Nacionalidade torpedeada

Imagem_Oto Vale
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MANUEL DOMINGOS NETO*

O envio do acervo de Paulo Mendes da Rocha para a Europa neste momento é um flagrante do processo em curso de asfixia da memória brasileira

Além do sonho coletivo de viver melhor, as nacionalidades requerem percepção comum do passado. Daí a destruição da memória referente às lutas pela mudança social ser o empreendimento fascista mais gravoso para uma nação.

Uma comunidade auto-estimada cuida de sua memória como quem bebe água. A alternativa é morrer. Não há sociedades sem simbologias que sacralizem seletivamente experiências vividas. É o que indica a expressão “lugares da memória” consagrada pela historiografia francesa. Tais “lugares” constituem referenciais das almas nacionais.

A arquitetura, sendo incisiva portadora de mensagens relativas ao passado e às promessas de um futuro melhor, tem grande peso na construção da memória coletiva. É um instrumento universalmente privilegiado na identificação de sociedades e na legitimação de Estados.

Mussolini e Hitler teriam logrado manipular italianos e alemães sem bater de frente com as percepções que estes povos alimentavam de seus próprios trajetos e sem injetar-lhes grandes expectativas quanto às glórias vindouras?

Ambos valorizavam as expressões da Antiguidade Clássica como argumento para repudiar a “arte degenerada” da modernidade e promover estéticas adequadas à manipulação das massas segundo seus propósitos totalitários. A arte moderna era incompatível com o nazifascismo. A arquitetura, nem se fale!

Obviamente, na modernidade, o poder político sempre mandou recados à sociedade apelando para a estética greco-romana. Mas apenas os despóticos condenaram de morte os inovadores que lhes contrariavam.

Pensando no Brasil, o êxito de Bolsonaro requer a dilapidação do patrimônio histórico e artístico brasileiro. Se pudesse, o presidente e seus generais destroçariam tudo o que talentos como Niemeyer, Portinari, Paulo Freyre e Djanira fizeram. O propósito dos saudosos da ditadura é silenciar artistas e intelectuais. A orientação é de sumir com o IPHAN, sem o qual a memória da arquitetura e de outros patrimônios não existiria. O empenho na destruição da Casa de Ruy Barbosa, da Cinemateca e de outros acervos relevantes tem a mesma motivação.

Estas ideias me ocorrem ao saber que os rabiscos, desenhos, maquetes e fotografias de Paulo Mendes da Rocha atravessarão o Atlântico rumo à Casa da Arquitectura, uma instituição portuguesa.

A obra deste arquiteto não me emociona particularmente. Não gosto de suas intervenções demasiado invasivas nos monumentos tombados nem de sua desatenção com a paisagem. Mas se trata da maior referência viva da moderna arquitetura brasileira. Sua influência, exercida a partir da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo é fora de questão. Paulo Mendes coleciona grandes prêmios, entre os quais o famoso Pritzker e o da Bienal de Veneza. Seu acervo documental é de importância equivalente aos de outros grandes brasileiros produtores do saber.

A decisão do arquiteto exprime seu instinto de defesa contra o arrojo na destruição da memória brasileira. O Brasil, de fato, nunca teve uma política séria de preservação de acervos históricos nos mais variados domínios da ciência e da arte. Inexiste uma cultura de preservação, há no máximo iniciativas pontuais e setoriais. É como se nossas instituições produtoras de conhecimento não tivessem do que se orgulhar e não tivessem importância para a sociedade.

Paulo Mendes está com 91 anos e sabe o que é repressão selvagem. Seus direitos políticos foram cassados durante a ditadura militar e sua atuação como professor da USP foi proibida. O envio de seu acervo para a Europa neste momento é um flagrante do processo em curso de asfixia da memória brasileira.

As vítimas do instinto destrutivo deste governo são incontáveis. Amazônia, povos originários, comunidade científica, diplomacia, defesa nacional… Os contaminados pela peste se destacam na listagem sinistra.

Mas, no conjunto da obra de torpedeamento da nacionalidade, não cabe esquecer o descaso com a memória de Paulo Mendes da Rocha, uma referência da arquitetura brasileira.

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC. Foi presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) e vice-presidente do CNPq.

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Bolsonarismo – entre o empreendedorismo e o autoritarismo
Por CARLOS OCKÉ: A ligação entre bolsonarismo e neoliberalismo tem laços profundos amarrados nessa figura mitológica do "poupador"
Fim do Qualis?
Por RENATO FRANCISCO DOS SANTOS PAULA: A não exigência de critérios de qualidade na editoria dos periódicos vai remeter pesquisadores, sem dó ou piedade, para um submundo perverso que já existe no meio acadêmico: o mundo da competição, agora subsidiado pela subjetividade mercantil
O marxismo neoliberal da USP
Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA: Fábio Mascaro Querido acaba de dar uma notável contribuição à história intelectual do Brasil ao publicar “Lugar periférico, ideias modernas”, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP
Carinhosamente sua
Por MARIAROSARIA FABRIS: Uma história que Pablo Larraín não contou no filme “Maria”
Distorções do grunge
Por HELCIO HERBERT NETO: O desamparo da vida em Seattle ia na direção oposta aos yuppies de Wall Street. E a desilusão não era uma performance vazia
Carlos Diegues (1940-2025)
Por VICTOR SANTOS VIGNERON: Considerações sobre a trajetória e vida de Cacá Diegues
Ideologias mobilizadoras
Por PERRY ANDERSON: Hoje ainda estamos em uma situação onde uma única ideologia dominante governa a maior parte do mundo. Resistência e dissidência estão longe de mortas, mas continuam a carecer de articulação sistemática e intransigente
O jogo claro/escuro de Ainda estou aqui
Por FLÁVIO AGUIAR: Considerações sobre o filme dirigido por Walter Salles
A força econômica da doença
Por RICARDO ABRAMOVAY: Parcela significativa do boom econômico norte-americano é gerada pela doença. E o que propaga e pereniza a doença é o empenho meticuloso em difundir em larga escala o vício
Maria José Lourenço (1945/2025)
Por VALERIO ARCARY: Na hora mais triste da vida, que é a hora do adeus, Zezé está sendo lembrada por muitos
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES