O entretenimento engole a política

Imagem: Mike Bird
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por EUGÊNIO BUCCI*

Todas as escolhas que antes se resolviam na esfera da pólis hoje se decidem num imenso reality show interativo

Você olha e fica boquiaberto. Mas como pode ser? Você esfrega os olhos, não é possível que esteja vendo o que vê. O modo como as pessoas reagem às notícias despertam no seu espírito uma incredulidade perplexa. Tudo na política – tudo mesmo, sem exceção – virou uma questão de torcida organizada, de arrebatamento de almas (pequenas) e de furor irracional.

Nos tempos da Covid a gente viu de perto: a hidroxicloroquina vai dar certo porque eu tenho fé; a ivermectina vai salvar vidas porque eu acredito, a vacina chinesa carrega um chip oculto que vai rastrear os desejos de consumo da vizinha, eu sei, eu vi um vídeo na internet. Parece loucura. É loucura.

A polarização se faz de ânimos conflagrados, não mais de opiniões divergentes. A metáfora da ágora grega não serve mais para representar o debate público. A imagem da disputa de pontos de vista entre seres racionais perdeu a validade. Agora, as multidões se sentem em guerras santas, em cruzadas sanguinárias, se sentem no Coliseu de Roma apontando o polegar para baixo. O script do tempo são os linchamentos virtuais. O fundamentalismo corre solto. Intolerância na veia. Nos Estados Unidos, os numerosos radicais do Partido Republicano trabalham com o dogma tácito de que as eleições de 2020 foram roubadas, e ai de quem discordar. Para muita gente, o aquecimento global é um mito fabricado. Eis o colégio eleitoral do nosso tempo.

Como explicar esses efeitos de estrondos e de fúria? As hipóteses são múltiplas, não necessariamente excludentes, mas uma delas fala mais alto: o universo da política foi inteiramente tragado pela linguagem do entretenimento – e, no entretenimento, a reafirmação do ego (ou do eu) vale mais do que a verdade dos fatos. Ponto. Parágrafo.

É verdade que, desde que o mundo é imundo, a política traz na sua fórmula ingredientes teatrais, elementos lúdicos e temperos passionais. Sempre foi assim. A partir da prevalência das plataformas sociais, contudo, a coisa mudou de patamar. Todas as escolhas que antes se resolviam na esfera da pólis hoje se decidem num imenso reality show interativo, onde o desejo íntimo sobrepuja com folga (e com gozo) o interesse público. A razão e a objetividade escasseiam enquanto as emoções eclodem, em apoteoses surdas.

O que vemos diante de nós não combina mais com os conceitos que valiam até algumas décadas atrás. É outra coisa, outro bicho. Já deram a esse ambiente, em que as questões políticas se comportam como atrações circenses, o nome de “era da pós-verdade”. Foi com essa expressão, aliás, que a revista The Economist se referiu à campanha presidencial de Donald Trump, numa reportagem de capa em setembro de 2016. Por certo, podemos nos referir à nova geleia geral como a “era da pós-verdade”, mas o fenômeno é maior do que imaginávamos em 2016. É mais monstruoso e mais profundo.

Vejamos o que se passa com a comunicação dos partidos, das autoridades estatais, das ONGs ou dos organismos internacionais. Essa comunicação já não interpela a razão, mas a emoção – e faz isso em formatos melodramáticos. Ou a mensagem segue o alfabeto visual estabelecido pela indústria do entretenimento, quer dizer, ou a propaganda assimila as narrativas baseadas no modelo bonzinhos-contra-malvados, ou não encontrará eco nas mentes e nos corações.

A que se reduziu o impasse da guerra do Oriente Médio? A uma disputa interminável sobre quem é que merece ser posto no papel de vítima. Os escombros da Faixa de Gaza – escombros urbanos, escombros humanos – são apenas o epicentro cenográfico de uma imensa guerra de imagem para ver quem consegue tomar para si o papel de vítima. Quem fizer jus a esse lugar merecerá o amor incondicional da plateia (antes conhecida como opinião pública). Acostume-se. A realidade se comporta como um filme de aventura, com princesinhas desprotegidas, cavalos suados e rapazes incultos, mas valentes.

Assim como o ideólogo do início do século XX cedeu seu posto ao marqueteiro do início do século XXI, o instituto da razão perdeu terreno para as identificações pulsionais, libidinais, fáceis e acachapantes propiciadas pelas técnicas industriais do entretenimento. A política hoje integrar o vasto comércio das diversões públicas. O cidadão, que era a fonte de todo o poder, acomodou-se na condição de consumidor voraz de sensações estupefacientes. Não é mais como cidadão que ele se mobiliza, mas como torcedor fanático, como religioso fiel ou ainda como fã ardoroso.

Se você ainda tem dúvidas, releia as mensagens que chegam nos grupos de WhatsApp. Lá estão os sintomas: os abaixo-assinados sentimentais, as figurinhas animadas que defendem uma tese em um único segundo, as subcelebridades desocupadas pontificando sobre assuntos complexos como se discorressem sobre o uso da cebola numa receita vegana. Está na cara, não está?

Não, isso aí não vai dar certo. Quando as decisões que afetam a ordem do comum repelem o entendimento do que seja o bem comum, é porque vai dar ruim. O conceito de República se desfaz na poeira do tempo.

*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e oriente o mundo digital) (Autêntica).

Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Afrânio Catani Flávio Aguiar Jean Marc Von Der Weid Remy José Fontana Bernardo Ricupero Eugênio Bucci André Márcio Neves Soares Lucas Fiaschetti Estevez Kátia Gerab Baggio João Feres Júnior Anderson Alves Esteves Luiz Werneck Vianna Marilena Chauí Elias Jabbour Luciano Nascimento Daniel Costa Flávio R. Kothe Lincoln Secco Thomas Piketty Heraldo Campos Paulo Capel Narvai Berenice Bento José Geraldo Couto Ronald León Núñez Luiz Eduardo Soares Valerio Arcary João Carlos Salles Lorenzo Vitral Marcelo Módolo Marcus Ianoni Carlos Tautz Matheus Silveira de Souza Ricardo Abramovay Yuri Martins-Fontes Luís Fernando Vitagliano Gerson Almeida Igor Felippe Santos Michel Goulart da Silva João Paulo Ayub Fonseca José Costa Júnior João Carlos Loebens Henry Burnett Tarso Genro Alexandre Aragão de Albuquerque Bento Prado Jr. Sandra Bitencourt Armando Boito Ronaldo Tadeu de Souza Henri Acselrad Annateresa Fabris Ricardo Fabbrini Jorge Branco Gabriel Cohn Rafael R. Ioris Daniel Afonso da Silva Michael Roberts Gilberto Maringoni Sergio Amadeu da Silveira Mariarosaria Fabris Airton Paschoa Paulo Nogueira Batista Jr Milton Pinheiro Leonardo Sacramento Everaldo de Oliveira Andrade Osvaldo Coggiola Priscila Figueiredo Ricardo Musse Vanderlei Tenório Mário Maestri Celso Favaretto Julian Rodrigues Luiz Marques Antonino Infranca Marilia Pacheco Fiorillo Leonardo Boff Luiz Bernardo Pericás Vladimir Safatle Carla Teixeira Celso Frederico Bruno Fabricio Alcebino da Silva Andrew Korybko Marcos Aurélio da Silva Eugênio Trivinho Antonio Martins Tadeu Valadares João Adolfo Hansen Tales Ab'Sáber Ricardo Antunes Fernão Pessoa Ramos José Raimundo Trindade Benicio Viero Schmidt Marcos Silva Luiz Renato Martins Chico Whitaker Francisco de Oliveira Barros Júnior Michael Löwy Alexandre de Lima Castro Tranjan Francisco Pereira de Farias Atilio A. Boron Luiz Roberto Alves Dennis Oliveira João Sette Whitaker Ferreira Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Bruno Machado Gilberto Lopes Denilson Cordeiro Fernando Nogueira da Costa Luiz Carlos Bresser-Pereira Alexandre de Freitas Barbosa Leda Maria Paulani Paulo Martins José Luís Fiori João Lanari Bo José Dirceu André Singer Eleonora Albano Marcelo Guimarães Lima Paulo Fernandes Silveira Ladislau Dowbor Jorge Luiz Souto Maior Rubens Pinto Lyra Paulo Sérgio Pinheiro Liszt Vieira Manuel Domingos Neto Maria Rita Kehl Samuel Kilsztajn Eliziário Andrade Anselm Jappe Salem Nasser Claudio Katz Marjorie C. Marona Leonardo Avritzer Daniel Brazil Boaventura de Sousa Santos Eduardo Borges Otaviano Helene Manchetômetro Fábio Konder Comparato Renato Dagnino Chico Alencar Vinício Carrilho Martinez José Machado Moita Neto Jean Pierre Chauvin José Micaelson Lacerda Morais Caio Bugiato Eleutério F. S. Prado Dênis de Moraes Francisco Fernandes Ladeira Andrés del Río Ari Marcelo Solon Érico Andrade Plínio de Arruda Sampaio Jr. Juarez Guimarães Ronald Rocha Luis Felipe Miguel Slavoj Žižek Antônio Sales Rios Neto Walnice Nogueira Galvão Alysson Leandro Mascaro Rodrigo de Faria

NOVAS PUBLICAÇÕES