Por DENILSON CORDEIRO*
Comentário sobre o livro recém-editado de Amitav Ghosh
“A catástrofe é o horizonte insuperável do nosso tempo. […] A hora histórica em que passamos a viver não constitui mais uma época, mas um prazo, o tempo que resta” (Paulo Arantes, O novo tempo do mundo).
“Quando chove, quando há nuvens sobre Paris, não esqueçam nunca que isso é responsabilidade do governo. A produção industrial alienada faz chover. A revolução faz o bom tempo” (Guy Debord, O planeta doente).
Em O grande desatino, Amitav Ghosh considera uno, o que, ideológica e historicamente, tem sido separado: tempo como clima e tempo como época, como condição climática e como história, o tempo como condicionante e como resultado, a própria humanidade e todo o planeta. Conforme escreve no início do livro: “Acabei reconhecendo que os desafios que as mudanças climáticas impõem ao escritor contemporâneo (…) se originam de um fenômeno mais abrangente e antigo: em última análise, derivam das formas e convenções literárias que moldaram a imaginação narrativa precisamente naquele período em que o acúmulo de carbono na atmosfera estava reescrevendo o destino da Terra” (p. 13). Isso quer dizer, interpreto, que as convenções, culturais no que resultam literárias, determinam posições narrativas peculiares e modos de compreensão. A concepção frisa a modulação da narrativa pela condição material da mudança climática, daí a vinculação tida como unidade temporal e existencial.
Resultado de um conjunto de palestras apresentadas na Universidade de Chicago, em 2015, como nos conta o autor nos agradecimentos, o livro está dividido em três partes: I. Histórias [Stories]; II. História [History]; III. Política [Politics]. A primeira conta com dezoito subpartes, apenas numeradas, e é onde o autor relata e reflete sobre as consequências de várias das histórias que viveu e que ouviu sobre mudanças climáticas na Índia, é onde, por isso, mais sobressai o caráter literário da composição.
A segunda, formada por nove subpartes, tematiza a história atual da crise climática, com ênfase para as condições e consequências no sudeste asiático, nesse momento o autor retoma e apresenta dados históricos, científicos e formulações como base da sua argumentação.
Política, a terceira e última parte, trata dos desafios postos à política mundial acerca do avanço já quase irreversível das mudanças climáticas, nessa etapa do livro o autor analisa e compara os termos do chamado “Acordo de Paris sobre o clima”, de 2015, cuja súmula das discussões foi divulgado pela ONU, com a Carta encíclica Laudato sì, do papa Francisco, pronunciada no mesmo ano do Acordo. No que concerne aos graves problemas do clima e às emergências medidas a serem tomadas, as elaborações papais estão muito mais avançadas do que puderam combinar os diplomatas e especialistas participantes do encontro em Paris.
Pelo conjunto da parte mais literária do livro, vamos nos dando conta de que o sentido de literatura tomado aqui é, por isso, mais abrangente do que estamos acostumados a compreender, porque inclui, além da ficção, a narrativa dos ancestrais, a linguagem, portanto, também falada e peculiar a cada povo e seus modos de transmitir a cultura. E uma tradição é, de algum modo, um modo de ver e de ver-se. Essa é uma das redescobertas que Amitav Ghosh nos oferece, a de categorias de pensamento que nos possibilitem uma narrativa condizente com a percepção unificadora da coexistência entre espécies e natureza, um sentido suplementar a dar sustentação por outra via à ideia desgastada da preservação ambiental como imperativo incontornável de sobrevivência.
“Acredito que seja verdade que a terra aqui está viva; que ela não existe apenas, nem mesmo incidentalmente, como palco para a encenação da história humana; que ela é [ela mesma] protagonista” (p. 12). Amitav Ghosh nos convida a reconhecer (isto é, rever) o estatuto da nossa condição de existência no planeta. Para ele, “o instante do reconhecimento ocorre quando um saber prévio lampeja diante de nós, promovendo uma mudança instantânea em nossa compreensão daquilo que é contemplado. (…) [O reconhecimento] surge de uma confrontação renovada com uma potencialidade que já existe dentro de alguém” (p. 10-11).
Essa ideia fantástica da nossa coabitação, como parte de um sistema interdependente, com seres não-humanos me parece especialmente fecunda. Principalmente, no conjunto que forma com obras diferentes de vários importantes autores e autoras, também diversos nos seus modos de pensar, de escrever e de intervir publicamente, dos quais destaco Dipesh Chakrabarty, Donna Haraway, Tobie Nathan, Bruno Latour, Déborah Danowski, Eduardo Viveiros de Castro, Eliane Brum, Marco Antonio Valim, Davi Kopenawa e Ailton Krenak.
O planeta, portanto, não é compreendido como palco ou moldura, não é acaso, enquanto humanos seríamos a necessidade, não é fora enquanto somos dentro, tampouco é casa que poderia ser refeita ou trocada a qualquer momento quando se mostrasse insuficiente, insatisfatória, e só poderia ser considerado abrigo em sentido próprio semelhante ao modo como concebemos o corpo como parte intrínseca e inseparável do espírito.
Porém, mesmo esse protagonismo do planeta tampouco é refém dos automatismos e seus efeitos sobre o que tomamos como nosso modo de pensar. Significa que o solo e o planeta respondem à injúria de seu órgão doente, a humanidade. Todavia, não produzem os efeitos como revide ou, pior, punição, mas como transformação talvez em busca de um novo equilíbrio. O problema é que o alcance dessa mudança se traduz em impossibilidade das condições de sobrevivência das espécies.
Essa inteligibilidade é aquela de que depende nosso reconhecimento. E a literatura, segundo Amitav Ghosh, tem parte decisiva nisso, pois nos ajuda a aprender que o conhecimento, de algum modo, já existe em nossa humanidade, no que subsiste inconsciente em nós de uma condição originária de simbiose como parte dos elementos da natureza e mesmo da cultura, e constitui uma via que poderia nos despertar para essa consciência. Se lembrarmos o que nos diz Antonio Candido, que “a literatura é o sonho acordado das civilizações. Portanto, assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura. Deste modo, ela é fator indispensável de humanização, confirma o homem na sua humanidade” (“O direito à literatura”, p. 177). A literatura, portanto, é, a um tempo, sonho e despertar para ambos autores, o que, relativamente, à ordem mundial que nos leva à iminência das catástrofes das mudanças climáticas, significa também, nessa combinação aparentemente contraditória, a um outro mundo possível, distante dos atuais desatinos.
O livro combina advertência e convocação e nisso conjuga diagnóstico e apelo ao engajamento de cada um e de cada uma, sejamos ou não escritores e escritoras, de intelectuais a políticos, de docentes a estudantes, de produtores rurais a empresários urbanos, de população litorânea a interiorana. Nesse sentido, Amitav Ghosh parece ressuscitar, oportunamente, o sentido do engajamento caro a Jean-Paul Sartre. E se o leitor informado contrapuser a diferença entre os inimigos de um e de outro como fragilidade do argumento, estará, penso, sendo levado pelo disseminado equívoco de interpretação da história,[i] da suposta derrota dos inimigos que Sartre visava à época, mais imediatamente, tanto os nazistas, quanto os colaboracionistas franceses, e negligenciará, por isso mesmo, o quanto, na verdade, dentre vários outros fatores (sociais, econômicos, políticos e ambientais) a própria crise climática denuncia, ao contrário, a prova da vitória ideológica e, portanto, a vigência do pensamento e das práticas desses inimigos, porque foram e são também em relação ao clima. Eis um outro aspecto do desatino.
Dito assim, fica parecendo que se trataria de um livro de filosofia, mas não é. Ou melhor, é somente no sentido que todo bom livro evoca e lida com temas filosóficos. É a um tempo um livro de literatura, de história, de ética e de política. Reconhecemos rapidamente que os aspectos éticos se destacam desde o início, assim também os estéticos, porque são discutidas a perspectiva literária, a concepção narrativa e o imperativo do engajamento; a segunda parte, História, recupera a fortuna crítica em torno das pesquisas sobre as mudanças climáticas e a circunstância de ocupação do sudeste asiático, orientada por uma filosofia da história; a narrativa da terceira parte do livro assume uma posição política importante ao orientar-se pela ideia de expressão sartreana – “É nas colônias que as verdades da metrópole ficam mais visíveis”, na verdade, como uma das notas esclarece, uma antevisão de Frantz Fanon: “nas colônias a verdade estava nua, as metrópoles a preferiam vestida” – ao descrever e enfatizar as condições e os riscos em torno da costa indiana e, de algum modo, também de todo o sudeste asiático como indicativo do que poderia acontecer nas regiões litorâneas mundo afora. O sistema, portanto, mostra sua verdade perversa antes na periferia. Sabemos o quanto estão próximos, na economia e no imaginário, Brasil e Índia desde tempos coloniais.
Trata-se, por isso, de um consistente e circunstanciado esclarecimento histórico, uma viravolta de ponto de vista, combinado a um cuidadoso alerta, talvez porque catastrofista na medida, esclarecedor, e leva a uma convocação pelo cuidado com a vida, porque reintegra humanidade e natureza. Inicialmente, conforme escreve, dirigidos à chamada anglosfera, mas, a fortiori, também a toda humanidade.
Desde o início, mas também à medida que a leitura avança, junta-se à satisfação literária, a perplexidade histórica, a indignação com as posturas políticas e empresariais do mainstream, e a simpatia política e cultural com as posições do autor. Em todas essas dimensões, Amitav Ghosh denota destacada coragem política, autenticidade de pontos de vista e grande habilidade literária e imaginação argumentativa.
As citações em epígrafe pretendem sugerir que a preocupação é mais ampla e antiga do que poderia parecer à primeira vista. O gênero ensaístico e, como enfatiza, Amitav Ghosh, literário, da abordagem das preocupantes mudanças climáticas representa uma das frentes de conscientização e de combate nesse território de forças políticas e econômicas, que reconstituem esses autores, cada uma a seu modo e complementares. O novo tempo do mundo é o de expectativas decrescentes, do horizonte de catástrofes, mas, como deixa claro Amitav Ghosh, “dessa luta vai nascer uma geração que conseguirá olhar o mundo com mais clareza que nós; que será capaz de transcender o isolamento em que a humanidade se viu aprisionada na era de seu grande desatino” (p. 174). Afinal, “a revolução faz o bom tempo”, como apostamos com Guy Debord. E depois da leitura deste admirável livro, ficamos ainda mais confiantes na ideia de que ele tem toda razão.
*Denilson Cordeiro é professor de filosofia na Unifesp, no Departamento de Ciências Exatas e da Terra, campus Diadema.
Referência
Amitav Ghosh. O grande desatino: mudança climática e o impensável. Tradução: Renato Prelorentzou. São Paulo, Quina editora, 2022, 216 págs.
Nota
[i] É historicamente inegável que tenha havido uma vitória militar dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, mas a questão é reposta aqui no sentido da sobrevivência das perspectivas e do eixo ideológico nazista.
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