Por VINÍCIUS DUTRA*
Comentário sobre dois livros recém-traduzidos de Jacques Lacan: “Primeiros escritos” e “ A lógica do fantasma. Seminário 14”
Que a obra de Jacques Lacan continue a ser publicada em solo brasileiro, está longe de ser qualquer coisa. Isso indica como o pensamento lacaniano, muitas vezes acusado de forma injusta de simplesmente fornecer conceitos vazios, os quais ainda teriam o verniz desgastado de um hermetismo barato, guarda toda a sua importância ainda hoje, mais de quarenta anos depois de sua morte.
A compilação dos textos iniciais de Jacques Lacan em Primeiros escritos, quando se vinculava à sua atividade como psiquiatra, e as transcrições de suas exposições ao longo do décimo quarto seminário, intitulado A lógica do fantasma, permitem agora, a um público mais amplo, acompanhar a atitude efervescente de um psicanalista que tentou explicitar a subversão do próprio horizonte freudiano.
Jacques Lacan foi um analista inquieto, atento ao reconhecimento de que um conceito, por mais elaborado que seja, precisa levar em consideração a situação na qual ele mesmo é produzido. Devido a isso, a sua fala em seus seminários se tornava o espaço destinado a uma dialética na qual as noções psicanalíticas eram reviradas com o passar do tempo, sem serem abandonadas.
Mesmo na época em que redigia a sua tese em psiquiatria sobre a paranoia, defendida em 1932, Jacques Lacan já se aproximava do vocabulário psicanalítico, ainda que por digressões marginais. Primeiros escritos é um testemunho disso. A antologia fornece agora uma seleção de textos lacanianos publicados entre 1928 e 1935. É acertada a inserção, no final desta coletânea, da tradução francesa, realizada por Jacques Lacan em 1932, de um ensaio de Sigmund Freud cujas considerações sobre as diferentes tonalidades dos ciúmes alcançam a paranoia.
Além de mostrar como Jacques Lacan subscrevia a terminologia freudiana mobilizada na época (ao aceitar traduzir “Trieb”, isto é, pulsão, por instinto), também permite identificarmos como o seu interesse pela psicose perpassou a sua trajetória intelectual. A sua interrogação da escrita psicótica, já em 1931, vista por Jacques Lacan, com a ajuda do surrealismo, como “uma atividade de jogo”, ecoará na sua interpretação, elaborada na década de 1970, sobre a literatura de James Joyce.
A dimensão do jogo reaparece ali, sobretudo por meio da explicitação lacaniana dos recursos singulares aos neologismos inventados pelo escritor irlandês. Reiterar esse aspecto colaboraria para se suspeitar da tentativa corrente de querer classificar a obra de Jacques Lacan em partes estanques, sem elo algum. Seria preciso ousar dizer que o primeiro Lacan ressoa em seu pensamento tardio, sendo precisa a inversão disso: o último Lacan é também o primeiro.
O percurso de Jacques Lacan na psicanálise foi marcado por divergências teóricas e rupturas institucionais. Mesmo assim, ele consolidou um ensino robusto através dos seminários que ministrou a partir da década de 1950. “A lógica do fantasma” é um deles. Realizado entre novembro de 1966 e junho de 1967, o seminário começa permeado por um acontecimento de grande ressonância. Novembro de 1966 marca um período crucial para o trabalho intelectual de Jacques Lacan: seus ensaios, escritos entre 1936 e 1966, e compilados pelo prestigioso editor Jean Wahl, são publicados pela Editora Seuil com um título simples e forte, de uma única palavra: Escritos.
É um momento sem precedentes para Jacques Lacan, no qual os seus conceitos começarão a ficar conhecidos para além daqueles ouvintes que o acompanhavam, geralmente com maior inclinação à clínica. Não é por acaso que os encontros transcritos em A lógica do fantasma são largamente assombrados pelo retorno insistente, ao longo do desdobramento da exposição, dos seus próprios ensaios aglutinados nos Escritos. Eles teimam em ressurgir, como se fosse preciso se referir à escrita do passado para dar conta do seu pensamento no presente.
Por mais que a reflexão de Jacques Lacan tenha mudado ao longo do tempo, e seria crucial levar em conta tais inflexões, isso não quer simplesmente dizer que um certo fio condutor não perpasse a sua experiência teórica. Tal fio é inclusive indicado pelo próprio Jacques Lacan em A lógica do fantasma, quando faz o gesto de salientar que seus ensaios de épocas tão distintas poderiam ser lidos a partir da questão do sujeito. Cabe lembrar que Jacques Lacan foi aquele que partiu da seguinte pergunta: como pensar a categoria de sujeito depois da emergência da “mensagem freudiana”?
Ao empregar esta locução, ele se referia a nada menos que o descentramento promovido pelo inconsciente ao longo da procura do sujeito em querer ser consciente de seus pensamentos, de seus atos, de seus desejos. Em suma, em querer ser consciente de si mesmo. O problema é que, a todo instante, algo lhe escapa, e “isso” que o ultrapassa é o que o leva a não ser senhor na sua própria casa, para usar uma frase magistral de Sigmund Freud.
Diante disso, alguns poderiam facilmente se inclinar a imaginar que a psicanálise é o terreno movediço das profundezas do irracional, pois não é ela mesma uma clínica a qual lida com uma zona psicológica obscura, com o que não se consegue abarcar direito a partir do prisma da razão? Somos levados a dizer que há verdade nessa intuição. Contudo, é preciso reconhecer que a obra de Jacques Lacan foi a luta obstinada em defender, a partir dos recursos teóricos que lhe eram contemporâneos, que o inconsciente respeita uma lógica, qualificada por ele de lógica freudiana.
Sem entrar aqui em todos os meandros necessários para explicar tal teoria, vamos nos concentrar na noção central deste seminário: “fantasma”. Expressão lacaniana polivalente, fantasma indica, entre outras coisas, uma cena subjetiva a partir da qual conseguimos contar a nossa história, na qual estamos inclusive posicionados de uma forma específica em relação aos outros. Fantasma não se desvincula inteiramente das nossas fantasias sexuais mais íntimas, mas aponta para como elas organizam um ponto a partir do qual desejamos ver a realidade. Por mais inusitado que pareça, “desejo” e “realidade” não são termos antagônicos para a psicanálise lacaniana. Eles tendem a conviver um com o outro, a ponto de Jacques Lacan brincar que, para nós desejarmos alguém, é preciso que essa alteridade possa “vestir a roupa” de nossas fantasias, isto é, possa entrar dentro da lógica de nosso fantasma.
Para começar a esboçar as notações de tal lógica, Jacques Lacan recorre a reflexões oriundas do campo da matemática, o que leva A lógica do fantasma a ser permeada de lições ásperas e de difícil assimilação, especialmente para aqueles sem embasamento em metamatemática. Intrigante notar que, mesmo quando Lacan aprofunda sua inclinação a ideias provindas do pensamento analítico, como o paradoxo de Bertrand Russell, a filosofia que serviu de base para o jovem Lacan se manifesta a cada passo dado em sua exposição.
Os seus fantasmas intelectuais, que um dia tornaram possível seu horizonte especulativo, ainda continuam a reivindicar um lugar em seu ensino. Assim, enquanto tece comentários sobre a dialética hegeliana, também não deixa de existir uma consideração crítica pelo projeto de Martin Heidegger. De fato, Jacques Lacan não pode abandonar por completo a pulsação que o abalo do pensamento heideggeriano produziu em contexto francês. Sem dúvida, ele também não aposta no retorno de Heidegger a uma questão “mais originária do ser”, isto é, a um pensamento anterior à sistematização feita pela filosofia grega clássica (leia-se Platão e Aristóteles).
Jacques Lacan não acata esse regresso heideggeriano por uma série de razões, entre elas porque não acha que seja possível de ser realizado sem maiores dificuldades. O que não quer dizer então que Lacan aceita os significados dos termos consolidados na aurora da modernidade, que Martin Heidegger quer, a todo custo, afastar-se, pois são a culminação maior do “esquecimento do ser”. O ímpeto lacaniano mais próximo a Heidegger permanece exatamente aqui, intacto. Surge com força quando o psicanalista francês se entrega a uma discussão sobre a ciência em configuração moderna.
Alguns poderiam supor que Jacques Lacan subscreve o saber e o domínio dessa mesma ciência. Mas o que ocorre é algo muito diferente: ele percorre com cuidado os vestígios daquilo que é rejeitado por ela. Nesse sentido, poderíamos compreender a psicanálise como uma clínica a qual escuta a violência dessa exclusão. A experiência analítica seria então o espaço destinado àquilo que jamais poderá ser absorvido de maneira completa pelo método científico. Que o que seja excluído por esse mesmo método tenha relação com o sujeito, dá o que pensar… Entretanto, o que é isso, o sujeito?
Uma das passagens mais belas de A lógica do fantasma trata justamente desse ponto. Jacques Lacan retoma uma parábola conhecida do taoista Chuang-Tsé para lhe dar uma interpretação original. O caso gira em torno de um sonho peculiar do sábio chinês. Durante o trabalho onírico, ele está transmutado na forma de uma borboleta. Coisa curiosa essa, sonhar em ser uma borboleta. Não é preciso nem dizer que a consciência logo lhe atesta que “isso é apenas um sonho”, como se pudesse então tranquilizá-lo diante de um impasse a respeito de sua própria identidade.
Essa historieta é passível de ser explicada de muitas maneiras, mas a que importa aqui é a seguinte: por que aparece no sonho aquilo que é amplamente excluído do uso habitual da linguagem? Afinal de contas, se alguém sair na rua dizendo em alto e bom tom “Eu sou uma borboleta”, o que vai acontecer é essa mesma pessoa ser enquadrada como “louca”. Será atestada assim uma perda significativa do uso adequado da razão. É impossível enunciar uma afirmação dessa natureza no interior de um quadro intersubjetivo, pois ela desregula o modo correto de relatar a si mesmo, dadas as determinações atuais. Essa quebra aponta que há algo em nós que não se adapta ao regime de existência de nosso próprio tempo.
A psicanálise nada mais é que a guardiã do que não pode ser socialmente exprimido devido às condições atrofiadas da forma de vida hegemônica. Sujeito, sob matriz lacaniana, é então aquilo que almeja, para usar a borboleta como metáfora, realizar um voo em direção a uma linguagem libertada das amarras do existente.
Nunca é demais acentuar que os seminários de Jacques Lacan editados por Jacques-Alain Miller têm um impasse lembrado com frequência: Miller, o genro encarregado de publicar post mortem a obra lacaniana, realiza um trabalho editorial não isento de questionamentos. A crítica geralmente recai sobre a sua “política da pontuação”, que é acusada de infiltrar a sua leitura particular da teoria de Lacan. No entanto, não podemos esquecer que A lógica do fantasma é a transcrição de uma fala, o que inevitavelmente impõe certas escolhas em detrimento de outras. Jacques Lacan foi alguém aberto à polissemia da linguagem, o que dificulta ainda mais identificar com qual sentido está jogando em determinada parte da exposição de suas ideias.
Embora essa “política da pontuação” realmente exista, não significa que não se possa encontrar fontes alternativas sobre a obra de Jacques Lacan, as quais transcrevem seus seminários de maneira distinta. A edição publicada pelo selo Zahar se soma a essas edições que já estão em circulação.
Se A lógica do fantasma se iniciava com um marco para Jacques Lacan via a publicação de seus Escritos, o seminário também já pressentia o mal-estar que se alastrava pela França. Greves começavam a assombrar o contexto no qual o seu ensino ocorria, desde paralisações estudantis no final de 1966 até uma greve geral de trabalhadores em maio de 1967. Esses episódios, que inclusive interrompiam os encontros de “A lógica do fantasma”, eram bem mais que simples greves pontuais: tratava-se, na verdade, de um prelúdio para a irrupção que se avizinhava. Parafraseando Marx e Engels, “Um fantasma ronda a Europa”, espectro que questionaria diversos costumes e entraria para a história batizado de Maio de 1968.
Ora, não poderia passar despercebido que a reflexão lacaniana se situasse entre esses eventos. Eis que resta uma pergunta para a posteridade: fomos capazes de absorver a animação que motivou tal reviravolta dos modos de vida? Se quisermos ser fieis à subversão de Jacques Lacan, esse dilema não deve ser respondido de forma fácil. Corremos o alto risco de transformar o seu pensamento em um jargão generalizado, bem próprio de uma época como a nossa, marcada pelo fim de qualquer possibilidade de pensar.
Certa vez, um crítico de Lacan, o filósofo franco-argelino Jacques Derrida, teve a coragem de reconhecer que o horizonte lacaniano guardava em si um futuro e uma promessa. O que ainda não sabemos direito é como desvelar esse futuro e concretizar essa promessa a ponto de estar à altura do acontecimento a que o nome Jacques Lacan se refere cada vez que é enunciado.
*Vinícius Dutra é psicanalista e doutorando em filosofia na Universidade de São Paulo (USP).
Publicado originalmente no jornal Correio do Povo em 30 de novembro de 2024.
Referências
Jacques Lacan. Primeiros escritos. Tradução: Vera Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro, Zahar, 2024, 168 págs. [https://amzn.to/40dwnAA]
Jacques Lacan. A lógica do fantasma. Seminário 14. Tradução: Teresinha N. Meirelles do Prado, Rio de Janeiro, Zahar, 2024, 384 págs. [https://amzn.to/49XqmLJ]
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