O drama de Lula … e o nosso

Imagem: Carrie Johnson
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Por JEAN MARC VON DER WEID*

Lula vai ter que governar lidando com um congresso ultrarreacionário

Um vídeo do ex-presidente Lula que recebi no meu celular me emocionou muito. Ele mesmo falou com muita emoção. Me lembrou o arrepio que me desceu pelas costas (junto com muita chuva) quando o ouvi discursar, pela primeira vez em uma manifestação de massa, na abertura da campanha pelas Diretas Já em 1984. Foi emoção na veia no melhor estilo de um grande orador. Mas ao refletir sobre o conteúdo, passei a ficar preocupado.

O que disse Lula? Que não estava querendo presidir o país para atender à Faria Lima, ao mercado, às elites preocupadas com o teto de gastos. E o teto de salários? O teto da renda dos brasileiros mais pobres? O teto das despesas com a saúde e com a educação? Lula disse querer ser presidente de novo para sanar todos os males que se acumularam sobre o povo brasileiro: a fome, o endividamento, o desemprego e subemprego, a falta de moradia digna, e muitas coisas mais.

É um programa necessário, sem nenhuma dúvida, dadas as imensas carências da grande massa da nossa população. Mas o drama é exatamente esse, como responder a tantas demandas urgentes deixadas por Michel Temer e, sobretudo, por Jair Bolsonaro? Lula não tem como fabricar dinheiro e os cofre públicos estão arrasados pelo desgoverno, pela pandemia e pela derrama de dinheiro gasto pelo energúmeno para tentar se reeleger. O endividamento público bateu recordes e compromete o próximo governo pesadamente.

Por outro lado, Lula vai ter que governar lidando com um congresso ultrarreacionário, onde o bolsonarismo raiz tem uma força significativa e o Centrão mais ainda. Além disso, o Congresso está empoderado pela fragilidade do governo Bolsonaro e aprendeu a chantagear o executivo. Já foi difícil governar em tempos de bonança, com Câmara e Senado controlados por forças conservadoras, mas agora vai ser pior, muito pior. Os tempos são e vão continuar sendo bicudos para a economia, reflexo do nosso passado recente e do presente e futuro da economia mundial.

Neste quadro, o programa tão bem defendido por Lula na sua live não vai ser aplicável. E com tantas promessas do candidato e tantas demandas urgentes da população, não vai ser fácil explicar para os mais ferrados que a herança maldita não permite atendê-los, ou que o congresso conspira contra o governo. Lula vai ter que buscar uma forma de governança e negociar com o legislativo em posição enfraquecida, inclusive pela vitória apertada no segundo turno.

A agenda governamental vai ter que ser estabelecida, atraindo todas as forças não bolsonaristas do Congresso e isto significa uma pauta muito mais modesta do que as promessas do discurso na live ou na propaganda da campanha. O embate terá que começar com uma difícil negociação de uma profunda reforma tributária, para tirar o executivo das cordas e permitir um esforço de investimentos estatais em eixos essenciais como alimentação, saúde e educação, e a retomada da capacidade gerencial do governo para gerar políticas públicas fundamentais. O Estado está desaparelhado em pessoal e recursos de operação em todos os ministérios e, recompor o aparelho vai ser custoso.

Acordos com o centro e com a direita não bolsonarista serão freios em relação às necessidades da ação do executivo para enfrentar o descalabro herdado, mas não há outra maneira de sobreviver no governo. Lembremos que as ameaças de impeachment agora são uma espada de Damocles sobre as cabeças dos governantes.

Lula é um político essencialmente pragmático e um fantástico negociador e aglutinador, mas ele vai precisar de toda a sua habilidade para conseguir extrair alguma coisa favorável ao povo nos seus quatro anos de governo. Ele não vai poder governar só, ou principalmente com a sua base petista, e as alianças de esquerda e centro esquerda, que fazem pouco mais de um quarto dos votos na Câmara e menos ainda no Senado. Ele vai ter que trazer para o governo partidos como o MDB, PSDB, União Brasil, PDS e outros menores como Cidadania ou Solidariedade. Sabemos que isto já foi feito nos governos de Lula e de Dilma, inclusive trazendo partidos do Centrão para os ministérios. Mas no quadro atual a correlação de forças é outra. Estes partidos não vão se vender no varejo e vão querer participar do poder de forma mais integrada.

O que me assustou no conteúdo do pronunciamento do Lula citado acima foi a sua coincidência com a entrevista do Rui Falcão dias atrás, dizendo que “querem que o Lula governe com um ideário que não é o do PT”. Espero que o Lula tenha mais claro do que Rui Falcão, o fato brutal da correlação de forças e o fato de que quase a metade dos eleitores do Lula (45%, segundo a Quaest) não aposta nele e nas suas propostas, mas contra Jair Bolsonaro e suas ameaças à democracia. Lula vai ter que governar pisando em ovos e no fio da navalha.

Para começar, não ter formulado um programa mínimo de medidas essenciais a serem tomadas pelo governo, inclusive apontando para as dificuldades orçamentárias a serem enfrentadas em uma reforma tributária profunda, fragilizou a campanha e compromete o futuro imediato. Prometer o céu na terra sem dizer como isto vai ser feito pode ser atraente para uma parte importante do eleitorado, mas assusta outra parte. Pior ainda, isto cria expectativas irreais e pode desembocar em frustrações e cobranças da população.

Lembremos da campanha da reeleição da Dilma Rousseff e sua tentativa de ajuste fiscal, em 2015. Em menos de um ano, a popularidade da presidente tinha caído dos 50,5% de votos recebidos para 13% de aprovação nas pesquisas. E seguiu caindo até ser derrubada pelo golpe parlamentar. Caindo sem reação da militância que a tinha carregado em triunfo na virada final das eleições de 2014.

Lula vai ter que definir este programa mínimo a posteriori do processo eleitoral e pagando um preço em dificuldades que só não são piores porque o sentimento anti-Bolsonaro é muito forte. Não vai ser um programa com a cara do PT, seja lá o que isso for. Vai ser a cara da frente de governo que Lula vai ter que montar e onde o PT não vai ser a força hegemônica dos bons tempos dos governos anteriores.

Os pontos essenciais deste programa vão ter que ser divulgados e discutidos na sociedade, de maneira a angariar apoios para além dos partidos no Congresso, mas não poderão ir além do que esses partidos aprovem.

Sem muito dinheiro para gastar, vai ser preciso acertar com muita sabedoria e eficiência onde investir e como aplicar o investimento. Não resta dúvida que as prioridades sociais imediatas continuarão sendo o combate à fome e à má-nutrição, a recuperação de todo o sistema educacional (em cooperação com estados e municípios), a recuperação do SUS e de todas as políticas de saúde, e investimentos em infraestruturas longamente represados e que podem gerar um efeito imediato na geração de empregos.

Há outros temas urgentes para os quais vai ser necessário carrear parte dos poucos recursos existentes ou inventar formas de levantar dinheiro para atendê-los. Um deles é a pesquisa científica, que não ganha voto nem tem efeito imediato na população, mas que significa muito para o futuro do país. São 44 bilhões de recursos perdidos (e que já eram limitados) em apenas 10 anos. Recuperar laboratórios e contratar cientistas vai custar um bocado. Onde conseguir este dinheiro?

Por outro lado, o investimento no controle da destruição ambiental também não é uma preocupação da maioria da população, mas é uma necessidade básica para termos um país e um mundo habitáveis no futuro. Por sorte, este tema tem uma enorme repercussão internacional e a possibilidade de recebermos apoios financeiros substanciais para políticas de desmatamento zero e de reflorestamento em larga escala é muito grande.

Quanto a agendas de mudanças mais profundas na sociedade brasileira, acredito que não vai ser possível avançar nestes anos de recuperação de coisas essenciais e imediatas. Mas é possível iniciar um processo consistente de transformação do agro brasileiro no caminho da sustentabilidade ambiental e social. Um programa de promoção da agroecologia vinculado à agricultura familiar, acompanhado de uma políLca de responsabilidade ambiental do agronegócio são coisas possíveis, embora seus resultados não sejam imediatos.

Para os militantes de esquerda que sabem que o país e o povo precisam de reformas muito mais profundas, o que ganhamos, essencialmente, com a vitória de Lula, é tempo para organizar o povo e liberdade para reivindicar políticas mais consequentes. Achar que o Lula vai poder fazer muito mais do que recuperar a terra arrasada deixada por Bolsonaro e que seus pares no congresso moverão céus e terras para manter, é uma ilusão perigosa.

As falas de Rui Falcão e de Lula, citadas acima, mostram que eles não estão em sintonia com a realidade da correlação de forças, nem com o contexto muito negativo em que nos encontramos. Talvez a magnitude e entusiasmo das inúmeras manifestações de massa das últimas semanas estejam subindo à cabeça dos nossos líderes. Mas volto a repetir o que tenho escrito há tempos.

Povo na rua em manifestações eleitorais é importante, mas não decide eleição. Cabeça fria indica que, hoje, quem tem sensibilidade para os movimentos de opinião que podem decidir a parada é, por um lado, a Simone Tebet e, por outro, André Janones, Felipe Neto e Boulos. Quando Tebet aponta para a inconveniência do uso generalizado do vermelho nas manifestações, o que ela está traduzindo é o sentimento dos 45% dos apoiadores de Lula que tem restrições ao PT. Mais ainda, ela está tentando mostrar para os que vacilam em votar em Lula, que o próximo governo não vai ser um “cheque em branco” para o PT.

Símbolos são coisas muito fortes em política e não devemos desprezá-los. Se o PT fosse menos corporativo do que sempre mostrou ser, teria entendido que não ganha sozinho e que seus aliados recentes ou antigos se ressentem do seu hegemonismo.

Mais uma vez, embora creia ser muito difícil para Bolsonaro virar ou achar 5 milhões de votos em 9 dias, os meios gigantescos que está utilizando, dentro e fora da legalidade eleitoral indicam que não podemos cair na tentação de dizer que “estamos com a mão na taça”. Tudo vai depender do tamanho da abstenção e onde ela vai ser maior. E preparemo-nos para lutar pelo direito de votar, pois acho que as milícias bolsominions já estão se preparando para perturbar as eleições.

A ordem para cercar e ocupar as zonas eleitorais até o fim da contagem já foi dada. E não é difícil concentrar agressões e intimidações nas seções onde Lula teve mais votos no primeiro turno e impedir o processo. De que lado vai ficar a polícia? E, nos muitos locais para onde foram convocados, os soldados do exército?

Dia a dia temos que gastar saliva e sola de sapato e o dedo nos teclados. Não há feriado nem descanso. Estamos pelo fotochart e não quero ver a carantonha do Jair Bolsonaro à frente do nariz do Lula na reta final.

*Jean Marc von der Weid é ex-presidente da UNE (1969-71). Fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA).

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