Por CLARISSE GURGEL*
O que vai eleger, de novo, Lula, será a mesma conjunção trabalhosa do velho com o novo que lhe deu origem
Há os que acreditam que o curso do tempo vai do velho ao novo, em um progresso. Outros creem que o novo é um outro absoluto, totalmente diferente. Assim, alguns dizem que vivemos em novos tempos, em que tudo mudou radicalmente e em que as velhas formas não comportam as novas forças. Outros dizem que nada mudou.
O novo velho
Já na década de 1930, no Brasil, diziam que comunistas comiam criancinhas. Diziam que os comunistas, se no poder, tomariam os apartamentos dos cidadãos para distribuírem para os pobres. Diziam que os comunistas queriam transformar todos em miseráveis, sem liberdade individual. Não existia internet nessa época.
Hoje, dizem coisas semelhantes sobre os comunistas. Dizem até que o PT é comunista. Pelas redes e pelas ruas. Assim, as velhas formas de fake news fazem um Brasil antigo bastante atual.
No passado, havia compra de voto, troca de voto por tijolos, pipa d’água, lotes de terra. Hoje, essas práticas continuam, tornaram-se até regra do jogo, seguem pouco visíveis e pouco combatidas pelo Estado. Junto com elas estão as novas tecnologias de geração de consumo – do voto à geladeira – via algoritmo.
O problema não é a internet, propriamente. Mas a suposição de que ela substitui velhas formas. A internet é mediação imediata que não substitui a imediata mediação. Em outros termos, um Zap não substitui uma conversa, esta última derivada de velhas formas de convivência.
Antigamente, os partidos políticos que mais marcavam presença no cotidiano das pessoas, no trabalho de formação cultural, eram os da esquerda: PT, PDT, PCdoB.
Hoje, esses partidos pouco aparecem no cotidiano. Nem mesmo em campanha, vão a campo. Lula vai de norte a sul, mas seus dirigentes locais não montaram suas bancas, sua militância fragilizada não ocupa metodicamente as quadras urbanas. Há anos, esses mesmos partidos não realizam convenções democráticas, perderam a chamada “vida partidária”. Em campanha, não distribuem em massa adesivos de carro, não participam em peso dos comitês, não ajudam sequer a se construir, não panfletam diariamente, não militam em seus locais de trabalho, nem estão nas associações dos moradores.
A força tarefa desta reta final conta com iniciativas aguerridas de velhos militantes ou de uma vanguarda animada – MAB, MST, PSOL –, saudosos de um futuro. Alguns ainda dirão que todas essas formas são vãs, diante do poder dos algoritmos. Outros dirão que os partidos só querem influenciar os outros e que o melhor é ouvir um “influencer”.
Enquanto isso, o velho se renova pela direita, com partidos que se expandem, espalhando a fantasia de que é possível algo novo sob a mesma lógica: Novo, Republicanos.
O povo segue dando suas lições e traz de volta, sempre, sua necessidade de organização. Sem ela, o pobre não se sustenta. Em um mundo sem coração e de condições sem alma, a religião é o suspiro dessa criatura oprimida. A saída tem sido para igreja, essa forma medieval e super atual de associação.
Assim, os pobres buscam a mesma escola dos ricos, a da velha teologia da prosperidade, e se mantém fiéis a mantras pastorais. Logo ali está a polícia, que vai reassumindo sua velha forma de grupos de extermínio, com um nome novo, extraído das antigas milícias, produzindo armas com impressoras 3D, em nome do velho fascismo.
Ama-se como se compra. Compra-se como se vota
Neste esforço em busca por distinguir o velho e o novo, notamos que o que mudou com Lula foi o acesso ao consumo, da passagem de avião à universidade. Com isso, um velho elitismo retornou com força. Com ele, renovou-se um anti-comunismo, que, por sua velha ignorância, desconhece esse novo velho.
Mas o que se nota também de novo é a própria dimensão do consumo, que passa a pautar todas as relações sociais, desde as amorosas até as relações políticas. Dirão que o que falo já é velho, pois consumimos nossos parceiros amorosos desde o patriarcado.
Um filósofo francês, Alain Badiou, já aponta para a possível semelhança entre uma filiação amorosa e uma partidária. Mas o que propõe é o oposto do que testemunhamos. Alain Badiou nos indica o caráter de aposta destas filiações: escolhas sem garantias, entregas abnegadas. O que assistimos, no Brasil, é o contrário: o amor e a política perderam suas dimensões relacionais de liberdade e devoção, converteram-se em trocas mercantis instrumentais, em relações de oposição complementar entre valor de uso e valor de troca. Na politica e no amor, somos um povo endividado.
É esse Brasil que, sob-roupagem de uma democracia consolidada, elegeu o velho ditador Jair Bolsonaro. Um Brasil que segue velho, polarizado em classe, mas, agora, foi marcado pelos efeitos daquele novo consumo de massa, já antigo. Vota-se como se compra. Compra-se como se vota. Quantas dívidas essas eleições de 2022 nos deixarão?
O PT, ao contrário do que muitos dizem, enfraqueceu-se. Exigir coragem do eleitor é ignorar que não há retaguarda alguma partidária que sustente a ousadia de qualquer lulista. O prólogo da tragédia democrática no Brasil foi o fim da democracia interna no próprio PT. Seus grandes quadros não atentaram que um partido dos trabalhadores não se sustentaria por chefes ou patrões, nem poderia ser adereço de consumo. Ele se sustenta e sempre se sustentou com trabalho.
Que fazer, de novo?
Por isso, o que vai eleger, de novo, Lula, será a mesma conjunção trabalhosa do velho com o novo que lhe deu origem. O senso de que velhas formas podem assumir novos destinos. O desejo por participação política, mesmo sob as regras retrógradas existentes na saída de uma ditadura. Assim, nasceu o PT.
Peguemos nossas fichas de filiações, nossos registros de recrutamento, voltemos às sedes, às calçadas e praças, engrossemos fileiras nos comitês e mobilizemos nossos “internautas” para assuntos de compras de votos, daquelas mais velhas às mais algorítmicas. Renovemos nossa fé na prática política. Só isso nos salvará, venha o que vier.
Até o último segundo do segundo Ato, combinando o velho e o novo, façamos o tête a tête, busquemos o like, conquistemos votos, busquemos reunir.
Estamos em uma eleição que prova o que sempre tentamos provar: que a política é dotada de vários ritmos simultâneos, no tempo e no espaço. Ela é feita de eventos de multidão concentrada, mas também para multidões dispersas. É feita em um tempo curto, mas também por tempo longo, por um dia todo, por toda uma semana, por meses, anos, séculos. São várias ondas. Das velhas às mais novas.
Há ondas que são até de véspera. Vivemos em tempos de guerra, direta e indireta. Navegar é preciso, em velhas marés, em novos sentidos.
*Clarisse Gurgel é cientista política, professora da Faculdade de Ciências Sociais da UNIRIO.
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