Por VALERIO ARCARY*
Considerações acerca dos 30 anos de restauração capitalista
“O que significa dizer defesa “incondicional” da URSS? (…) Quer dizer que, independentemente do motivo (…) defendemos as bases sociais da URSS, se esta for ameaçada pelo imperialismo”. (Leon Trotsky)
Existiu um fio de continuidade entre o XXVII Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em fevereiro de 1986, quando Gorbatchev conquistou o apoio para a perestroika, e o fim da URSS, em dezembro de 1991, há trinta anos. Em cinco anos se precipitou o processo de restauração capitalista. Foi uma derrota histórica.
A restauração capitalista encerrou a etapa política aberta no fim da Segunda Guerra Mundial, mas não abriu uma nova época de prosperidade na história do capitalismo. Abriu-se uma nova etapa política porque mudou, radicalmente, em função da dissolução da URSS, a situação no sistema internacional de Estados. No entanto, o período que nos separa de 1991 já é um intervalo suficiente para sustentar a conclusão de que o capitalismo não está diante de décadas de prosperidade.
A ironia da história foi que, entre 1985 e 1991, Gorbatchev e Yeltsin rivalizaram escrevendo artigos e fazendo discursos em defesa do socialismo, para o consumo interno, enquanto negociavam com Reagan. Procuravam se credenciar nas alianças internacionais quem seria o mais capacitado para levar adiante a restauração, ao mesmo tempo que disputavam o apoio de frações da burocracia, um contra o outro.
A história sempre foi um campo de batalha das ideias. A distinção entre o que foi, historicamente, progressivo ou regressivo é o cerne da investigação do passado. Compreender na sequência, aparentemente, caótica dos acontecimentos, quais são aquelas mudanças que abriram caminho para um mundo menos desigual, e aquelas que preservaram injustiças, ou geraram novas iniquidades, deveria ser uma obrigação de qualquer análise séria. A honestidade intelectual mais elementar é posta à prova na hora de separar o que foi revolucionário do que foi reacionário. Mas é menos simples do que pode parecer.
Diante de grandes acontecimentos existe o duplo perigo teórico de subestimar o seu valor ou, ao contrário, sobredimensioná-los. O perigo político é ainda maior e consiste em ficar apaixonado ou zangado com a realidade, porque o desenlace dos acontecimentos não correspondeu às nossas esperanças, ou contrariou nossas preferências. O fim da URSS teve consequências imensas, e foi regressivo.
Existem acontecimentos que despertam imediatamente o assombro generalizado porque a força de impacto de sua importância é instantânea. Revoluções são majestosas porque a legitimidade da luta de milhões nas ruas é irrefutável. Revoluções são admiráveis porque de forma surpreendente, súbita, e rápida colocam em movimento grandes multidões, até então politicamente desinteressadas e, ao derrubar governos odiados, realizam façanhas insólitas que pareciam impossíveis. Revoluções são grandiosas porque subvertem a percepção de que os destinos coletivos escapam à vontade da maioria, e a espontaneidade das massas em luta é um terremoto social que introduz esperança na política. Revoluções despertam imediatamente a simpatia popular para além das fronteiras em que os combates pelo poder estão sendo travados, porque incendeiam a imaginação de outros povos de que é possível mudar o mundo.
Foi assim com o Maio de 1968 na França e a Primavera de Praga, a revolução portuguesa em 1975, a revolução sandinista e iraniana em 1979, a greve dos estaleiros de Gdansk, a queda de Baby Doc Duvalier no Haiti em 1986 ou a queda de De La Rua em Buenos Aires em 2001, a derrota do golpe contra Chávez na Venezuela em 2002, ou a deposição de Gonzalo de Losada na Bolívia em 2003. Contrarrevoluções podem ser igualmente imponentes, porque provocam o horror imediato: foi assim no Chile de Pinochet em 1973 ou na Argentina de Videla em 1976.
Há, por outro lado, processos cuja percepção é muitíssimo mais difícil, e o seu terrível significado só é apreendido anos depois. A explicação é simples, embora o problema seja complexo: tudo o que acontece pela primeira vez na história é mais difícil de compreender.
A restauração capitalista foi uma transformação econômico-social que estava colocando abaixo a propriedade estatal, o monopólio do comércio exterior e o planejamento estatal e reintroduzindo a propriedade privada, a relação direta das empresas com o mercado mundial e a regulação mercantil.
Trinta anos depois, ainda permanece instigante “a questão russa”, ou seja, a natureza do estalinismo. Sendo um fenômeno original, historicamente, a questão russa exigia uma nova elaboração, ainda que inspirada nas premissas teóricas legadas pelas gerações marxistas anteriores.
Trotsky admitia que a formação social existente na URSS era um híbrido histórico instável. definiu a URSS como um Estado controlado por uma casta socialmente privilegiada que só poderia se perpetuar pelo controle político monolítico, ou seja, uma ditadura – um regime político inferior, historicamente, à democracia-liberal dos Estados capitalistas nos países imperialistas – mas que se apoiava em relações econômico-sociais superiores ao capitalismo. Sendo um híbrido histórico inconsistente sua existência seria, necessariamente, transitória.
A existência de países onde a propriedade privada dos grandes meios de produção foi expropriada, ainda que os seus regimes políticos fossem aberrantes deformações burocráticas, significou uma evolução inesperada da história. Colocou a esquerda organizada diante de uma situação paradoxal, e o marxismo teórico diante de um desafio desconcertante.
Deveriam defender a natureza social dos Estados diante da pressão imperialista pela restauração capitalista. Deveriam defender as conquistas da revolução contra os diferentes movimentos das frações que surgiram do interior das castas burocráticas para eternizar seus privilégios sociais e seu controle político que, na longa duração, só seria possível com a restauração.
Deveriam, porém, ao mesmo tempo, apoiar as mobilizações dos trabalhadores e da juventude pelas liberdades democráticas, contra os regimes políticos de opressão, para reabrir o caminho para a democracia socialista e o retorno ao internacionalismo. Ou seja, uma defesa condicionada ao signo de classe do conflito. Algo muito mais complexo do que uma defesa incondicional ou uma oposição incondicional.
A oscilação do pêndulo foi sempre muito complexa nas mais variadas conjunturas provocando, nos seus extremos, inevitáveis desequilíbrios: estalinofilia nos defensistas mais esquemáticos, ou estalinofobia nos anti-defensistas mais dogmáticos.
Derrotas históricas nacionais, como foi a derrota do povo chileno diante de Pinochet em 1973, são processos que determinam o quadro geral da relação de forças pelo intervalo, pelo menos, de uma geração. Derrotas históricas em um país de importância decisiva como foi a ascensão de Hitler na Alemanha em 1933, com mais razão, podem deixar sequelas em uma escala mundial.
O fim da URSS e a restauração capitalista teve consequências históricas. Os apologistas do capitalismo não esperaram muito para proclamar sua vitória. A restauração do capitalismo seria a prova irrefutável da sua superioridade. O fim da URSS seria o fim do socialismo. O futuro seria o capitalismo. Essa conclusão repercutiu, também, nos meios acadêmicos e deixou a esquerda na defensiva. Abriu-se uma situação mundial reacionária.
Não obstante, a restauração confirmou que as relações econômico-sociais que existiam na URSS e no Leste Europeu eram superiores ao capitalismo, e não inferiores. Durante os anos noventa aconteceu na Rússia e, em maior ou menor medida, nos países da Europa Oriental uma regressão econômica-social e cultural que só pode ser comparada, historicamente, às sequelas de uma guerra de devastação.
Trinta anos depois do fim da URSS, a esquerda pode ir além da estalinofilia nostálgica e da estalinofobia paranoica.
*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de O encontro da revolução com a história (Xamã).