Por LUIZ MARQUES*
A desespiritualização é produto da “reificação”, que converte a relação entre pessoas numa relação entre coisas e corrói o espaço público
Christian Dunker, em Reinvenção da intimidade, considera “a perda da unidade do espírito uma forma de sofrimento”. A espiritualidade concorre para a unificação simbólica da família, do povo, da nação e da formação social-econômica. Os tópicos se encaixam no conceito de Zeitgeist (espírito do tempo), formulado por Johann Gottfried Herder, no século XVIII, ao designar o clima intelectual e cultural de uma época para abranger o conjunto significativo de manifestações socioindividuais.
Eugênio Bucci, no artigo “Divertimento e espírito artificial” – postado no site A Terra é Redonda – ensaia uma fenomenologia social da erosão espiritual, antes vocacionada à liberdade, que “se pulverizaria em individualidades infinitas” mediadas pela imagem e pela técnica. O entretenimento industrializado sintetiza a artificialização do espírito. A impressão pessimista chegaria até os movimentos sociais.
Mobilizações em prol da agenda dos trabalhadores no 1° de Maio, negros em repúdio à violência policial, mulheres na denúncia aos feminicídios e grupos LGBTs na afirmação do orgulho gay nas ruas emprestam, amiúde, a aparência contraditória ao conteúdo. A forma espetáculo da dialética de superação dos oprimidos sugere cooptação, às vezes, na perspectiva da Escola de Frankfurt. Muito porque Theodor Adorno tardou em amainar as críticas à arte cinematográfica e em admitir, nos anos 1960, o potencial emancipatório do cinema. Nem Charlie Chaplin escapou dessa bipolaridade.
A desespiritualização é produto da “reificação”, que converte a relação entre pessoas numa relação entre coisas. Na Miséria da filosofia, ao criticar economistas que faziam da quantidade de trabalho a única medida do valor, Karl Marx escreve: “Não se deve dizer que a hora de trabalho de um homem vale como a hora de outro homem, mas sim que um homem de uma hora vale como outro de uma hora. O tempo é tudo, o homem não vale nada; é no máximo cristalização do tempo”. A coisificação nasceu em Manchester; hoje, além do mundo do labor, figura nos padrões americanizados de lazer.
Georg Lukács, em História e consciência de classe, aprofunda a discussão sobre a universalização da mercadoria e a mercantilização de tudo e todos. O traço distintivo da totalidade capitalista, no plano objetivo e subjetivo, é a crescente atomização dos indivíduos. A teoria da reificação permite uma compreensão da passagem da “infraestrutura” à “superestrutura” da sociedade. O demônio não rouba almas a ninguém, exceto nos templos pentecostais. O capitalismo, sim, pega, mata e come.
Os cúmplices da barbárie
“O sentimento romântico de degradação, o spleen impressionista e a apatia pós-moderna são exemplos de sentimentos de dissolução do espírito”, observa Christian Dunker. Uma “depressão” enuncia o fracasso na corrida meritocrática, na fase neoliberal. Uma dedicação estafante à profissão de sucesso exprime a “mania”. Os primeiros são desprezados; os segundos são transformados em ícones do empreendedorismo. A moeda anímica é a mesma, com faces patológicas opostas. O atual espírito do tempo adéqua o sintoma maníaco à gramática da normalidade, na acepção dos yuppies.
Aquilo que sinalizava um compromisso ético com a liberdade em priscas eras, ora se expressa com o critério de rentabilidade e desempenho nos balanços das empresas e nos relatos de pacientes do campo Psi. No último decênio, a clivagem contábil deu a tônica nos governos da burguesia e se refletiu no sofrimento dos mais sensíveis, qual os poetas. Os ressentidos que ascenderam ao poder não rejeitam as desigualdades, mas o seu lugar na hierarquia da ordem social. O ódio que destilam dirige-se aos corajosos lutadores por direitos para romper a tradição de dominação e subordinação.
Entre nós, a governança fascista fez a apologia da liberdade para espelhar o interesse das finanças, a liberalização do trabalho, o extrativismo em terras indígenas e a reacionária primarização da nação pelo agronegócio para exportar commodities, não manufaturados. A ideologia do laissez-faire econômico orientou o simulacro de rebeldia nas pregações antidemocráticas, que inflamavam a horda robótica de viciados em redes sociais e fake news. A liberdade foi expulsa do bem comum.
Prova-o a rachadinha das multas de um milhão de reais, em São Paulo, pelas transgressões aos protocolos da saúde na pandemia, para propagar a estratégia criminosa e vil da “imunidade de rebanho”. A servidão voluntária ao tirano negacionista é um escárnio para com as crianças órfãs, dado o descaso com a vacinação viral e o isolamento social. Apesar dos suspeitos R$ 17 milhões arrecadados, o inelegível não liquidou a dívida – sonegar sempre soube. Como vulgar estelionatário, guardou para si a feria milionária numa atitude tão ilegal, quanto imoral. O montante do dinheiro devia atender uma ação pública, não o genocida. Corações envenenados endossam a desfaçatez.
A perda do espírito em escala internacional emergiu há quarenta anos, com os primeiros passos do neoliberalismo para conquistar a hegemonia. No “patropi” deu as caras em 1989, com a eleição de Fernando Collor – e a adesão escandalosamente militante do patriarca da Rede Globo. No mesmo período, veio à luz o Consenso de Washington com o mandamento dos ajustes fiscais antissociais, as privatizações, o arrocho salarial do funcionalismo e o desmonte impiedoso dos serviços públicos. Com Jair Bolsonaro e o Chicago boy Paulo Guedes, a destruição do espírito levou ao paroxismo.
Salvar os espaços públicos
“Os indivíduos se comportam na base do ‘significado’ que advém das interações sociais”, lê-se no Dicionário do pensamento social do século XX. O significado da “interação” é, um, elaborado em ambientes policlassistas; e é, outro, em ambientes monoclassistas onde compartilha-se valores semelhantes: renda, consumo, visão de futuro. A pluralidade é a apólice de seguro da democracia. O arianismo de classe, etnia, gênero, condição sexual ou credo religioso é uma pedagogia opressora.
Na França, a experiência em zonas para concentrar árabes, africanos ou asiáticos se revelou um desastre. Implicou na guetificação étnica, bloqueou a integração sociocultural e estigmatizou os imigrantes. A extrema direita explora o erro. A opção arquitetônica não fomentou uma identidade nacional, senão que estimulou a eclosão de conflitos inter-raciais. No Brasil, o divisor tem um perfil de classe e cor, na periferia urbana ou no condomínio fechado que surgiu na ditadura militar, em 1973. A origem do bunker de classe média é sintomática. Representou um recolhimento intramuros da “gente de bem” para não ver o mal (prisão arbitrária, tortura, censura) do “milagre econômico”. Christian Dunker inclui a ideia escapista no rol da “patologia do individualismo à brasileira”.
Para Michael Sandel, painelista da 17° temporada do Fronteiras do Pensamento: “Precisamos apoiar os espaços públicos que juntam pessoas de origens diversas. A ida ao estádio trazia a experiência da mistura de classes. Alguns assentos custavam mais caros, mas o ingresso era acessível. Em termos metafóricos, quando chovia todos se molhavam. A conjuntura mudou. Agora, renda baixa não entra. Já não é verdade que, quando chove, todos se molham”. Os “camarotes” untam a aristocracia da velha “casa grande”, à parte da paixão popular, e o viés colonialista (racista) e patriarcal (sexista).
Socialmente, os rolezinhos nos shopping centers – transcorrem em locais republicanos, em tese, embora reservas de “distinção social” na ausência dos títulos nobiliárquicos. Rolés nas “cavernas modernas” (José Saramago), denunciam a aversão aos pobres (aporofobia) e a proibição do direito de ir e vir em uma sociedade segregacionista. Politicamente, a participação na esfera pública do Plano Plurianual Participativo, do governo Lula, oportuniza a deliberação de políticas cidadãs. A mídia corporativa faz vistas grossas para não legitimar as novas ágoras de interação ativa e criativa. O propósito do governo federal é reforçar o “princípio esperança” do povo, na órbita pública.
Nota triste. A cidade cantada em versos por Mario Quintana e sede do Fórum Social Mundial, Porto Alegre, por ora é administrada do jeito mais predatório na terra brasilis. O prefeito (MDB) – quem viu, quem vê – tem por vocação o extermínio. Autorizou o corte de centenas de árvores no Parque Harmonia para fazer estacionamento e avança com um projeto de repasse de estruturas do Parque Farroupilha (Redenção) à iniciativa privada, por trinta longos anos. Injetou a necropolítica do capitalismo, na natureza. Temeu efeitos conscientizadores do convívio plural nos espaços públicos verdes. Governante que não governa, entrega o controle do patrimônio ambiental ao lucro imediato da iniciativa privada. Só falta a fogueira para queimar o espírito da liberdade e, junto, da igualdade.
*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.
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