O jogo dos mercadores da morte

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Por OSVALDO COGGIOLA*

Nos transformamos no elo mais fraco de uma corrente podre.

As primeiras infecções do novo coronavírus foram identificadas no final de 2019, mas somente a 11 de março de 2020 a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou que o mundo enfrentava uma emergência sanitária, elevando a classificação para o nível de pandemia da Covid-19. Os registros mundiais indicavam 150 mil pessoas infectadas e 4,6 mil vidas perdidas. Um ano depois os números globais já estavam em 118 milhões de casos e 2,6 milhões de mortes.

Considerado inicialmente um foco marginal, as cifras e a realidade do Brasil puseram o país no centro da atenção internacional. A velocidade da expansão e mutação do vírus acenderam o alarme de uma ameaça à segurança sanitária mundial, na medida em que as cepas brasileiras se espalhem em outros países (já não é possível entrar na Argentina e em muitos outros países, vindo do Brasil), favorecendo uma nova e mais letal onda pandêmica. Para piorar as coisas, até 28 de março, apenas 2,89% da população brasileira tinha recebido a segunda dose da vacina.

Ao completar um ano o primeiro caso registrado, o Brasil teve as maiores médias móveis de óbito e casos de toda a pandemia. Desde o início de 2021, a situação da pandemia no país só piorou, em contraste com os resultados efetivos em boa parte do mundo. Em 1º de janeiro, na média móvel semanal, o Brasil tinha 5,9% dos casos e 6,3% dos óbitos mundiais (o que já era excessivo, para um país que tem 2,8% da população mundial e conta com um enorme Sistema Único de Saúde) até chegarmos, em 27 de março, até impressionantes 34,3% dos óbitos mundiais.

Além disso, no ritmo atual da vacinação, levaríamos dois anos para vacinar apenas os grupos emergenciais estabelecidos no Plano Nacional de Vacinação. A imunização só é efetiva se o ritmo de vacinação for mais rápido do que a contaminação. Do contrário, o mais provável é que surjam novas variantes que podem tornar as vacinas existentes ineficazes. O descontrole da transmissão do vírus e a lentidão do processo de vacinação abriram espaço para o surgimento de novas cepas e mutações, como a variante P1: o Brasil é considerado um celeiro de novas variantes e uma ameaça ao controle da Covid-19 em todo o mundo. No Brasil morreram quase metade dos trabalhadores da saúde vitimados mundialmente pela pandemia, segundo levantamento do Conselho Internacional de Enfermagem.

Mantida a atual velocidade, o Brasil levará cerca de quatro anos e meio, ou 1.729 dias, até que toda a população receba as duas doses, quando a Pfizer já alerta sobre a necessidade de uma terceira. Já se insistiu larga, embora não suficientemente, sobre a responsabilidade do governo Bolsonaro nesses resultados e nessa perspectiva trágica. Somados à gravidade da pandemia, o negacionismo, a propagação de notícias falsas e, sobretudo, a falta de vacinas e de insumos básicos para o cuidado de doentes, entre outros, revelaram seu absoluto desgoverno.

Atos contínuos do governo federal desnudaram, desde o início da pandemia, uma política sistemática que conduziu o Brasil para a situação calamitosa que vivemos: “É bom que as mortes se concentrem entre os idosos. Isso vai reduzir nosso déficit previdenciário”: essas foram as palavras de Solange Vieira, nomeada por Bolsonaro como Superintendente da SUSEP (Superintendência de Seguros Privados), no auge da primeira onda de Covid, em junho de 2020, em uma reunião do governo federal, que celebrou a morte de idosos por coronavírus porque melhoraria o desempenho da economia, reduzindo o déficit previdenciário, uma idiotice contábil e um crime humanitário premeditado.

Sob o governo Bolsonaro, o Brasil conseguiu a combinação mais regressiva de sua história: somar a catástrofe humanitária com a catástrofe social, a crise ambiental e a crescente condição de pária internacional. No entanto, seu desgoverno agiu tanto mais eficazmente na disseminação do vírus, e da doença e morte decorrentes, quanto mais conseguiu realizar isso sobre uma base estrutural: a destruição sistemática, levada adiante ao longo de décadas por governos diversos, das bases científico/tecnológicas, econômicas e sociais, que o país precisava e precisa para enfrentar uma calamidade desta natureza.

Privatizações, desindustrialização e reprimarização econômica, sucateamento do ensino superior e da pesquisa científica, cortes orçamentários em áreas vitais, tragédias ambientais (como Mariana e Brumadinho) e, finalmente, a atual tragédia sanitária, estão unidas por um fio condutor. Ignorá-lo, não atacá-lo politicamente, concentrando legitimamente a atenção nas consequências imediatas da letal onda atual, significa conformar-se com o presente desastre e com um futuro tenebroso, inclusive no pós-pandemia.

Pois esses fatores já estão presentes na atual catástrofe sanitária. Um estudo sobre a Covid-19 no Brasil mostrou que as vulnerabilidades socioeconômicas regionais afetaram mais o curso da pandemia do que a prevalência de fatores de risco para a doença, como idade e estado de saúde. Os pesquisadores desenvolveram um índice de vulnerabilidade socioeconômica baseado nas características das famílias e no Índice de Desenvolvimento Humano. O coronavírus foi identificado primeiro em São Paulo e no Rio de Janeiro, mas foi nas regiões Norte e Nordeste que as mortes estouraram. A pior situação, como logo se viu, foi nos estados do Norte, onde não há predominância dos riscos tipicamente associados à Covid-19 (idade avançada e carga de doenças crônicas):  o que existe é miséria e escassez de recursos hospitalares.

O Brasil, porém, não é uma exceção, mas o ponto nevrálgico de um processo universal. Mundialmente, alguns especialistas levantaram a hipótese de estarmos apenas no início de uma “pandemia de pandemias”. Camila Malta Romano, virologista do Instituto de Medicina Tropical da USP, afirmou que esta não é a última pandemia, seria apenas uma questão de “quando”, e não de “se”, outra pandemia vai acontecer: “Pandemias (nível global), embora menos comum do que epidemias (nível local) ocorrem de vez em quando e temos exemplos passados de situações esporádicas como a peste bubônica, mais de uma de influenza (gripe espanhola, asiática, suína etc.

Entretanto, parece que ultimamente a emergência de agentes potencialmente pandêmicos tem sido mais frequente. Por exemplo, as pandemias de influenza: 1918 – gripe espanhola; 1958- H2N2; 1968 -H3N2; 2009 -H1N1. SARS, causado por um vírus bastante similar ao atual SARS-COV-2, provocou a primeira epidemia do século XXI (2003) e já naquele momento, sabíamos que não seria a última. Portanto a pandemia do SARS-COV-2 certamente não será a última”.

Amesh Adalja, do Centro de Segurança Sanitária da Universidade Johns Hopkins, especialista em doenças infecciosas emergentes e biossegurança, explicou que o mundo está repleto de micro-organismos; é um fato biológico simples que as doenças infecciosas continuarão a nos impactar: “Algumas dessas infecções poderão se espalhar amplamente devido aos padrões e tempos de viagens, ao surgimento das megacidades e às interações com animais” (Boletim da SBMT, Sociedade Brasileira de Medicina Tropical).

Diversos estudos já apontam a responsabilidade da destruição ambiental (outro processo favorecido pelo atual governo brasileiro, mas não iniciado por ele) na “liberação” dos agentes patógenos: “Os surtos zoonóticos emergentes serão mais frequentes devido ao aumento sistêmico dos gatilhos para essas emergências, como desmatamento, fragmentação florestal e conversão de florestas em pastos, áreas de mineração”, assinalou Alessandra Nava, do ILMD/Fiocruz Amazônia: “A redução da biodiversidade é uma forma de ocorrência dessa ruptura devido à alteração da transmissão de patógenos e parasitas, o que se supõe que tenha sido a causa da emergência do Covid-19”. Para Fernando Aith, da FSP-USP, “a ação do ser humano sobre o planeta está alterando o equilíbrio ambiental de tal maneira que novos riscos à vida do Homem na Terra certamente virão, seja da natureza (vírus, terremotos, mudança climática), seja do engenho humano (medicamentos, terapias, superbactérias, clonagens, Brumadinho), seja das novas relações sociais e de trabalho que se instalam (teletrabalho, redes sociais, etc.)”.

Essas preocupações quanto ao futuro parecem descabidas num país em que muitos pacientes morreram e morrem, não por falta de medicamentos adequados, mas por ausência de um insumo básico: oxigênio. Mas isto também se vincula com o que precede. A FUP (Federação Única dos Petroleiros) denunciou: “Enquanto cada vez mais pacientes com Covid morrem sufocados pela falta de cilindros de oxigênio, em meio ao colapso do sistema de saúde, a Fábrica de Fertilizantes Nitrogenados da Petrobrás no Paraná poderia estar produzindo 30 mil metros cúbicos de oxigênio por hora. Isso daria para encher 30 mil cilindros hospitalares pequenos (por hora!)”.

Mas a fábrica foi fechada “pela diretoria da Petrobrás há pouco mais de um ano, surpreendendo os mil trabalhadores da unidade, que foram sumariamente demitidos… o que levou a categoria petroleira a realizar uma greve histórica, em fevereiro do ano passado, que durou 21 dias”, que passou em brancas nuvens na grande imprensa (e não só nela). O fechamento dessa fábrica, e de outras, deveu-se à pressão em favor da “racionalização” da Petrobras, exercida pelos grandes investidores (fundos) internacionais, detentores de ações da maior empresa brasileira na Bolsa de Wall Street.

E assim, o retrocesso histórico do Brasil, sua transformação crescente em plataforma de valorização fictícia do capital financeiro, impulsionada em maior ou menor grau por todos os governos pós redemocratização, desaguou no enfraquecimento estratégico do país para enfrentar as consequências destrutivas da crise capitalista mundial. O que aconteceu em Manaus, certamente, foi resultado direto da política genocida e negacionista do governo Bolsonaro, mesmo outorgando uma parcela de responsabilidade ao governo estadual do Amazonas e da prefeitura da capital.

O negacionismo deixou morrer à mingua centenas de pessoas e provocou o colapso do sistema de saúde amazônico. Foi a demonizada Venezuela que salvou, talvez, milhares de vidas, ao despachar caminhões-tanque de oxigênio diante da transformação dos hospitais manauaras, desprovidos do insumo, em câmaras de asfixia involuntárias. Como se sabe, no entanto, o ministro de Relações Externas, que não descartava invadir e destruir a Venezuela, continuou no seu cargo, do qual foi deposto apenas quando o radar político do “Centrão” parlamentar registrou novos ventos, nacionais e internacionais, não referidos precisamente à Venezuela, e cobrou imperativamente sua demissão.

O Ministério Público Federal concluiu que a crise do oxigênio em Manaus foi causada por omissão de vários gestores, com destaque para o ex-ministro militar Eduardo Pazzuello. Segundo os procuradores, ele agiu de forma atrasada e lenta no envio da equipe para diagnosticar a nova onda de casos da Covid-19. Depois, foi omisso no monitoramento da demanda de oxigênio e na adoção de medidas para evitar o desabastecimento. Também demorou na adoção de medidas para transferência de pacientes que aguardavam leitos. É claro que não é função da Procuradoria Geral levar ao banco dos acusados as condições estruturais que possibilitaram que a política negacionista se instalasse comodamente no leito da destruição dos recursos produtivos (em todos os sentidos) do Brasil, provocando uma catástrofe humanitária. O que não é possível é esquecer que a destruição das forças produtivas sociais é o único recurso de capitalismo, sistema mundial, para sobreviver, em condições de crise e declínio históricos, e não tirar disso as conclusões político-estratégicas correspondentes.

Nessas condições, o maior sistema público de saúde do mundo, o SUS, não conseguiu ser barreira eficiente contra os efeitos devastadores da Covid.  O desinvestimento e sucateamento da saúde pública, a privatização do setor, levaram a esse resultado em condições de crise sanitária mundial: fundos globais dominam os planos de saúde privada no Brasil, os laboratórios de diagnósticos e os hospitais com tecnologia de ponta. Voltados ao lucro máximo, cobram cada vez mais e empurram o trabalho pesado ao SUS.

O sistema privado, concentrado e monopolizado por poucas empresas estrangeiras (de propriedade de fundos hedge, como o BlackRock), foi também superado e precisou acudir, em desespero de causa, ao combalido sistema público. No Brasil, a situação não só escancara o quanto “as populações ainda podem ser vulneráveis a cenários de desastres justamente quando as coisas parecem estar melhorando”, nas palavras de The Atlantic, a famosa publicação “progressista” norte-americana. Escancara, sobretudo, o quanto a “modernização” capitalista, em condições de declínio do modo de produção, encobre um processo destrutivo que precipita os elos mais fracos do sistema em direção do abismo civilizacional.

O governo Bolsonaro encontra seu pleno significado reacionário nesse quadro decadente, não é o produto de uma combinação circunstancial. Mesmo que a falta de doses de vacina seja um impeditivo para restringir a circulação do vírus, não é o único: não há explicações razoáveis para a demora em distribuir as poucas doses que o país já tem. Em um cenário de escassez de oferta, a última coisa de que precisamos é o setor privado competindo com o SUS; no entanto, é o que o governo faz, legalizando a compra e uso de vacinas pelo “setor privado” (o capital) e correndo atrás de mais contratos. Mas, segundo os juízes, não haveria essa concorrência pois, afirmam, caso as vacinas não sejam compradas por essas entidades, as doses acabariam indo para outros países.

A “salutar concorrência”, inclusive (e sobretudo) internacional deve prevalecer sobre qualquer outra consideração, inclusive se provoca um genocídio programado dos mais pobres, fracos ou carentes. Pois, que outro nome pode se dar à criação de múltiplas filas, com pessoas jovens e saudáveis podendo passar à frente de quem tem maior risco de morrer? A doença mortal tem classe e raça. Quem se infecta mais e morre mais por Covid-19, no Brasil, são as pessoas negras, que estão ficando para trás nas filas da vacinação. Uma parte da população negra que poderia estar enquadrada nos grupos prioritários, por estar na linha de frente contra a pandemia, não recebeu a vacina: em algumas regiões, trabalhadores da limpeza e segurança dos hospitais não entraram na primeira etapa.

Todos os elos da corrente semicolonial que ata o país, e da decomposição capitalista mundial (concentração e monopolização são suas únicas armas para combater “sua” crise) amarraram o Brasil atacado pela pandemia, lhe provocando estragos irreparáveis, quantitativa e qualitativamente. Isto não é um processo, ou uma tendência, brasileira, mas mundial e universal, que encontra no Brasil sua expressão concentrada. Nos transformamos no elo mais fraco de uma corrente podre, esta é a razão última do aparentemente inexplicável, ou do que se pretende explicar apelando para a patologia mental dos circunstanciais ocupantes do poder político, criando a ilusão de que bastaria substitui-los, eleitoral ou “golpisticamente”, por pessoas razoáveis, para remediar uma situação que afunda suas raízes na nossa história e nas forças dominantes da economia mundial.

Os fundos financeiros promovem um mercado privado da vacina, que lhes dá enormes lucros à custa da saúde da população mundial. A lógica do abastecimento “direto” de vacinas é um monumental “fura-fila” privado, para criar empresas com pessoal vacinado, uma “vantagem comparativa” estratégica. Num passado ainda recente, os Estados Nacionais com capacidade fabricaram vacinas para doenças que representavam uma ameaça à saúde global, e o faziam em cooperação uns com os outros. O neoliberalismo, que não é uma patologia, mas um (só um) dos recursos do capital diante da crise, viu a terceirização da pesquisa, o desenvolvimento e produção de vacinas por grandes empresas farmacêuticas, cujos enormes lucros resultaram no poder do mais forte lobby político do mundo, projetado para proteger e aumentar seus enormes benefícios por meio das patentes. O Tratado da Organização Mundial do Comércio (OMC) de 1995 sobre Aspectos da Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (acordo TRIPs) é um resultado desse lobby.

Milhões de pessoas morrem anualmente por falta de acesso às vacinas, enquanto dezenas de milhões de crianças no mundo todo ainda não têm acesso à imunização. A falha do mercado de vacinas é corroborada pelo fato de que, até 2017, os países de baixa e média renda respondiam por 79% do volume de vendas de vacinas do mercado global e, ainda assim, apenas por 20% do valor total real arrecadado. Os pobres simplesmente não representam um mercado lucrativo o suficiente para impulsionar o investimento e a produção necessários. O Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual afirmou: “O Brasil se encontra completamente refém das exigências feitas pela indústria farmacêutica privada, que está aproveitando a situação para impor suas condições e concentrar ainda mais poder”.

A grande indústria farmacêutica (Big Pharma) apenas investe, em vacinas e pesquisa e desenvolvimento de tratamento terapêutico, para doenças que são mais prevalentes em países mais ricos ou requerem tratamento contínuo. Esses medicamentos costumam ser muito caros e limitados àqueles com serviços de saúde privados ou aos hospitais do setor público onde os Estados Nacionais podem pagar.

A corrida pelo acesso às vacinas contra o coronavírus demonstrou novamente a desigualdade (ou seja, opressão dos mais fracos pelos mais fortes) entre as nações no mercado farmacêutico. Além da Covid-19, o problema se manifesta no subfinanciamento da pesquisa em doenças tropicais; no sistema de direitos de propriedade intelectual que exclui países “periféricos” dos resultados da pesquisa; e na dilapidação das capacidades de pesquisa e produção dos países mais pobres.

Nas palavras de Maíra Mathias, em texto publicado no site Outras Palavras, “um dos braços mais conhecidos desse complexo – a indústria farmacêutica – atravessa não só o Brasil e o SUS, mas outros países e sistemas de saúde. Nas últimas décadas, houve um intenso processo de aquisições e fusões, que deixou poucas e grandes empresas na liderança desse setor. Na seara das vacinas, o afunilamento foi ainda maior, com quatro grupos econômicos de matriz norte-americana e europeia concentrando 90% do mercado. As vacinas respondem pelo quinto maior faturamento de produtos da área farmacêutica. Com a pandemia devem ser catapultadas ao segundo nicho mais lucrativo, atrás apenas dos produtos oncológicos. O faturamento do mercado como um todo é de cerca de um trilhão de dólares, com medicamentos contra câncer respondendo por 150 bilhões desse montante. Calculando o preço das 8,6 bilhões de doses de imunizantes contra o novo coronavírus prometidas para 2021 no mundo, se projeta um faturamento adicional de 40 bilhões de dólares para as vacinas, num total de 80 bilhões.  Esse fenômeno criou distorções que têm custado caro aos sistemas nacionais de saúde e descolado os esforços de inovação das necessidades da maior parte da população mundial. 80% das receitas globais de vendas de imunizantes vêm de países ricos, embora essas nações só representem 20% do volume anual de doses fornecidas no mundo”.

Após o acúmulo de vacinas por um punhado de países, uma nova denúncia revela as pressões da Pfizer contra vários Estados da periferia: “A farmacêutica Pfizer, com sede nos Estados Unidos, está exigindo garantias dos países, interferindo em sua legislação e até exigindo bases militares”. Isso foi classificado como um ato “terrorista”. Por meio de acordos bilaterais com os laboratórios, os governos ocidentais reservaram as primeiras bilhões de doses contra a Covid 19. Apesar das posturas e da retórica sobre os bens públicos mundiais, os líderes dos países ricos mantêm sua preferência por opções que preservem a arquitetura financeira e sanitária, em que a busca pelo lucro ocupa o centro do sistema sanitário mundial.

Escreveu Riccardo Petrella, “suspender a aplicação das regras de patentes sobre as vacinas “perturbaria” a colaboração com as empresas farmacêuticas. O que mais podemos dizer? É claro que os dominantes atuais nunca cederão ao princípio da privacidade das patentes. Cabe aos cidadãos obrigar os representantes eleitos a respeitar o direito à vida de todos os habitantes da Terra”. Ou promover as mudanças políticas que não nos deixem a mercê de “representantes eleitos” com os meios do grande capital, para levar adiante, durante longos e mortíferos períodos, as estripulias necessárias à preservação e aumento dos lucros de seus verdadeiros eleitores/controladores. Mas essa, a verdadeira democracia, exige uma revolução social.

Como a eficácia final da vacina permanece desconhecida, incerteza acentuada pelo surgimento de novas cepas, a vacinação global enfrenta uma crise. Estamos no meio de uma escassez global de suprimentos de vacinas contra o Covid-19, que não afeta a todos por igual. Estamos revivendo, de modo incrementado, o que aconteceu no início da pandemia, quando cada país lutou por seu próprio objetivo. Muito rapidamente se desencadeou uma luta de interesses por um enorme mercado de saúde e uma luta pela hegemonia política que vem de mãos dadas com o monopólio produtivo e comercial. Isso inclui um arsenal de produtos, desde seringas e respiradores, passando pelas próprias vacinas, até geladeiras ultrafrias. A luta contra a pandemia é, acima de tudo, de natureza social e política. Inclusive dentro da classe capitalista e da ordem imperialista: os laboratórios estão sob a mira de todas as potências europeias, por causa do rompimento de seus contratos de fornecimento.

As prioridades de entrega de vacinas por laboratórios internacionais são um segredo bem guardado.  Até agora as vacinas só chegaram a cerca de 50 países, a maioria de alta renda, e 75% das doses se concentram em apenas dez nações. A sobrevivência dos grandes fundos de investimento mundiais, que controlam os grandes laboratórios, exige desamparo e morte para a maioria da população. A declaração de todas as vacinas como um bem público, a abolição da lei de patentes e o direito de todos os países de acessar suas fórmulas e procedimentos de fabricação é uma luta crucial para acabar com a barbárie que os Estados e monopólios da saúde estão perpetrando contra as populações do mundo todo, mas especialmente dos países em condição subordinada pelo sistema mundial (imperialista) de domínio do capital financeiro. Os meios postos em ação para essa luta devem estar à altura do que está em jogo e da força, mundial, dos mercadores da morte.

*Osvaldo Coggiola é professor titular no Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História e Revolução (Xamã)

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