Por MÁRCIO MORETTO RIBEIRO*
O bolsonarismo soube ouvir uma população indignada com a insegurança, com o custo de vida e com a falta de pertencimento. Essa escuta a reenquadrou em um repertório estreito, sem mediação institucional e sem compromisso com direitos
1.
Quando a internet começou a se popularizar, parte da esquerda ficou otimista. Acreditamos que as redes abririam a escuta e destravariam a “democracia real”. Eu vivi de dentro essa fase: assembleias em praças, referência na Primavera Árabe, o país fervendo por transporte público e, depois, as ocupações de escolas.
Com a ascensão do bolsonarismo, o otimismo cedeu à tese da manipulação. Desde então nos debatemos com um aparente dilema: as redes estimulam a democracia ao permitir que a população seja ouvida, ou a colocam em risco ao fazer com que ela seja manipulada?
Durante o período otimista, nossa hipótese era simples: faltava soberania popular. A “democracia real” viria se o sistema político, visto como uma casta capturada por lobbies, escutasse a população. É essa leitura que o Occupy Wall Street sintetizou: “We are the 99%”, a maioria silenciada confrontando o 1% que concentra riqueza e captura o sistema político em seu favor. A tecnologia apontava outro caminho: pela primeira vez, permitia articular gente dispersa e parecia capaz de abrir a válvula da escuta.
Dos Indignados espanhóis ao Occupy Wall Street e ao Ocupa Sampa, a experiência com assembleias nas praças e nas ruas mostrou o limite central dessa abordagem: consulta não é deliberação. A democracia exige debate, contraditório e mediação. O ambiente digital não foi feito para isso. Pelo contrário, ele premia o sensacionalismo e a pressa. A escuta do outro pede tempo, gera incômodo, requer regras e cuidado. No ambiente digital o fluxo se acelera e as regras se dissolvem.
Quando esse ciclo ameaçou a hegemonia da esquerda institucional, prevaleceu o reflexo defensivo. Em vez de tentar escutar e mediar melhor, tremendo perder a hegemonia da esquerda, o ela tratou o levante como protofascismo, o “ovo da serpente”. De olho em megaeventos e na própria imagem, o PT tolerou e até promoveu a criminalização de movimentos sociais.
Pesou aí um medo do novo: a esquerda formada nos anos 1980, ancorada em formas de organização daquele período, não reconheceu nem acolheu a esquerda que emergia nas ruas e nas redes. Ao virar as costas para essa nova esquerda, a antiga perdeu a chance de se reinventar e se afastou do povo. Enquanto o país se tornava mais evangélico e setores periféricos buscavam no empreendedorismo uma estratégia de dignidade, muitos leram isso apenas como “neoliberalismo popular”.
2.
Em 2017 a Fundação Perseu Abramo conduziu uma pesquisa sobre periferias urbanas que é ilustrativa desse afastamento. A pesquisa, realizada em bairros periféricos da capital paulista, mostrou um quadro incômodo para a esquerda. Os moradores relataram valorizar o esforço individual, o empreendedorismo, a competitividade e a lógica do mérito como estratégias de sobrevivência e dignidade. Ao mesmo tempo, expressaram desconfiança em relação ao Estado e às instituições políticas, ainda que mantivessem expectativas de que o poder público deveria prover serviços básicos de qualidade.
O mais revelador foi a forma como setores do PT e da própria Fundação interpretaram esses resultados. Em vez de encarar como sinais de novas demandas sociais que exigiam atualização da escuta e da ação política, prevaleceu a leitura de que se tratava de uma adesão popular a valores “neoliberais”. Assim, o diagnóstico foi colocado na conta do povo, e não da distância crescente entre partido e periferia. Essa reação simboliza bem a dificuldade da esquerda institucional em reconhecer e incorporar as mudanças que se desenhavam fora de seus marcos tradicionais.
A ascensão bolsonarista expôs nosso equívoco. O debate público travou em torno de uma falsa alternativa: manipulação ou vontade popular. Na falta de resposta, grande parte da esquerda terceirizou a culpa para os “algoritmos”, como se a curadoria algorítmica fosse a principal responsável pela extrema direita.
A explicação parecia convincente: algoritmos criariam bolhas radicais, exporiam usuários a conteúdos extremos e notícias falsas, e a direita teria aprendido a explorar isso com técnicas de marketing direcionado importadas dos EUA por Steve Bannon. Ocorre que a base da comunicação bolsonarista não esteve em plataformas abertas como Facebook ou Twitter, mas em grupos de WhatsApp. Ou seja, um ambiente sem feed, sem algoritmo de recomendação e, ainda assim, com enorme capilaridade de vínculos. Reduzir o fenômeno a uma “culpa dos algoritmos” foi apenas uma forma de evitar discutir a desconexão política mais profunda.
Não é que não haja tentativas de manipulação, elas existem, e sempre existirão na política. Mas antes disso houve algo mais decisivo: escuta. O bolsonarismo soube ouvir uma população indignada com a insegurança, com o custo de vida e com a falta de pertencimento. Essa escuta, mesmo que muitas vezes seletiva, capturou dores reais e as reenquadrou em um repertório estreito, sem mediação institucional e sem compromisso com direitos.
3.
Aqui entra o ponto de Ernesto Laclau que vale guardar: o populismo tem um lado produtivo, pois articula demandas dispersas e pressiona instituições surdas. A democracia depende de uma tensão estável entre soberania popular (escuta) e instituições mediadoras (deliberação). Hoje, a direita hipertrofiou a primeira, tornou-se populista demais ao espelhar humores e roer garantias, enquanto a esquerda atrofiou a escuta, tornou-se populista de menos ao se refugiar nas instituições e temer atualizar a pauta. O resultado é uma dupla erosão: o populismo sem mediação implode regras, e o institucionalismo sem escuta perde legitimidade.
A esquerda caiu num labirinto: ou “joga o jogo” manipulatório das redes ou perde a opinião pública. Esse é um falso dilema. O problema real é que, com o esfarelamento das comunidades de base e o fracasso do projeto de democracia participativa, as pessoas ficaram isoladas. A extrema-direita aprendeu a ouvir nesse novo contexto de isolamento. A esquerda, com medo de mudar, preferiu dizer que as pessoas estavam erradas.
Não se trata de saber usar as redes. A esquerda usa muito bem as redes para reafirmar fronteiras. Temos toda uma cartilha de contrassenhas culturais: “votar com livro na mão” do lado de cá, louvor evangélico do lado de lá; MPB de cá, sertanejo de lá. O que falta é saber ouvir as pessoas atrás das telas.
*Márcio Moretto Ribeiro é professor de Políticas públicas na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.





















