Por PAULA FEIJÓ*
A escola contemporânea como espaço de formação: utopia ou possibilidade?
Vivemos um momento em que as discussões sobre educação proliferam como nunca. A cada estação, novas modas surgem nas feiras de divulgação de grandes empresas voltadas para o ensino mercadológico: ensino bilíngue, diagramas de desenvolvimento cognitivo, propostas de “metodologias ativas” e de “ensino híbrido” e, ainda, soluções que se valem do empréstimo de termos estrangeiros para dar um tom globalizado e cosmopolita, como a cultura maker.
O que essas tendências têm em comum não é apenas o fato de não envolverem um diálogo educacional efetivo, sendo correntes de pensamento voltadas exclusivamente para o mercado e desenvolvidas com fins de marketing para a classe média. Elas também apresentam em comum uma dissimulação ideológica que invisibiliza o esforço que outros setores aplicam para entender criticamente a escola enquanto instituição de uma sociedade fragmentada.
A existência da educação enquanto indústria, todavia, é somente um dos fatores que torna tão difícil a compreensão e a análise desse fenômeno moderno que é o da escola de massas. Falar em educação, hoje em dia, é correr o risco de cair na cilada de lugares comuns, de ser pego nas armadilhas do discurso conservador ou, ainda, de sucumbir aos próprios ressentimentos e mágoas de infância. Na tentativa de escapar às armadilhas, procuramos discutir aqui se ainda é possível que a escola contemporânea exerça a função de espaço de formação, o que exige a compreensão do que é formação – e até mesmo do que é espaço de formação – e do que seria a tal escola contemporânea.
Cada nova vida é um novo começo de mundo. O desafio da formação é assimilar esse começo à tradição, colocando-o a serviço dela para que, no lugar de rupturas geracionais, tenhamos um impulso à inovação. A princípio delegada exclusivamente à esfera privada da vida, ou seja, à família, a formação tem sua guarda deslocada pela modernidade. Com a dissociação entre o público e o privado cada vez mais impossibilitada, uma instituição pública (no sentido político da palavra) assume essa árdua tarefa: a escola. Mas esse deslocamento não ocorre de forma natural, e sim às custas de muitos discursos sucessivos. Da publicação de De Pueris, na Renascença, à recente homologação da Base Nacional Comum Curricular, a humanidade não cessou de produzir teorias e tratados normativos que tentam dar moldes à formação em uma comunidade cada vez mais globalizada.
Poucos (se alguém) discordam da relevância da formação na construção de um indivíduo e da comunidade à qual ele pertence. Isso pode ser indício da conscientização das massas, mas também pode indicar algo mais fatídico: o esvaziamento do termo. Afinal de contas, vivemos também tempos de falecimento de palavras. Palavras com peso histórico e filosófico que, de tão flexibilizadas e mal compreendidas, hoje não apresentam significado algum. Dentre elas podemos citar a democracia e sua irmã mais nova, antagonista, fascismo, que tiveram seus significados tão invertidos e confundidos que já estão no necrotério aguardando suas cerimônias fúnebres. O termo formação parece partilhar o mesmo destino. Resta-nos humildemente tentar revivê-lo com um breve esboço.
Em primeiro lugar, a formação pode ser vista como uma inserção efetiva no mundo do conhecimento acumulado pela humanidade, que acaba sendo indissociável da adequação do comportamento do novo humano aos costumes e valores que já estão lá quando vem ao mundo. A maneira como essa inserção deve ser realizada, contudo, é o grande motivo de discórdia, uma vez que é nesse campo que entram em combate tantas ideologias conservadoras e pretensamente progressistas. Podemos compreender a imposição da formação aos jovens como a concretização de tais ideologias na propagação da agenda civilizatória, mas também podemos compreender a atuação de tais ideologias como uma dissimulação da necessidade real de formação como direito do novo indivíduo a possibilidades de futuro.
Por enquanto, escolhemos seguir a última hipótese. Sendo assim, um espaço de formação é aquele que permite o engajamento do jovem indivíduo no mundo que o circunda, que já é dado a ele e que vem carregado de artifícios humanos. Permitir esse engajamento é tornar presente o conhecimento, para que se faça existente um horizonte de futuro. Aqui conhecimento diz respeito não somente ao conhecimento objetivado pela produção intelectual escrita, mas também aquele pré-objetivo, pré-predicativo, que envolve, principalmente, o reconhecimento de outrem, que exerce o papel de abrir para o jovem a dimensão intersubjetiva que é o mundo humano.
Devemos, agora, analisar brevemente o que é a escola contemporânea, a instituição que temos na atualidade como responsável pela formação e pela socialização. A escola contemporânea é, em primeiro lugar, uma instituição como espaço físico bem delimitado: um prédio ou conjunto de prédios separados do resto da cidade por paredes e/ou muros. Além disso, apresenta organização e hierarquias próprias: as salas de aula com carteiras geometricamente posicionadas a serem ocupadas por estudantes e uma ou mais salas de acesso exclusivo a docentes e funcionários a quem são atribuídos os títulos de autoridade.
É importante pontuar que a logística da escola projeta uma visão própria de temporalidade: a divisão de turmas segundo idade e de professores com um salto etário significativo em relação aos estudantes traça e enraíza a imagem do futuro como escadaria cujos degraus correspondem aos níveis institucionalizados de formação. É uma escola que apresenta dinâmicas internas próprias, e até mesmo uma cultura específica desse meio,[1] mas que, ao mesmo tempo, é atravessada pelas nuances da sociedade que a contém.
Mais do que isso, a escola é também um mercado cada vez mais aberto e explorado. Os grupos empresariais que lucram com o ensino privado, donos de redes de escolas que vão desde o jardim de infância até ensino superior e que envolvem ensino de línguas estrangeiras e até mesmo cursos voltados para atividades físicas, são o os mesmos que lucram com a produção de material didático para o estado. Pelo menos até poucos anos atrás, o PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) corresponde a uma parcela maior do lucro do maior conglomerado educacional do Brasil do que todo o capital gerado pelas escolas privadas, que envolve tanto o consumo de material didático quanto mensalidades.
Contudo, mesmo as visões mais pessimistas sobre a indústria da educação e sobre a maquinaria escolar não se permitem negar que a formação é um direito. É um direito assim como a alimentação e a saúde, por exemplo, que também padecem de processos de mercantilização análogos. Nossa alimentação está, em grande parte, nas mãos de grandes empresas da indústria alimentícia (que, coincidentemente, fazem parte dos mesmos conglomerados que os alguns grupos educacionais) e do agronegócio. A saúde, por sua vez, se encontra afundada no lobby da indústria farmacêutica cujas empresas, veja só, ou são as mesmas ou fazem parte daqueles mesmos conglomerados. Ainda assim, não podemos negar que a alimentação e a saúde são direitos e que, por mais prejudicadas estejam, a proposta de acabar com seu alcance em massa é mais prejudicial do que benéfica.
Ao mesmo tempo em que a alimentação e a saúde são o acesso de uma pessoa ao mundo natural, a formação é seu acesso ao mundo humano. Perguntar se a escola contemporânea é capaz de ser um espaço de formação equivale ao questionamento de se é possível ter acesso ao mundo humano na sociedade atual. Por enquanto, precisamos acreditar que sim.
Nossa alimentação baseada nos produtos da indústria alimentícia nos nutre, por hora, mas compromete nosso futuro. A escola contemporânea forma da mesma maneira. Assim como ainda não temos uma boa noção dos impactos que agrotóxicos e medicamentos industrializados podem trazer ao nosso desenvolvimento e à nossa saúde, não sabemos ainda o quanto o enraizamento da ideologia civilizatória implica o fracasso da escola.
Há uma abertura de futuro e de utopia no espaço de formação que ainda é a escola. Resta saber se essa abertura é real ou se ela existe apenas enquanto ilusão, se ela não for revertida, tornando-se sorrateiramente seu próprio inverso de forma dissimilada, implicando o fechamento do futuro por um caminho de diminuição gradual do acesso ao mundo humano que se faz passar por aumento.
*Paula Feijó é mestranda em filosofia na Universidade de São Paulo.
Nota
[1] “O fato é que, de alguma maneira, com todos os dispositivos acima referidos, a escola cria convenções e consensos, em um linguajar tipicamente escolar, para tornar o tempo e o espaço artifícios postos sob seu controle. Ao fazer isso, a escola cria cultura. Poder-se-ia, portanto, conferir um significado próprio quando o termo “cultura” vier acompanhado pelo adjetivo que aqui se substantiva na ideia do ‘escolar’.” Ver Boto, Carlota. “A civilização escolar como projeto político e pedagógico da modernidade: cultura em classes, por escrito”. In: Cad. Cedes Campinas v. 23 n. 61, p. 378-397, dezembro 2003.