Por GILBERTO LOPES*
Neoliberalismo selvagem e direitos humanos, uma contradição insolúvel
“Após tantas mobilizações, repressão e dor, o povo chileno deu um sinal claro sobre sua rejeição do neoliberalismo selvagem”, disse o presidente venezuelano Nicolás Maduro, ao tomar conhecimento da vitória eleitoral da coalizão Apruebo Dignidad, um pacto liderado por Gabriel Boric e constituído pela Frente Ampla e pelo Partido Comunista. “E também um mandato de respeito irrestrito pelos direitos humanos”, respondeu-lhe Boric num tweet. E acrescentou: “uma questão sobre a qual nem o presidente Sebastián Piñera nem o Sr. estiveram à altura”.
Em 30 de dezembro, o presidente norte-americano Joe Biden telefonou ao recém-eleito presidente chileno para felicitá-lo por sua vitória. “Conversamos sobre desafios comuns, tais como o comércio justo, a crise climática e o fortalecimento da democracia”, disse Boric depois à imprensa.
Nesse mesmo dia, numa entrevista publicada por ExAnte, um portal chileno conservador, Robert Funk, especialista em relações internacionais, referiu-se à agenda dos direitos humanos e à cúpula da democracia promovida por Biden no início de dezembro. “Penso que a administração Biden vai começar a insistir com mais força na ideia de promover a democracia e os direitos humanos”, disse Funk na entrevista. “Isso serve para diferenciar-se da China”. “Para um país como o Chile, que vai tentar jogar com ambos os lados ou poderes, será complicado”, acrescentou ele.
A América Latina e a democracia
Coincidindo com o segundo turno das eleições chilenas, no início de dezembro, os ex-presidentes do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e do Uruguai, José Mujica, somaram-se às celebrações em Buenos Aires de outro aniversário do fim da ditadura militar argentina (1976-1983). Na Praça de Maio, acompanhando o presidente Alberto Fernández e a vice-presidente Cristina Kirchner, cada um fez referência a seu próprio conceito de democracia. Fernández tinha salientado que “a democracia, sem justiça e igualdade, não é democracia”.
“É a melhor forma de governo”, disse Lula, “mas as elites econômicas e políticas se apoderaram da democracia. Governei o Brasil quando Cristina Kirchner governava a Argentina; Hugo Chávez era presidente da Venezuela; o índio Evo Morales, presidente da Bolívia; Tabaré e Mujica governavam o Uruguai; Lugo era presidente do Paraguai; e Bachelet e Lagos, do Chile”, lembrou Lula. Vivemos melhor nesse período “quando expulsamos a ALCA, criamos a Unasul e a Celac…”, e que nessas organizações participava Cuba, mas não participavam nem os Estados Unidos nem o Canadá.
Um mês depois, no início de janeiro, os ministros das relações exteriores da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), da qual a Argentina assumiu a presidência pro tempore, reuniram-se em Buenos Aires. “A Celac não nasceu para se opor a alguém, para enfrentar alguma instituição existente, nem para se imiscuir na vida política ou econômica de qualquer país”, disse Fernández, enquanto os líderes da aliança conservadora argentina, “Juntos por el Cambio”, rejeitavam a participação da Venezuela, Cuba e Nicarágua, que qualificaram como “ditaduras”.
“A Celac surgiu como um fórum a favor de nós mesmos, que sempre promoveu o consenso e a pluralidade, num quadro de convivência democrática, sem nenhum tipo de exclusões”, acrescentou Fernández, marcando uma diferença em relação a “Juntos por el Cambio”, aos quais se somaram outras vozes conservadoras, como as que governam na Colômbia e no Uruguai. O Brasil foi o único país ausente, após a retirada do Celac decidida pelo presidente Jair Bolsonaro.
A comparação de Maduro com Piñera feita por Boric não parece apontar para esse esforço de convivência democrática, “sem qualquer tipo de exclusões”, de que falou Fernández. Quem ele convidará para sua posse em março próximo: Maduro ou Guaidó; Yunior ou o presidente cubano Miguel Díaz Canel; Ortega ou algum representante da oposição nicaraguense; Lula ou Bolsonaro (que disse, em referência a seu triunfo eleitoral, que não cumprimentava “comunistas”)?
Os Estados Unidos e os direitos humanos
Em sua resposta a Maduro, Boric reivindicou o “respeito irrestrito” pelos direitos humanos. Dias depois, falou com Biden sobre o assunto, como destacou ao resumir o conteúdo da conversa para a imprensa. Mas ele não entrou em detalhes. A questão tem lugar prioritário na agenda internacional da administração norte-americana, como ficou evidente na cúpula de dezembro, organizada pela Casa Branca.
Mas há apenas alguns meses, em abril passado, ao anunciar que levantaria as sanções aplicadas pelo ex-presidente Donald Trump contra os membros do Tribunal Penal Internacional, o secretário de estado Anthony Blinken deixou claro o ponto de vista da nova administração: “continuamos a discordar profundamente das iniciativas do Tribunal relacionadas com o Afeganistão e a Palestina”.
Trump tinha dito que “qualquer tentativa do Tribunal de investigar, prender, deter ou processar qualquer funcionário norte-americano sem o acordo dos Estados Unidos, ou funcionários de países aliados dos Estados Unidos que não são parte do Estatuto de Roma [o acordo que criou o Tribunal, em 1998], ou que não aceitam a jurisdição do Tribunal, constitui uma ameaça inusual e extraordinária à segurança nacional e à política externa dos Estados Unidos”. Sem mencioná-lo, Trump referia-se também a Israel, cujos abusos na Palestina o Tribunal pretendia processar.
Ao anunciar que suspendiam as sanções e ameaças impostas por Trump contra os membros do Tribunal, Blinken reiterou que rejeitavam qualquer tentativa de submeter a esse Tribunal funcionários de Estados que não o reconhecem, tais como os Estados Unidos e Israel. “Acreditamos que nossas preocupações sobre estes casos poderiam ser mais bem resolvidas com a participação de todas as partes interessadas e não através da imposição de sanções”, disse ele.
Esta não é a posição dos Estados Unidos contra os Estados aos quais acusam de violar os direitos humanos, aplicando-se, em alguns casos, sanções devastadoras, como Cuba e Venezuela. E que possivelmente serão aplicadas também à Nicarágua. Os Estados Unidos, ao contrário de muitos outros Estados, não ratificaram um grande número de instrumentos sobre a matéria, começando pela Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH).
A CADH foi assinada na sequência da Conferência Interamericana de Direitos Humanos, realizada em 22 de novembro de 1969 na Costa Rica, e entrou em vigor em julho de 1978. Em junho de 2020, a Comissão Interamericana dos Direitos Humanos determinou que o argelino Djamel Ameziane sofreu violações desse direitos e do Direito Internacional Humanitário enquanto esteve preso na base militar norte-americana de Guantánamo, em território cubano ocupado.
O caso, porém, não foi ao Tribunal Interamericano porque os EUA não ratificaram a Convenção, nem aceitam a jurisdição do Tribunal. Este não é o caso de praticamente todos os países latino-americanos, que estão sujeitos a essa jurisdição. Washington empenhou-se a frear outras iniciativas internacionais em matéria de direitos humanos. Quando a Costa Rica, juntamente com outros países, propôs um mecanismo internacional de visitas às prisões em 1991, os Estados Unidos foram um dos principais opositores desta iniciativa.
Em conjunto com o Japão, Austrália e outros aliados, tentou por todos os meios impedir a aprovação do Protocolo Facultativo à Convenção da ONU contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. No final, o protocolo foi aprovado em dezembro de 2002, com os votos contra dos Estados Unidos, Palau, Ilhas Marchall e Nigéria.
Os direitos humanos como arma política
A defesa dos direitos humanos foi um instrumento importante na resistência às ditaduras militares do século passado, tanto na América do Sul como na América Central. Quando os militares raptavam, desapareciam, assassinavam ou torturavam seus cidadãos, a denúncia das violações dos direitos humanos foi um esforço de sobrevivência. Todas estas ditaduras foram impostas e governaram com o apoio de Washington.
No Chile, o “Relatório da Comissão Nacional sobre Prisioneiros Políticos e Tortura”, o “Relatório Valech”, publicado em 2005, pôs a nu o contexto em que se desenvolveram a prisão política e a tortura no país, assim como os métodos utilizados pelos torturadores. É um documento estarrecedor.
Depois, mais detalhes foram sendo conhecidos, e localizaram-se novos locais de detenção e tortura , alguns dos quais eu já conhecia e outros que visitei no ano passado, quando estive no país para cobrir o primeiro turno das eleições presidenciais. Mas os direitos humanos foram, pouco a pouco, transformados em arma política nas mãos de grupos conservadores que os utilizam acomodando seus interesses. Com esta visão conservadora, foram incorporados em instrumentos jurídicos regionais, como a “Carta Democrática Interamericana”, aprovada em Lima em 2001.
Pode-se ler no primeiro parágrafo que “a Carta da Organização dos Estados Americanos reconhece que a democracia representativa é indispensável para a estabilidade, a paz e o desenvolvimento da região e que um dos objetivos da OEA é promover e consolidar a democracia representativa, dentro do respeito ao princípio da não-intervenção”. Um parágrafo que contém todas as contradições com que a questão tem sido tratada. Por um lado, estabelece uma forma única de organização política para todos os Estados. Mas, dada a história de intervenções na política interna de cada país, foi introduzida uma condição no final do parágrafo: “dentro do respeito ao princípio da não-intervenção”.
Um dilema
O ano de 2022 poderá ser um ano de importantes mudanças políticas na América Latina. No dia 27 deste mês, assumirá a presidência de Honduras Xiomara Castro, representante dos setores expulsos do poder em junho de 2009 por um golpe de Estado contra seu marido Manuel Zelaya, então presidente da República. Em 11 de março, Gabriel Boric toma posse no Chile. Em 29 de maio haverá eleições na Colômbia, nas quais o favorito é o candidato do “Pacto Histórico”, Gustavo Petro. Na Colômbia, principal aliado dos Estados Unidos na região – que mantém uma forte presença militar no país –, mergulhada numa tradicional violência política à qual os acordos de paz de 2016 não puseram fim, uma vitória de Petro poderia ter repercussões importantes na política regional. E, em outubro, haverá eleições no Brasil, onde o ex-presidente Lula é, por enquanto, amplo favorito.
Poderá ser um cenário favorável à aplicação do que o presidente argentino, Alberto Fernández, definiu como objetivos da Celac: “um fórum a favor de nós mesmos, que sempre promoveu o consenso e a pluralidade, num quadro de convivência democrática, sem nenhum tipo de exclusões”. Isto é diferente de um “respeito irrestrito” pelos direitos humanos.
*Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR). Autor de Crisis política del mundo moderno (Uruk).
Tradução: Fernando Lima das Neves