Por GEDER PARZIANELLO*
Em períodos eleitorais o aborto é usado como uma arma política, e nem sempre o interesse é neste problema social extremamente dramático
Partidos e governos disputam posições e forças que, no fundo, buscam apenas vantagens nas urnas. Quando Dilma Rousseff tentava a reeleição para presidenta, mudou três vezes de posição sobre o aborto para equilibrar a rejeição que suas declarações geravam entre parte dos eleitores. Quando Mauricio Macri tentava se reeleger, como presidente da Argentina, foi travestido de mulher nas redes sociais e na imprensa, em capas de revista, como crítica ao seu posicionamento em defesa do aborto porque buscava apenas se aproximar do eleitorado feminino e vencer a eleição.
É curioso como em períodos eleitorais, a discussão sobre aborto ocupa a agenda pública e parte do resto do tempo, o tema só continua mesmo nas bolhas das redes sociais, parecendo um problema apenas endógeno da agenda feminista. No fundo, é uma arma política, uma retórica eleitoral, e nem sempre o interesse é no problema social, extremamente dramático, aliás, que envolve o aborto e diz respeito a toda a sociedade.
Agora, a Suprema Corte dos Estados Unidos acaba de dividir o país em dois, com a revisão de uma decisão legal sobre as práticas de aborto que reverte a legislação que existia desde os anos 1970. Estados democratas deverão continuar praticando o aborto legalmente enquanto nos estados republicanos, mais conservadores, as restrições ainda mais rígidas devem começar a surgir.
Novamente, o calendário eleitoral parece determinar a pauta: os Estados Unidos terão eleições legislativas em 8 de novembro. Tudo o que o presidente Joe Biden busca agora é contentar eleitores de todo o país, de olho na conjuntura do Congresso com os votos que determinarão seu apoio ou não na Câmara e no Senado. O professor de história política na Universidade de Brown, em Rhode Island, em entrevista à imprensa dos Estados Unidos, explicava semanas atrás, que muitos norte-americanos não entendem o teor das leis aprovadas pelo Congresso e também não associam as mesmas nem ao presidente Joe Biden, nem aos democratas. Segundo ele, “essa percepção pode pesar nas urnas, em 8 de novembro”.
Correspondentes da agência de notícias Agence France Press (AFP), fundada em 1835 e uma das mais prestigiadas do mundo, com atuação em 151 países, estão dando a maior visibilidade ao andamento desta questão do aborto nos Estados Unidos porque entendem também que a pauta é relevante não apenas no campo social e humano, mas no da política e que, por isso, afeta também o mundo inteiro.
Em meio à polarização extrema em eleições nos Estados Unidos, em que é muito difícil para um presidente manter altos índices de aprovação, questões como do aborto têm, tradicionalmente, uma influência decisiva nos índices de popularidade dos candidatos, tanto quanto os outros problemas como a inflação ou a pandemia, especialmente nesse ano de 2022. Com a nova legislação norte-americana, é possível talvez, a Joe Biden, driblar resistências no Congresso que se renova e garantir maior governabilidade a partir de novembro.
Mas há problemas. Leis antiabortivas, talvez, proíbam agora que mulheres grávidas atravessem fronteiras estaduais, ou até mesmo punam quem levante dinheiro para cirurgias nos estados onde a proibição do aborto vigora. Quem divulgar informações sobre clínicas que praticam o aborto também poderá ser criminalizado, por exemplo. A tecnologia digital poderá acabar servindo, justamente, ao propósito de identificar essas práticas, quando então as empresas de tecnologia poderão ser judicialmente obrigadas a informar sobre o comportamento dos usuários de aplicativos, a exemplo desses que acompanham ciclos menstruais ou que localizam onde estiveram as pessoas.
Sigilos assim já são quebrados, nos Estados Unidos, é fato, como em casos de terrorismo, ou episódios envolvendo tráfico de drogas ou sequestros, mas, a questão é que com uma legislação mais apertada, realmente poderão ser ampliadas as formas de identificação de quem pratica o aborto, tanto no caso de mulheres quanto de clínicas e profissionais da saúde. Os Estados Unidos não têm Leis de proteção de dados, diferentemente do que ocorre no Brasil ou na Europa, o que torna a situação ainda mais dramática.
Há muito tempo, o tema da discussão pública e mesmo legislativa sobre o aborto é sempre retomado no Brasil. Durante a ditadura militar, a questão foi tratada, literalmente, com grande tabu pela sociedade. Da década de 1980 e até o começo deste nosso século, o processo de discussão se ampliou no Brasil, ganhando dimensões antes não conhecidas, principalmente, com as redes e mídias sociais. A verdade é que abortos sempre foram praticados, e o pior, clandestinamente, colocando em risco e levando a óbito muitas mulheres, vítimas de condições precárias do serviço clínico praticado em condições ilegais.
Outras tantas foram sempre condicionadas a cumprir uma gestação mesmo contra sua vontade para manter padrões morais. Aos poucos, a legislação foi se adaptando às transformações de época, até que se concebeu que o aborto poderia ser legalmente autorizado e reconhecido, por exemplo, nos casos em que a gestação colocava em risco a vida da gestante, nos casos de estupro ou de má formação do feto quando identificada anomalia cerebral, anencefalia ou dano encefálico.
Mesmo esses dispositivos legais eram e continuam sendo amplamente discutidos, gerando controvérsias, envolvendo dogmas religiosos, fundamentos morais e éticos e todo tipo de razões argumentativas. Em 22 de junho deste ano, uma menina de 11 anos, em Santa Catarina, conseguiu na justiça o direito de interromper uma gravidez. Vítima de estupro, ela havia sido impedida de realizar o aborto por decisão de uma juíza e de uma promotora que a incentivaram a seguir com a gravidez durante instrução de um processo, o que ultrapassaria o seu limite de atuação e cuja conduta pode ser lida, supostamente, como uma ação indevida no Judiciário. A conduta delas está sendo agora investigada pelo Conselho Nacional de Justiça e pelo Conselho Nacional do Ministério Público.
O eleitor brasileiro precisa ficar atento ao uso estratégico do aborto como uma arma retórica eleitoral. O tema é por demais relevante para qualquer sociedade, mas quando o debate público só ganha contornos na relação direta com as urnas, certos discursos podem ter apenas uma função eleitoral para buscar a adesão de eleitores, sem que a classe política esteja, de fato, preocupada com o problema. Numa eleição decidida numericamente pelas mulheres, em maioria, é óbvio que a pauta do aborto pode influenciar o voto feminino e decidir uma eleição e os candidatos sabem disso. Mas será mesmo que quem se posiciona sobre o aborto, conforme a conveniência das urnas, merece mesmo a confiança do eleitor?
Retóricas populistas rondam a temática do aborto na política. Uma retórica do pacto em torno do que pareça favorável ao contexto de auditórios singulares e não universais. Perelman e Olbrechts-Tyteca (1958) definiram essas categorias de público às quais um orador se dirige tendo em vista a adesão de auditórios. Eles bem o definiram enquanto um auditório idealizado, não tendo necessariamente uma correspondência direta com os auditórios reais. Daí que o empenho é pelo que se imagine que sejam as consciências dos mesmos, de forma que presumem os valores e as pré-disposições desses auditórios em torno de ideias e conceitos e passam a defendê-los como sendo seus.
Ocorre que no espaço de tempo de uma eleição, candidatos são confrontados, inevitavelmente, com novos auditórios reais, o que lhes força a condição de projetarem também novos auditórios particulares e assumem, assim, a flagrante contradição de seus próprios argumentos. Há, no entanto, uma retórica da amnésia naqueles que, depois de um tempo, não mais associam essas ambiguidades ou inconsistências como enunciados de um mesmo orador (favorecendo ao político) e ou, de fato, esquecem por completo a relação entre a defesa de um argumento e o valor de verdade para quem argumenta em torno dele (idem).
Quando um candidato vem a público e reforça crenças de seu auditório, a probabilidade de falseamento do que diz é obliterada no imaginário popular pela satisfação da ressonância do que se escuta com o que se defende e acredita. Nos populismos, os antagonismos e os paradoxos não são mais fortes que a ilusão do encontro de pensamentos. Não importam, de fato, de onde venham as formações discursivas que satisfaçam ao mundo das ideias nos enquadramentos que todos temos, desde que elas, nos parecendo válidas, sejam então, tomadas como absolutas e verdadeiras, reais e aceitáveis. E este é o maior gatilho, emocional, persuasivo, que nos afeta como eleitores.
Não é difícil perceber a estratégia de candidatos que evitam se comprometer com uma questão delicada quando enxergam potencial risco de perda de apoio nas urnas em função de seus argumentos. Optam, então, pelo relativismo e por saídas frequentes de um não posicionamento, nem claro, nem definitivo, acenando, por exemplo, apenas para a importância do tema e para a necessidade de sua ampla discussão. Assim, escapam de comprometimentos e prejuízos eleitorais em razão de suas posições. Aristóteles, em Arte Retórica, já percebera o quanto estratégias como estas dominavam a técnica de falar aos públicos e alertava para o poder que essas estratégias continham, uma vez que posicionamentos ficavam represados e se estaria sem conhecer a real posição do interlocutor porque encoberta num falso relativismo, num cetismo relativo ou na suposição dada de que o assunto não tivesse, ainda, uma opinião suficientemente arrazoada, de tal forma que se justificasse uma posição menos assertiva de candidatos.
Os argumentos valem mais pela forma (por sua retórica, pois palavras são como “água que escorre entre os dedos”) que por alguma força lógica racional neles. Do contrário, sempre se usaria os mesmos para vencer os embates de ideias. Quando se discute, quando se argumenta, não se ancora sempre as razões numa lógica formal, tampouco, a questão do argumento deva ser verificada com base no estatuto da razão. Patrick Charaudeau, em sua tradição de estudos em análise do discurso (AD), ao tratar da força dos argumentos, explica sempre que uma afirmação, por si só, de fato não serve a uma discussão e que é, afinal, o modo como um argumento parece funcionar, realmente, enquanto forma estratégica para sustentar uma ideia como sendo irrefutável ou não, que acaba por representar a sua força numa situação argumentativa.
A cena discursiva que se enquadra na política tem feito favorecer a que o modo argumentativo tenha a moldura da ação de comprometimento. Quando o candidato se posiciona ambiguamente ou não o faz, em ambas as situações, ele torna o discurso político uma ação sem efeito prático no interesse de uma luta que o debate intenciona. O único efeito, aliás, é o da adesão de auditórios. Não há ganhos sociais, consciências alcançadas, transformações a serem esperadas no estatuto social da questão: abortos continuarão sendo clandestinamente praticados, mulheres continuarão morrendo, ou submetendo-se a condições ultrajantes e precárias, seja na prática clandestina, seja no silenciamento de seu sofrimento por tabus, receios, opressões ou medos.
Um discurso é uma forma de ação, como tão bem conceituou Maingueneau, apoiado na tradição francesa vinda de Michel Pêcheux, nos anos 1960. Dessa perspectiva, um enunciado é assumido por um sujeito que toma uma atitude, num dado contexto, à medida que uma enunciação é o que legitima o quadro, vitalizando a cena discursiva. Formações discursivas em torno do aborto podem tanto expressar a defesa legítima de argumentos quanto apenas servirem ao propósito de uma encenação com finalidade eleitoreira. A ação persuasiva de uns sobre outros mais endossa a imagem pública de um candidato que propriamente promova avanços no que esta importante luta social tanto almeja e necessita. O uso da linguagem com finalidade persuasiva em torno de problemas que ao menos ensaiem demandas ao imaginário popular não é, afinal, privilégio da questão do aborto, claro.
Usos semelhantes foram feitos antes do período da jovem democracia brasileira. A geopolítica de Golbery do Couto e Silva, general da Escola Superior de Guerra (ESG) nos anos 1950, no Brasil, continha uma retórica do programa nuclear, a qual serviu ao mesmo artifício para a imagem do governo. Durante a ditadura militar, uma disputa discursiva sempre esteve travada entre o privatismo e o estatismo, com características bastante semelhantes do uso da linguagem (como as telecomunicações, desde os anos 1960 ou a tecnologia 5G no Brasil contemporâneo).
Em 1974, houve uma grande crise internacional do petróleo e obras como rodovias cortando a Amazônia e hidrelétricas contribuíram muito para o endividamento do país e serviram a este pano de fundo dos discursos na política. A Petrobras e a Amazônia, como a transposição do Rio São Francisco, seguem como elementos retóricos políticos até hoje, o que não é nenhuma coincidência. Naquele contexto, do Brasil militarizado não pelo voto, retóricas foram usadas com semelhantes propósitos. A indústria naval e as ferrovias, que também contribuíram para nossa dívida externa crescer vertiginosamente, eram objetos de persuasão das massas no imaginário pelo que deveriam construir de ideia sobre o país e o governo.
A estratégia é antiga, herança de uma cultura clássica da política desde os gregos. Seus usos surpreenderiam se olhados mais de perto, hoje, os contextos da política russa, as ações em governos como da Polônia e da Hungria ou as muitas formas de dominação da opinião pública sobre as massas, mundo afora. Em tornos desses discursos, só não cabe a ingenuidade causada pela impressão de que sejam o que nunca o são, a não ser pelo que querem que pensemos deles.
*Geder Parzianello é professor de jornalismo na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA).