O crocodilo

Anthony Benjamin, Elemento, 1959,1999
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Por ALEXANDRE L. C. TRANJAN & DANIELE PIN CORRÊA

Comentário sobre a peça teatral encenada pela Cia. Estrela D’Alva

Fundada em 2005 pelo diretor Marcelo Gianini e pela atriz Lígia Helena na cidade de Santo André, a Cia. Estrela D’Alva profissionalizou o Teatro Singular, grupo estudantil formado em 1989. Trata-se de um coletivo que possui adaptações de obras literárias clássicas nacionais e internacionais, para diversos contextos de encenação, como o das mudanças políticas e econômicas do Brasil a partir de 2016.

O grupo apresenta interpretações de A Hora da Estrela (2005), de Clarice Lispector, Alberto Caeiro – Ele mesmo (2007), do heterônimo de Fernando Pessoa, Hamlet S.A. (2009), de Shakespeare e Heiner Müller, o infantil, A Incrível Batalha pelo Tesouro de Laduê (2010), dentre outras obras. Levam suas peças para o perímetro metropolitano, além de sete cidades do Estado, contemplados pelo PROAC de Apoio à Circulação de Espetáculos de Teatro e de Apoio às Artes Integradas.

Desde 2018, possuem um projeto pedagógico Escola Itinerante de Teatro em escolas públicas. Entre 23 de setembro e 14 de outubro, a Companhia apresentou na região metropolitana de São Paulo a peça O crocodilo, baseada em conto homônimo de Dostoiévski. De montagem simples e com apenas 2 atores em cena, a peça apresentada pela Cia. Estrela D’Alva de Teatro, fornece uma releitura atual, autêntica e madura do autor russo. Dela podemos extrair algumas contribuições para o pensamento crítico da sociabilidade capitalista.

Uma miríade de interpretações e sentidos pode ser desenvolvida a partir do plano simbólico com que O Crocodilo dialoga. Na peça fica evidente a crítica da ética capitalista traçada por Dostoiévski, interpretação esta corroborada pelo conteúdo das Notas de Inverno que seguem a edição do conto fantástico em questão. Quando uma vida humana é tragada pela boca do réptil, a preocupação das personagens é qualquer outra que não a de salvar o pobre Ivan Matviéitch. O protagonista se interessa pela esposa do devorado; os alemães – cujo sotaque foi sabiamente adaptado para o de um estadunidense, revelando a transição da dinâmica centro-periferia entre Prússia e Rússia para EUA e Brasil – donos do crocodilo, logo pensam no prejuízo que causaria a abertura do animal e, por outro lado, a vultosa rentabilidade potencial da exposição do animal com o homem no estômago; o contratante, por sua vez, verborrageia sobre a necessidade de se respeitar o princípio econômico, muito mais importante para o progresso do país que a vida de um reles empreendedor. A esposa, por fim, pensa no divórcio e nos prazeres possíveis agora numa vida livre daquele estorvo, isto é, do marido outrora tão bom.

É interessante pensar no dilema, exposto logo no início do conto, entre o que Max Weber mais tarde denominaria o conflito entre racionalidade formal e material.[i] Aquela, correspondente ao “princípio econômico”, diz respeito à adequação entre fins e meios, ou seja, à correspondência entre a ação social e o objetivo almejado. Por outro lado, a racionalidade material diz respeito ao respeito a princípios, tais quais a dignidade humana e a democracia que, por mais que sejam valores burgueses, têm sido repetidos ad nauseam no Brasil contemporâneo, já que mesmo os ideais liberais são destruídos quando o modo de produção capitalista assume sobredeterminação fascista. O crocodilo, ente da natureza que ceifa vidas e sobre o qual o homem não tem controle total, é análogo ao coronavírus, e em terras brasileiras também se optou por não abri-lo em prol do princípio econômico.

Se o conto, inacabado como ficou, não apresentou um clímax, o ponto culminante da peça é sem dúvidas a cena em que Matviéitch se conforma. “Deitado de lado”, expressão que em russo tem significado não só literal, mas também diz respeito a vagabundear, a ser inútil, o devorado passa a conjecturar sobre as possibilidades que ele, dali em diante, terá de desenvolver suas filosofias. Uma fala representa a visão do engolido sobre sua própria condição e suas possibilidades dali adiante: “Não me aborrecerei! […] Pois, inteiramente imbuído de ideias grandiosas, somente agora, dispondo de lazer, posso sonhar com a melhoria da sorte de toda a humanidade. Do crocodilo hão de sair agora a verdade e a luz. Sem dúvida, inventarei uma nova teoria pessoal de novas relações econômicas e vou orgulhar-me dela, o que não me foi possível até hoje, por falta de lazer, em virtude do meu trabalho e dos vulgares divertimentos mundanos”[ii] (DOSTOIÉVSKI, 2011, p. 39-40).

As ideias pretensiosas, contraditórias e imbecis que o engolido começa a elencar ilustram perfeitamente os pretensos gurus contemporâneos, autointitulados filósofos ou economistas autodidatas, que ganharam palco pelas plataformas digitais de comunicação. Sem contato com ciência propriamente dita, não expondo as próprias ideias aos pares, não se inserindo no debate acadêmico das ciências que se pretendem a fazer, esses “livres pensadores” ensimesmados (livres porque sem nenhum método que os constranja) acabam por redundar nas mesmas ideias propagadas pelos aparelhos reprodutores da ideologia dominante em sua versão mais vulgar, ainda que fumando cachimbo e emulando arquétipos como o de velho sábio, ou jovem gênio, and so on. A camiseta da CBF trazida na peça da Estrela D’Alva explicita o que isso significa.

O desfecho do conto e da peça é tão ilustrativo quanto a cena dos devaneios de Ivan. Dando notícia do ocorrido, os veículos de imprensa apresentam, cada um, sua própria versão. É interessante notar que, mesmo antes desse debate se consolidar, Dostoiévski ilustra as duas maneiras pelas quais a ideologia se propaga: a mentira, a inversão, a distorção – tal como Marx descreve – e, por outro lado, os fatos eles mesmos, mas cuja veiculação seleciona perceptos de tal maneira que, ainda que não se minta, constitui-se uma mundivisão, uma forma de subjetividade interessante aos desígnios do capital, no caso o aproveitamento econômico da deglutição de Matviéitch.

O primeiro deles, conhecido como A Folhinha, noticia a mais pura inversão da realidade: “Um certo N., conhecido gastrônomo da alta sociedade […], entrou no edifício da Passagem, dirigiu-se ao local em que se exibe um enorme crocodilo, recém-trazido à capital, e exigiu que este lhe fosse preparado para o jantar. Combinado o preço com o dono do estabelecimento, passou a devorá-lo ali mesmo (isto é, não ao dono da casa, um alemão assaz pacífico e propenso à pontualidade e exatidão, mas ao seu crocodilo), ainda vivo, cortando os pedaços sumarentos com um canivete e engolindo-os com extraordinária rapidez.”[iii]

Por outro lado, o Cabelo, mais progressista e atualizado, traz a crítica de seu tempo: “eis que ontem, de repente, às quatro e meia da tarde, aparece na loja do proprietário estrangeiro certa pessoa desmesuradamente gorda e em estado de embriaguez; paga o ingresso e, no mesmo instante, sem qualquer aviso prévio, introduz-se pela goela do crocodilo, o qual, naturalmente, não tinha outro remédio senão engoli-lo, até por mero sentimento de autodefesa, para não engasgar”.[iv] O quão diferente isso seria da nossa imprensa?

Todos esses e muitos outros aspectos da sociedade brasileira são abordados pelos afectos que a performance artística em questão nos trouxe. Na luta contra o caos do desconhecido, mas compondo a partir deste caos a fim de travar uma luta mais nobre, a arte, a filosofia e a ciência servem para traçar planos que nos permitam, em última análise, construir perceptos, fabricar conceitos, engendrar funções que tragam um entendimento de mundo, a fim de massacrar, de evidenciar o ridículo da ignorância, da imbecilidade, da opinião.[v]. Esses três ramos da atividade cerebral humana são nossas armas contra a ideologia.

*Alexandre L. C. Tranjan é graduando em direito na USP.

*Daniele Pin Corrêa é graduada em arquitetura pela USP.

Notas


[i] WEBER, Max. Economia e Sociedade. Tradução de Artur Morão, Teresa e Marian Toldy. Lisboa: Edições 70, 2022, p. 124-5.

[ii] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. O Crocodilo e Notas de Inverno sobre Impressões de Verão. Tradução de Boris Schnaiderman. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2011, p. 39-40.

[iii] Ibid., p. 56-7.

[iv] Ibid., p. 59.

[v] DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Tradução de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 237-45.

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