Num instante, a glória!

Imagem: Cottombro
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MANUEL DOMINGOS NETO*

Antônio Barra Torres, o novo herói dos democratas, integrou o consórcio que jogou o país na lama

Bela tacada, a do Almirante! Num lance, virou celebridade e herói da esquerda. Que importa haver ajudado a eleição do fascista? Nem vale lembrar que tenha subido sem máscaras em seu palanque no auge da epidemia! Ou ainda que esteja envolvido em trapalhadas que atrasaram a vacinação!

Ninguém ligou para o fato de o médico-marinheiro, sem credenciais, ter disputado e ganho seu lugar na agência que cuida vigilância sanitária. Na sabatina no Senado que aprovou seu nome, o candidato nada teve a dizer. Aliás, disse que adorava automobilismo e viagens às terras distantes.

Há um século a esquerda busca dissidentes militares. Na única tentativa de assalto ao poder, em 1935, confiou apenas na farda. Imaginou que bastaria a legenda heroica do Cavaleiro da Esperança. Na luta pelo petróleo, agarrava-se aos confrontos no Clube Militar. Generais direitistas foram mitificados por defenderem a autonomia energética, como se isso não fosse o básico do básico da defesa nacional.

Lott, reacionário de quatro costados, entrou para a história em letras grandes por, ironicamente, quebrar a legalidade para preservar a Constituição. (Volta e meia me perguntam se não pode surgir outro Lott). Durante a ditadura instaurada em 1964, a esquerda auscultava ansiosa as dissidências da caserna. Vibrou com os rompantes de Hugo Abreu. No sufoco, qualquer reacionário fardado serviria. João Goulart apostou exclusivamente em generais aclamados como sendo “do povo”.

Em 1978, Euler Bentes Monteiro quebrou o galho da oposição consentida. O homem fora protegido pelo violento Albuquerque Lima e pelo assassino Ernesto Geisel, que lhe deu a quarta estrela. Ao lado de Paulo Brossard, se apresentaria ao colégio eleitoral para ser derrotado por João Figueiredo. Com o golpe de 2016 em curso, congressistas de esquerda foram à tribuna para cumprimentar o general Villas Boas por seu aniversário.

Eis que surge, no ambiente de terra arrasada, na desesperante tristeza coletiva, um marinheiro-médico desafiando o presidente da República. Sua cartinha de impacto seguiu o molde consagrado por Benjamin Constant, o “fundador da República”: arguiu sua ascendência pobre, o selo de moralidade familiar, sua ascensão pelo mérito e defendeu seus subordinados institucionais. Falou grosso, demandando a retratação do fascista.

A consagração foi instantânea. A esquerda foi ao delírio. Outra tacada de efeito e o Almirante entrará na lista de candidatos à vice de Lula.

Com seus parceiros, o marinheiro-médico integrou o consórcio que jogou o país na lama. Agora, num beco sem saída, soma-se, glorificado às hostes democráticas. Reza a cartilha do golpismo de última geração: criemos o problema para que possamos apresentar a solução. Ponha-se o bode na sala para sacá-lo gloriosamente, quando e se for o caso.

Sabendo que Bolsonaro está destinado à lata de lixo, os golpistas buscam por todos os meios desvencilhar suas imagens do estropício. O marinheiro-médico deu sua contribuição neste sentido. Ninguém sequer perguntou se estava agindo em acordo com seus superiores hierárquicos. O Almirante atacou de policial bonzinho. É óbvio que ajuda a desmontar o mito fascista, além de contribuir com a melhoria da imagem da farda. É obvio também que ajuda a construir uma saída pela direita.

Precisamos de uma ampla frente para tirar o país do fosso, não de um arranjo pouco conspícuo para continuar negando-lhe um futuro promissor. Os democratas deste país precisam conter sua avidez por salvadores fardados.

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC/UFF, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) e ex-vice-presidente do CNPq.

 

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • Ainda estou aqui — habeas corpus de Rubens Paivacultura ainda estou aqui 2 12/11/2024 Por RICARDO EVANDRO S. MARTINS: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • A massificação do audiovisualcinema central 11/11/2024 Por MICHEL GOULART DA SILVA: O cinema é uma arte que possui uma base industrial, cujo desenvolvimento de produção e distribuição associa-se à dinâmica econômica internacional e sua expansão por meio das relações capitalistas
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • O veto à Venezuela nos BRICSMÁQUINAS FOTOGRÁFICAS 19/11/2024 Por GIOVANNI MESQUITA: Qual seria o maior desaforo ao imperialismo, colocar a Venezuela nos BRICS ou criar os BRICS?
  • Ainda estou aquicultura ainda estou aqui 09/11/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES