O Brasil privatizado

Imagem: Carlos Cruz-Diez
image_pdf

Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*

Comentário sobre o livro de Aloysio Biondi

Este livrinho constitui um fenômeno editorial, e dá o que pensar. Segundo a editora, Fundação Perseu Abramo, do Partido dos Trabalhadores, já vendeu 110 mil exemplares, o que o torna campeão na difícil categoria que é o ensaio. Lançado em abril de 1999, já estava em 5ª reimpressão no mês de agosto.

No entanto, não figura em nenhuma lista dos mais vendidos no país. As explicações são variadas. Uma das listas se baseia exclusivamente nas vendas das livrarias, não incluindo mala direta ou reembolso. Outra consulta por telefone leitores selecionados por sorteio ao acaso. E assim por diante. A metodologia é sempre impecável, entretanto o resultado, como se vê, é discutível, podendo até esconder um campeão.

A editora mal completa dois anos. Forma, portanto, entre as várias pequenas editoras que surgiram na década, o que, a par da proliferação de revistas culturais, constitui novidade que deve ser saudada. O êxito deste volume levou a Fundação a anunciar toda uma coleção de temas candentes.

No presente caso, todavia, o estouro na parada de sucessos deve ter algo a ver, para lá do preço e do tamanho, com o assunto do livro, assim formulado: “Compre você também uma empresa pública, um banco, uma ferrovia, uma rodovia, um porto etc. O governo vende baratíssimo. Ou pode até doar”.

A curiosidade do leitor é espicaçada pelo subtítulo “Um balanço do desmonte do Estado” e pelo prestígio do autor, provado em outras lutas do jornalismo econômico investigativo. O texto, vivaz e direto, alheio ao jargão cifrado do economês, põe-se ao alcance de qualquer leigo, como quem subscreve estas linhas.

O movimento geral das privatizações pôs em prática as ordens do FMI e do Banco Mundial, que comandam o processo e fornecem a receita. O livro começa pela análise da lavagem cerebral da opinião pública, que uma mídia amestrada orquestra a partir dos comunicados oficiais, prometendo eficiência e tarifas mais baixas. Enquanto isso, os contratos garantiam ao comprador o direito de aumentos anuais, com base na inflação. Isso, quando as tarifas já tinham sido vertiginosamente aumentadas – reajustes de até 500% nas contas de telefone a partir do fim de 1995, por exemplo, e de 150% nas de energia elétrica – para tornar a empresa mais atraente para o comprador. Prejudicados foram os pobres, para quem as baixas tarifas funcionavam como uma incipiente redistribuição de renda. E quanto à eficiência, nem é bom falar.

A essas medidas somou-se o acúmulo de demissões, dando ao comprador uma folha de pagamentos aliviada. Para vender a Fepasa, sua ferrovia, o estado de São Paulo despediu 10 mil funcionários e ficou com o ônus de sustentar 50 mil aposentados. Entregar a empresa, mas responsabilizar-se pela dívida foi outro recurso generalizado. O mesmo estado vendeu a siderúrgica Cosipa por 300 milhões de reais e absorveu as dívidas de 1,5 bilhão de reais.

Ainda outra constante é saldar em “moeda podre”, como se sabe. Ou seja, o comprador, em vez de entrar com dinheiro, paga com título antigos do governo, adquirindo-os por até 50% do seu valor. Dessa maneira, a Companhia Siderúrgica Nacional de Volta Redonda foi vendida por 1,05 bilhão de reais, dos quais 1,01 em “moeda podre”, quase nada em dinheiro, portanto.

No caso de uma empresa riquíssima e que dava altos lucros, como a Vale do Rio Doce, o comprador ainda ficou com o direito sobre o dinheiro em caixa – porque havia, e muito, nessas empresas que, segundo o vendedor, eram insolventes e só davam prejuízo – num total de 700 milhões de reais. E não foi só a Vale do Rio Doce, também a Telesp, ao ser vendida, tinha 1 bilhão em caixa, que foi para o bolso da Telefonica espanhola. Vendida por 2,2 bilhões de reais, o truque reduziu o preço a quase metade.

Visando a desfazer-se das empresas, o governo dedicou-se a modernizá-las, investindo 4,7 bilhões de reais na Açominas e 1,9 bilhão em Volta Redonda, entre outras. A campeoníssima foi a Telebrás, que recebeu em dois anos e meio 21 bilhões de reais de dinheiro público – contemporâneos aos cortes nos gastos com saúde, educação, verbas para o Nordeste, etc.

Consequência: agravamento da recessão e rombo nas contas, com o comprador importando o que precisa e exportando lucros. Fábricas fecham, o desemprego acelera, as matérias-primas locais se desperdiçam. O livro traz, para completar, minuciosas tabelas que examinam caso por caso, dando o preço em dólares e a maneira como a transação (não) foi paga.

Afinal, quanto os cidadãos abriram os olhos, tinham perdido um vasto patrimônio e os serviços que dele advinham. Mas em compensação ganharam um bom aumento da dívida, que são obrigados a pagar.

*Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Senac\Ouro sobre Azul).

Publicado originalmente no jornal Folha de São Paulo, em 3.10.1999.

 

Referência


Aloysio Biondi. O Brasil privatizado – um balanço do desmonte do Estado. São Paulo Fundação Perseu Abramo, 1999, 48 págs.

O pdf pode ser baixado gratuitamente em https://fpabramo.org.br/publicacoes/estante/brasil-privatizado-o-um-balanco-do-desmonte-do-estado/

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
4
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
7
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
8
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
9
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
10
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
11
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
12
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
13
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
14
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
15
O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES