O genocidio em Gaza e a ideologia liberal internacionalista

Imagem: Musa Alzanoun
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Por ISABELA AGOSTINELLI & REGINALDO NASSER*

A Questão Palestina ocupa agora um lugar simbólico contra uma ordem pós-colonial injusta

Apesar de se tratar de uma pequena faixa de terra de 360 km2, com uma população de 2,5 milhões vivendo em condições sub-humanas, a Faixa de Gaza fez com que a Questão Palestina se transformasse no centro da política internacional, depois do dia 07 de outubro de 2023, quando os massacres perpetrados pelo Hamas desencadearam uma ação militar israelense de grandes proporções.

Já não resta mais dúvidas entre os estudiosos de guerras de que Gaza sofreu uma das campanhas de bombardeio mais devastadoras de todos os tempos e, consequentemente, a punição de civis mais intensa da história.

Foram lançadas mais de 75 mil toneladas de bombas[i] – superando o peso combinado das bombas lançadas em Londres, Dresden e Hamburgo durante toda a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Essas bombas destruíram ou danificaram mais da metade de todos os edifícios em Gaza e limitaram o acesso do território à água, alimentos e eletricidade, deixando toda a população à beira da fome. Mais de 16 mil crianças foram mortas, enquanto outras 22 mil estão desaparecidas.[ii] Mais de 40 mil palestinos foram mortos, mas o número total de mortos — tanto os que foram diretamente atingidos quanto os indiretamente mortos pela destruição de infraestruturas civis — pode atingir a cifra de 186 mil.[iii]

A comunidade internacional, as organizações internacionais e os movimentos sociais em todo mundo e, principalmente, nas metrópoles ocidentais, passaram a se manifestar sobre os acontecimentos em Gaza com grande destaque na mídia global. Em encontro com Ursula von der Leyen, presidenta da Comissão Europeia, em novembro de 2023, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky lamentou que a guerra no Oriente Médio estivesse tirando o foco da Ucrânia. Efetivamente, a Questão Palestina ocupa, há mais de um ano, o tema mais importante da agenda internacional.

As comparações entre ambos os conflitos, Ucrânia e Palestina, passaram a ser um dos focos do debate global, seja sob a perspectiva da geopolítica — isto é, em torno dos interesses e alianças entre Estados — ou do alcance do direito internacional, que reverbera a discussão sobre as trágicas consequências humanitárias e possíveis ações para pôr um fim às atrocidades.

Foram apresentadas várias propostas de resoluções no Conselho de Segurança da ONU, mas grande parte delas foi vetada, principalmente pelos EUA, ou apresentaram problemas para adotar medidas concretas. Em janeiro de 2024, a Corte Internacional de Justiça, por 15 votos a favor e dois contrários, admitiu que era “plausível” que Israel tivesse cometido atos de genocídio em Gaza, tendo o tribunal votado 15-2 para ordenar ao Estado que tomasse todas as medidas possíveis para pôr termo a tais atos.

O julgamento na Corte assumiu o centro do palco internacional, um teste crucial para os EUA e aliados ocidentais. As denominadas democracias liberais estariam dispostas a imputar a Israel, a extensão do poder do Ocidente no Oriente Médio, o crime dos crimes ou as afinidades geopolíticas e ideológicas têm precedência sobre a lei e a moral?

O posicionamento das democracias ocidentais em relação à Guerra na Ucrânia é muito recente para que pudesse ser esquecido em Gaza. Em junho de 2022, o presidente Biden publicou um artigo em que dizia que a invasão da Ucrânia pela Rússia “poderia marcar o fim da ordem internacional baseada em regras e abrir a porta para a agressão em outros lugares, com consequências catastróficas em todo o mundo”[iv]. O termo em inglês Rules Based International Order (Ordem Internacional Baseada em Regras) ganhou notoriedade após o fim da guerra fria. Mais recentemente, após a invasão da Ucrânia, o termo se tornou um mantra.

Os alicerces dessa ordem foram estabelecidos sob a hegemonia do pensamento liberal, após os massacres da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto, com a criação da ONU e a promulgação das Convenções de Genebra de 1949. A justificativa dos Estados que conceberam essas instituições internacionais era no sentido de aperfeiçoar o direito humanitário e, portanto, a proteção jurídica dos não combatentes. Mas, desde seu início, as regras dessa ordem, para efeitos de responsabilização legal, teve validade apenas para os vencidos, o que não aconteceu com os bombardeios indiscriminados de Dresden ou as bombas atômicas a Hiroshima e Nagasaki, que não foram sequer julgados.

Desde então, as democracias ocidentais tratam o termo “ordem internacional baseada em regras” como sinônimo de direito internacional. Entretanto, por vezes, essa ordem é saudada quando serve aos interesses dos países quando, por exemplo, o Tribunal Penal Internacional emite ordem de prisão para Putin por seus crimes de guerra na Ucrânia. Mas, na maioria das vezes, as “regras” são colocadas de lado.

São centenas de exemplos, entretanto, chama a atenção a dimensão da tragédia humanitária em decorrência da denominada Guerra Global ao Terror, no imediato pós-11 de setembro. Segundo cálculo do Costs of War,[v] estima-se que mais de 400 mil pessoas tenham morrido de forma violenta e cerca de 3,6 a 3,8 milhões de pessoas morreram indiretamente nas zonas de guerra. Diante disso, como é possível falar em ordem internacional baseada no Direito Internacional?

Na verdade, o termo “ordem internacional baseada em regras” deve ser visto como uma poderosa ideologia que escamoteia a realidade e tem desempenhado um importante papel na geopolítica ao longo das últimas décadas. As regras podem valer para os adversários dos EUA, mas os EUA e os seus aliados ficam livres para decidir se querem ou não participar dessa ordem.

Todavia, é provável que estejamos a mudança de posicionamento dos EUA em relação à Ordem Internacional baseada em regras. Não se trata mais de ignorá-la, como sempre foi feito, mas sim criticar deliberadamente as instituições internacionais, como Corte Internacional da Justiça e o Tribunal Penal Internacional. No dia em que o procurador do TPI, Karim Khan, anunciou a intenção de pedir mandatos de prisão para Benjamin Netanyahu e o seu ministro da Defesa, Joe Biden não apenas rejeitou agressivamente a medida, mas foi mais longe, dizendo que, independentemente do que o Tribunal Penal Internacional dissesse ou não dissesse, Israel não era culpado de genocídio.

Ou seja, não é a “ordem internacional baseada em regras” que está em crise, mas sim a ideologia do liberal internacionalismo que a sustenta. Sempre apoiado, implícita ou explicitamente, pelas “democracias ocidentais”, Israel chegou a sugerir que a Corte Internacional de Justiça era cúmplice de ações terroristas.

Se, no início da ação das forças militares israelenses em Gaza, Israel colocava em dúvida a veracidade das abundantes denúncias de atrocidades que chegavam das mais diversas fontes, depois de certo tempo, as autoridades israelenses mudaram de tática e passaram a justificar as ações sob a rubrica “necessidades militares”.  Independentemente de usar a linguagem do direito humanitário de proporcionalidade e minimização de danos, Israel argumenta que o objetivo principal, superior a qualquer tipo de dano que pudesse ocorrer aos civis palestinos, era resgatar os civis sequestrados e erradicar o Hamas e toda a sua infraestrutura.

A insustentabilidade da ordem internacional baseada em regras advém não apenas de um posicionamento político defendido pelo Sul Global, mas também da opinião pública nas cidades do Ocidente. Nenhum dos princípios que definem a ordem mundial é convincente. A Questão Palestina ocupa agora um lugar simbólico contra uma ordem pós-colonial injusta. Se o Direito Internacional e as instituições internacionais que sustentam sua aplicabilidade não são mais o teste decisivo da legitimidade para os EUA e aliados, que outras diretrizes devem substituir a ordem internacional baseada em regras?

Ainda é cedo para responder a essa questão, mas o que acontece em Gaza nos permite imaginar o que seria uma ordem que admite o genocídio.

*Isabela Agostinelli é pesquisadora de pós-doutorado no INCT-INEU.

*Reginaldo Nasser é professor de Relações Internacionais da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de A luta contra o terrorismo: os Estados Unidos e os amigos talibãs (Editora Contracorrente). [https://amzn.to/46J5chm]

Publicado originalmente na revista ComCiência.

Notas


[i] Dados disponíveis em: https://www.aljazeera.com/gallery/2024/4/23/photos-200-days-of-israels-war-on-gaza.

[ii] Dados disponíveis em: https://www.aljazeera.com/news/longform/2023/10/9/israel-hamas-war-in-maps-and-charts-live-tracker.

[iii] Dados disponíveis em: https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(24)01169-3/fulltext.

[iv] Disponível em: https://www.nytimes.com/2022/05/31/opinion/biden-ukraine-strategy.html.

[v] Disponível em: https://watson.brown.edu/costsofwar/.


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