da socialização do liberalismo, embora não tenha vivido para ver as consequências: lares dignos de heróis, educação universal gratuita e serviços de saúde do berço ao túmulo. Os cidadãos buscariam toda proteção para manter suas vantagens contra “estrangeiros”. A ideia de que a sociedade poderia funcionar de forma cooperativa e independente do estado iria parecer fantástica.

O mundo de Kropotkin não era tão diferente daquele em que habitamos. É um equívoco consignar sua concepção de transformação social a um passado distante, onde as barreiras para a mudança anarquista eram menos formidáveis do que são agora. Algumas de suas prioridades imediatas – assim como resistir às seduções do governo representativo e do socialismo de estado – dependiam do apoio que os anarquistas pudessem obter para sua causa na época.

Sua compreensão realista dificilmente diminui a força de sua crítica. Kropotkin pressentiu o possível eclipse do anarquismo na Europa e testemunhou o colapso de seus sonhos na Rússia. Apesar disso, ele continuou a promover a política anarquista até o fim. Como é bem sabido, ele acreditava que a anarquia sempre podia ser descoberta nos cantos e recantos do estado e sempre poderia ser recuperada como uma ordem social alternativa. A ajuda mútua foi um dos pilares de seu anarquismo. Ele também nos deu frutíferos conceitos de livre acordo, espírito de revolta e bem-estar para todos.

A ajuda mútua às vezes está ligada a um conjunto restrito de atividades. Mas Kropotkin não estabeleceu limites para os tipos de ação direta e não prescreveu quais empreendimentos as pessoas deveriam buscar, contanto que fossem movidos por considerações de justiça.

O que, então, devemos fazer? Kropotkin deu sua resposta: Ajam por si mesmos!

*Ruth Kinna coordena o Anarchism Research Group e co-edita seu jornal Anarchist Studies. Autora, entre outros livros, de The Government of No-one and Great Anarchists.

Tradução: A. Padalecki.

Publicado originalmente pela Agência de Notícias Anarquistas.

 

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