Por LÚCIO FLÁVIO RODRIGUES DE ALMEIDA*
É necessário e possível recuperar, em novos termos, o nacionalismo popular inerente a toda luta anti-imperialista
Beira o lugar-comum considerar a posição, no mínimo, desatentados círculos dirigentes das Forças Armadas frente à questão nacional como uma grande exceção em nossa História. Para alguns, ocorre uma verdadeira anomalia, pois atribuem à burocracia de Estado, principalmente ao ramo militar, fortes e permanentes tendências nacionalistas. A discussão é complexa e apenas teço algumas considerações sem qualquer pretensão à originalidade.
Formulações elaboradas em um plano mais abstrato se redefinem ao se embrenharem num cipoal de determinações. Se levarmos em conta a complexidade das formações sociais estatais nacionais inseridas de modo dependente em determinadas configurações do estágio imperialista, será preciso atentar para a variabilidade das disposições ideológicas das burocracias estatais.
Destruído o modo de produção escravista moderno, ex-escravos e descendentes se reinseriram nesta formação social como posseiros, dependentes, semiproletários, proletários, de tudo um pouco e, no máximo, membros da baixa classe média. Hoje, negros e negras constituem, segundo autodeclarações processadas pelo IBGE, a maioria da população brasileira. Várias questões nacionais se manifestaram ao longo da história republicana, mas esta, de dimensões gigantescas, tem sido a mais reprimida (além da indígena, que merece outra análise).
Por outro lado, o Exército brasileiro, fundado, juntamente com Marinha, em 1822, teve, desde seu processo de plena constituição, que passou pela Guerra do Paraguai e subsequente derrubada do Império Escravista, até, no mínimo, a transição para a chamada Nova República, foi um importante lócus de emergência de questões nacionais. É provável que isto tenha se arrefecido a partir da crise da ditadura, na passagem dos anos 1970 para a década seguinte. Passo a me referir brevemente às posições do ramo militar da burocracia estatal, especialmente o Exército, frente aos interesses nacionais em determinados momentos da chamada democracia populista (1945/6-1964) e da ditadura militar (1964-1985).
A partir da inauguração da primeira e muito restrita democracia de massa brasileira, se explicitou forte polarização entre duas correntes das FFAA. Uma defendia, em termos práticos, intenso alinhamento com os EUA, a nova grande potência que emergia ao se encerrar a Segunda Grande Guerra (1939-1945) e que encontrava fortes obstáculos à implementação de sua hegemonia. Ampliou-se a área de influência da URSS e, em 1949, triunfou a Revolução Socialista na China, com
imediato desdobramento no confronto militar com os EUA, a chamada Guerra da Coreia (1950-1953). No ano seguinte, a luta vietnamita, também dirigida por um partido comunista, derrotou o imperialismo francês, o que, tendo em vista a independência da Índia, em 1949, criou dificuldades ainda maiores para o controle “ocidental” do lado asiático da bacia do Pacífico. Este foi um aspecto do preocupante cenário do início da Guerra Fria.
No Brasil, um dos grupos militares defendia estreito alinhamento com os EUA. Em consonância com esta posição, foi criada, em 1949, a Escola Superior de Guerra (ESG), defendeu-se a exploração de petróleo por empresas de capital imperialista e se combateram políticas estatais que objetivamente favoreciam o processo de desenvolvimento capitalista industrial dependente no Brasil. Por outro lado, os nacionalistas defenderam que a exploração do petróleo fosse estatal, o que desencadeou uma extraordinária campanha popular; apoiaram a eleição de Vargas, em 1950; e se opuseram ao envio de tropas para lutarem na Guerra da Coreia.
Independentemente da frequência (em geral, pequena) com que militares da primeira corrente esgrimiam discursos desenvolvimentistas, isto até ocorreu. O problema eram os vínculos objetivos com interesses de classe contrários a esta política. Aliás, em contextos muito distintos, diversos elementos do discurso da direita na época, especialmente a denúncia da subversão e da corrupção, eram muito semelhantes aos esgrimidos pelo direitismo atual.
Ao longo dos 19 anos da democracia populista, dois governos foram capazes de, em diferentes contextos internos e externos, implementar políticas desenvolvimentistas, no que sofreram forte oposição, especialmente Vargas, da direita paisana e militar (o outro foi Juscelino Kubitschek). Esta, por sua vez, esteve no governo durante curtos períodos: após o suicídio de Vargas, no interregno Café Filho – Carlos Luz (agosto/1954-novembro/1955); durante o curto e desengonçado governo Jânio Quadros (janeiro-agosto/1961). A partir da posse de Goulart (setembro/1961), preparou o golpe de 1964 que desembocou na implantação da ditadura militar.
Durante a democracia populista, houve, sim, uma corrente militar defensora de forte vinculação do país com os EUA. Porém, muito raramente seus membros ocuparam postos de definição de políticas de Estado. Nestes, a presença de militares nacionalistas foi mais constante.
Durante o governo Goulart, o último do período e que foi derrubado pelo golpe de 1964, o nacionalismo deixou de ser disseminado principalmente por uma parte da burocracia estatal e de alguns partidos institucionais. Dele se apropriou o movimento popular em ascensão, que apresentava outra novidade: a participação de setores do campesinato. Ligas Camponesas mantinham relações com a Revolução Cubana e um brasilianista escreveu importante livro sobre as greves políticas na passagem da década de 1950 para os anos 1960, e todas, menos a primeira, foram realizadas durante o governo Goulart (1961-1964). Uma ótima tese de doutorado analisa a coleção de livros de bolso, Cadernos do Povo Brasileiro. Eram best-sellers populares, com títulos como O que são as Ligas Camponesas?, O que é a revolução brasileira? Quem faz as leis no Brasil? ou Por que os ricos não fazem greve?, este com cerca de 100 mil exemplares vendidos em um país de 70 milhões de habitantes e 40% de analfabetos entre os jovens e adultos. A presença das massas na vida política contribuiu, inclusive, para uma forte onda de renovação cultural no Brasil que, como disse um grande escritor, ficou “irreconhecivelmente inteligente”. As poucas pesquisas de opinião realizadas na época detectaram que, no Estado da Guanabara (atual cidade do Rio de Janeiro), o voto negro se dirigia majoritariamente para o PTB (nacional-desenvolvimentista) e bem menos para UDN (pró-imperialista). Mesmo assim, apesar de importantes iniciativas de lutas do povo negro e do extraordinário sucesso nacional (e, mais ainda, internacional) de Quatro de despejo, livro da Carolina Maria de Jesus, favelada e negra, predominava amplamente o “mito da democracia racial”. Há muito que pesquisar a respeito de como negros e negras se relacionavam com este aspecto da ideologia racista.
Durante a ditadura, com a total derrota do nacionalismo militar do período populista, ocorreram idas e vindas, até porque se encerraram as práticas de mobilização popular pelo pessoal do Estado. O primeiro governo desse regime foi estreitamente alinhado com os EUA, que, aliás, tiveram atuação destacada na deposição de Goulart. Houve militares nacionalistas de direita que não chegaram à Presidência. Houve ditador nacionalista (e fortemente antipopular) no plano interno e, no externo, alinhado com os EUA, inclusive ao acompanhar este país na derrotada tentativa de evitar o reconhecimento da República Popular da China (RPC) pela ONU. E houve ditador nacionalista e antipopular, historicamente vinculado à ESG, que, assessorado pelo mais destacado intelectual da mesma “Sorbonne”, estabeleceu relações diplomáticas com a mesma RPC e reconheceu a independência das colônias portuguesas na África, contrariando, mais uma vez, a forte miopia estadunidense. É provável que tenha sido um grande estrategista, inclusive ao apoiar discretamente o processo de transição (pelo alto) para o regime liberal-democrático (também restrito) que ora faz água. Como mesmo os ditadores não são onipotentes, a principal derrota do penúltimo governo desse regime adveio da oposição burguesa, que torpedeou, via “campanha contra a estatização”, o II Plano Nacional de Desenvolvimento, tentativa de aprofundar, em termos bem mais consistentes, a expansão capitalista no Brasil.
Hora de abrir a panela do nacional-popular
A excepcionalidade do atual governo, dirigido por “incompetentes” – e do que o antecedeu, um bando de “oportunistas” –não reside na presença de militares cujas práticas se vinculam estreitamente aos interesses da potência imperialista hegemônica. Consiste, sim, na sistemática implementação, nos âmbitos interno e externo, de profundas políticas antinacionais e antipopulares que tendem a se consolidar. O que sinaliza que existem questões bem mais pesadas do que os importantíssimos problemas institucionais.
Não se trata, aqui, de festejar a atual ausência – sabe-se lá por quanto tempo – de militares nacionalistas em um dos mais difíceis momentos vividos pelo país.
Creio ser necessário e possível recuperar, em novos termos, o nacionalismo popular inerente a toda luta anti-imperialista. É provável que ela clareie a necessidade de embates internos e externos indispensáveis a uma perspectiva de transformações sociais numa época em que o avanço da barbárie em escala planetária é cada vez maior.
Algumas frentes dessa luta se tornam visíveis. É o caso da defesa do meio-ambiente, cuja urgência é cada vez mais impositiva. E, aí, a posição dos “ricos investimentos estrangeiros” (ótimo eufemismo para capitais imperialistas) é mais parte do problema do que solução. De Mariana e Brumadinho à Amazônia em chamas; do ar irrespirável e rios mortos às imensas “comunidades” onde só não falta tudo porque sobra violência estatal e paraestatal, a luta ecológica é indissociável do combate anti-imperialista. Até por demonstrar que as diversas frações da classe dominante, as altas camadas médias e amplos contingentes do alto pessoal do Estado têm na opressão e na dominação internas farta compensação, não apenas econômica, mas também político-ideológica, pela inserção dependente desta formação social. No pesadelo do ministro, as empregadas domésticas em festa davam uma esticadinha na Disney.
Se estas questões são complexas, o que não dizer das que incendeiam o debate sobre o “identitarismo”?
Uma delas é se classe exclui identidade.
O racismo é constitutivo das relações de opressão e exploração, especialmente em um país como o Brasil, cuja burguesia é branca, grande parte da classe média também e o mesmo se passa na cúpula do aparelho estatal. Como foi sinalizado a partir das manifestações contra o assassinato de George Floyd, em Minneapolis, a luta contra a chamada supremacia branca se fortalece com a participação massiva também de brancos e brancas e por aí vai. Mesmo assim, quando a luta arrefece, as estruturas voltam a pesar.
Enquanto no Brasil não houver solidariedade efetiva de não negros (para ficarmos neste caso) contra todos os tipos de discriminação étnica, a começar pela chacina policial, o simples discurso não eliminará a distância abissal que afasta o povo negro da população branca, mesmo a antirracista. Esta distância é objetiva e faz com que as lutas contra o racismo sejam objetivamente escalonadas entre as diversas prioridades de quem não o sofre. Só um engajamento prático e constante, sob várias formas, nesta luta, de modo a inseri-la nos quadros de um combate ao capitalismo em seu estágio atual, pode dar consistência a um discurso teórico sobre raça e classe. Do contrário, no mesmo movimento em que a brancura objetivamente protege, o discurso se desloca.
Até porque repõe, em termos práticos, uma questão ideológica importante. A de que povo brasileiro é branco e precisa integrar o negro nesta sociedade. Negros e negras, identidades socialmente produzidas, constituem a parcela majoritária da população brasileira e estão muito integrados, desde a escravidão. E agora na condição de proletários e semiproletários, com destaque para semiescravas que atendem pelo nome de domésticas ou mesmo aqueles oprimidos pela nova escravidão que o capitalismo avançado produz. Nesse contexto, políticas de cotas são indispensáveis, não apenas para melhor inserirem negros e negras nesta sociedade que tende a intensificar a superexploração a níveis sem precedentes. Mas, em um sistema que produz e reproduz desigualdades, não há como transformar todo mundo em burguês. No máximo, empreendedor. Na ausência de organização e luta pela transformação social, o racismo se intensificará, a exemplo do que tem se alastrado em situações similares por boa parte do planeta.
Reintegrar negros e negras supõe a luta por uma sociedade na qual as próprias identidades étnicas se redefinam, o que exige, desde já, que, como parte de sua luta, negros e negras redefinam suas próprias identidades, inclusive com a reapropriação do passado, aqui e na África, na interação com as vivências de negritude em outros países “ocidentais”, na afirmação de valores, inclusive estético-corporais, e de novas sociabilidades. São práticas, vicejam em situações, implicam prioridades inclusive no uso do tempo. Tudo isso requer legitimação.
Até para se constituir em aspecto indispensável da questão nacional brasileira e, portanto, decisivo para a transformação social.
*Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida é professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.