O cerco a Márcio Pochmann

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por SANDRA BITENCOURT*

O jornalismo econômico da mídia padrão faz parecer que determinados dogmas são inapeláveis

Na disciplina de jornalismo especializado – ênfase em economia – que ministrei por alguns anos, começava a delinear conceitualmente a função do jornalismo econômico de um modo bem simples. Essa função seria de fornecer às pessoas informações que as tornem capazes de aproveitar as oportunidades e fazer escolhas disponíveis no dia a dia, auxiliando na busca de bem-estar.

Em muitos aspectos, o jornalismo como um todo, e não apenas o econômico, trata de ofertar informações e interpretações que permitam a tomada de decisão, desde as mais triviais como escolher o melhor trajeto no trânsito, levar ou não o guarda-chuvas, até as mais cotidianas como o momento para acessar o financiamento da casa própria, comparar os preços dos alimentos, ou as mais complexas, como optar por um projeto político, lutar por determinada política pública, posicionar-se nos rumos de sua cidade ou investir em bens e oportunidades econômicas.

O fato, é que cabe ao jornalismo narrar fatos, investigar, checar, comparar, selecionar, hierarquizar e editar informações, acompanhar acontecimentos, ouvir fontes diversas e cotejar posições. O que muitos chamariam de busca da verdade factual. Em síntese: o jornalismo trabalha com fatos. Esmiuça, compreende, mostra distintas abordagens e variadas fontes para oferecer todos os lados ao público. Mesmo as opiniões, cujo espaço de interpretação é legítimo nas coberturas jornalísticas, precisam ser sustentadas em… fatos! Nunca em meros sentimentos, sensações ou premonições. Fatos. Vamos a eles.

Márcio Pochmann foi anunciado para presidir o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o que gerou imediato repúdio de boa parte do jornalismo econômico da mídia corporativa. Rapidamente foram questionadas sua capacidade técnica e sua idoneidade para o exercício de cargo público em instituição tão relevante. As acusações foram na direção de sua formação teórica (acusado de ideológico), da sua atuação acadêmica (vilipendiada por sua ênfase crítica a determinadas correntes do pensamento econômico) e da sua gestão a frente de outras entidades (foi chamado de intervencionista).

Ocorre que objetivamente (os fatos, eles novamente), Márcio Pochmann tem capacidade técnica e atuação acadêmica inquestionáveis, já testado por seus pares e com grandes contribuições ao pensamento econômico. Tanto é verdade, que as instituições de ensino onde se formou e forma emitiram notas de apoio. A Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS, onde fez sua graduação, e a Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp, onde o economista é professor manifestaram indignação com a tentativa de ferir a tradição de pluralidade teórica, metodológica, epistemológica e ontológica dentro da área de economia.

O público teve informações suficientes para tomar posição e saber o que esperar do economista? Não. Os questionamentos jornalísticos não passaram de insulto, calúnia e difamação. Por quê? Primeiro, porque o rótulo de ideológico não se aplica igualmente na cartilha da mídia corporativa ao pensamento econômico ortodoxo. Ou alguém viu em algum momento Paulo Guedes ser taxado de ideológico? Pelo contrário. Era feita a distinção entre um governo ideológico e outro técnico – que pertenceria ao milionário ministro – até para justificar a conivência e tolerância da mídia com um governo criminoso em todos os níveis.

Segundo, porque as acusações gravíssimas de possível manipulação de indicadores não se fundam em nenhum fato. Nunca Márcio Pochmann foi acusado de violar dados ou manipular evidências científicas. Comentaristas apontaram dois exemplos para justificar o grave ataque à reputação do economista. O primeiro é a gestão de Márcio Pochmann na frente do IPEA, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (2007 a 2012). Houve alguma denúncia de manipulação de dados? Não. Nunca.

O argumento é que ele demitiu especialistas e se cercou de quem tinha um pensamento alinhado à tradição econômica que ele defende. O segundo exemplo, pasmem, vem da Argentina. Situações ocorridas nos governos Kirchner no órgão de pesquisa daquele país poderiam ser um alerta do estrago que Márcio Pochmann potencialmente poderia fazer por aqui.

A reação às acusações vinda de instituições sérias fez o valente jornalismo apostar então na intriga. Seria intolerável que o anúncio não tivesse sido feito pela ministra do Planejamento e sim pela área de Comunicação do governo. Um detalhe que talvez peque pela gentileza com a titular da pasta, mas que não é capaz de interditar o nome do economista para o exercício de função para a qual está absolutamente habilitado.

A rigor, o jornalismo econômico costuma ser em grande medida a voz do tal mercado. Aquele que define tanto e tantas coisas, mas que não sabemos exatamente o que ou quem é. Não se trata do sistema de trocas que inclui um conjunto de transações e permite a produção e distribuição de riqueza. É o mercado com temperamento. Que tem temperaturas e alergias a tudo que passe perto de igualdade ou distribuição.

Vale nos socorrermos de um dos grandes estudiosos do jornalismo econômico. Bernardo Kucinski nos alerta que a economia é um sistema complexo, repleto de contradições e paradoxos. Ele aponta três paradoxos que marcam a economia brasileira: o contraste entre abundância e indigência; a falta de uma moeda forte e a incapacidade de acumular capitais necessários a uma industrialização autossustentada. Esses três paradoxos, prossegue Bernardo Kucinski, contribuem para a disfunção do jornalismo econômico, associados a outros elementos: a dificuldade de compreensão já que os processos econômicos se definem em outro plano do saber convencional, além é claro da captura ideológica e da baixa formação de jornalistas- e leitores- por diversos obstáculos.

No Brasil, são raras as publicações voltadas à macroeconomia e à economia política. O senso comum, por seu turno, ignora o saber das teorias econômicas e desconhece que determinadas posições e fórmulas propostas derivam basicamente de uma visão teórica que pode ser debatida com outras tantas. “Um dos problemas centrais do jornalista dedicado à economia é a precariedade das teorias econômicas, divididas em grande número de escolas, cada qual com seus axiomas, manejados como instrumentos de persuasão” nos diz Bernardo Kucinsky (1996). Jornalistas que se movem nesse cenário e desconhecem ou são orientados a ignorar essas relações econômicas “tendem a fazer ilações simplistas e tirar conclusões sem fundamento nos fatos ou na razão”.

Bernardo Kucinski vai além ao observar como se dá o debate econômico, com uso abusivo de falácias, argumentos com premissas aparentemente corretas, mas cujas conclusões são falsas. Tanto economistas quanto jornalistas formulam leis gerais e relações de causalidade com base em observações singulares.

Essas características permitem a produção de falsos consensos e a fetichização de determinados fundamentos, ainda que o resultado produzido seja a miséria e o aniquilamento das funções públicas capazes de dotar o Estado com ferramentas para a produção de certa igualdade e distribuição.

Detectar discursos ideológicos, filtrar ou contestar afirmações dogmáticas, sofismas e falácias é tarefa árdua para o público leitor e missão recusada pela mídia. Esta só acusa de ideológico o que contraria determinados dogmas da cartilha liberal que as elites tão habilmente fazem parecer ciência.

Normalmente a coisa é mais sofisticada. Ou seja, o jornalismo econômico da mídia padrão faz parecer que determinados dogmas são inapeláveis. A figura elaborada, capaz -técnica e politicamente- como o economista Márcio Pochmann exigiu deixar sutilezas de lado. Melhor a intriga e o insulto. E o medo. Sempre ele, acionado para fazer crer que mudar é uma ameaça.

Dois públicos distintos são destinatários do jornalismo econômico e cada um tem códigos próprios para se comunicar. Os especialistas, grandes empresários, financistas e profissionais do mercado leem e compreendem de outro modo determinados embates. O grande público e os pequenos comerciantes estão permanentemente agredidos pela linguagem excessivamente técnica e de difícil explicação. Dizer apenas que o sujeito vai mentir e manipular atende um. Mas também atende o outro.

Uma agência de alta credibilidade como o IBGE é realmente um perigo se estiver nas mãos de quem mostra outras verdades sobre motivações ideológicas, interesses midiáticos e necessidades econômicas.

*Sandra Bitencourt é jornalista, doutora em comunicação e informação pela UFRGS, diretora de comunicação do Instituto Novos Paradigmas (INP).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A Terceira Guerra Mundialmíssel atacms 26/11/2024 Por RUBEN BAUER NAVEIRA: A Rússia irá retaliar o uso de mísseis sofisticados da OTAN contra seu território, e os americanos não têm dúvidas quanto a isso
  • A Europa prepara-se para a guerraguerra trincheira 27/11/2024 Por FLÁVIO AGUIAR: Sempre que a Europa preparou-se para guerra, ela acabou acontecendo, com as consequências trágicas que conhecemos
  • Os caminhos do bolsonarismocéu 28/11/2024 Por RONALDO TAMBERLINI PAGOTTO: O protagonismo do Judiciário esvazia as ruas. A força da extrema direita tem apoio internacional, recursos abundantes e canais de comunicação de grande impacto
  • O acontecimento da literaturacultura equívoco 26/11/2024 Por TERRY EAGLETON: Prefácio do livro recém editado
  • Os espectros da filosofia russaBurlarki cultura 23/11/2024 Por ARI MARCELO SOLON: Considerações sobre o livro “Alexandre Kojève and the Specters of Russian Philosophy”, de Trevor Wilson
  • Aziz Ab’SaberOlgaria Matos 2024 29/11/2024 Por OLGÁRIA MATOS: Palestra no seminário em homenagem ao centenário do geocientista
  • Não existe alternativa?lâmpadas 23/06/2023 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
  • O premiado Ainda estou aquicultura ainda estou aqui ii 27/11/2024 Por JULIO CESAR TELES: Não é apenas um filme que soube usar recursos visuais, fontes de época ou retratar um momento traumático da história brasileira; é um filme necessário, que assume a função de memória e resistência
  • Não é a economia, estúpidoPaulo Capel Narvai 30/11/2024 Por PAULO CAPEL NARVAI: Nessa “festa da faca” de cortar e cortar sempre mais, e mais fundo, não bastaria algo como uns R$ 100 bilhões ou R$ 150 bilhões. Não bastaria, pois ao mercado nunca basta
  • Guerra na Ucrânia — a escada da escaladaANDREW KORYBKO 26/11/2024 Por ANDREW KORYBKO: Putin viu-se confrontado com a opção de escalar ou de continuar sua política de paciência estratégica, e escolheu a primeira opção

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES