Nota sobre o ultraesquerdismo

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Por VALERIO ARCARY*

Os exageros tendem a favorecer expectativas infundadas, e são a antesala de futuras desmoralizações

“No que diz respeito à Áustria, antes da invasão nazista, Trotsky disse que era um crime que o PC opusera a palavra de ordem de ditadura do proletariado ao nazismo, quando os socialdemocratas e as massas austríacas só estavam dispostas a lutar pela democracia burguesa. A consigna do PC deveria ter sido a de lutar todos juntos pela democracia, exigindo ao PS que fosse consequente nessa luta e mobilizara as massas. Com isso, se poderia derrotar o fascismo austríaco (…) A política trotskista, a autêntica política trotskista, não os delírios provocados pela marginalidade, sempre procura a consigna mais fácil, mais compreensível para que a classe operária e as massas se mobilizem e lutem. Os escritos de Trotsky são uma cátedra de como buscar essas consignas. Para nós, um slogan é “razoável”, se é “fácil”, se é compreensível para o movimento dos trabalhadores e serve para mobilizar” (Nahuel Moreno) [1].

No domingo passado uma faixa gigante foi levantada na Avenida Paulista pela defesa da ditadura do proletariado. A repercussão na mídia foi imensa e, completamente, desproporcional ao episódio. Alguns canais de televisão destacaram que nas manifestações anti-bolsonaristas estavam presentes grupos extremistas de esquerda que têm tão pouco apreço pela democracia quanto os grupos fascistas que pedem intervenção militar, igualando as duas.

Trata-se, evidentemente, de uma manobra, uma operação demagógica: denunciar o extremismo de direita e de esquerda, como se fosse simétricos. Não são. A faixa na Paulista era uma iniciativa minoritária e paralela ao objetivo do Ato organizado pelo Fora Bolsonaro. Nas manifestações impulsionadas pelo bolsonarismo os apelos pela intervenção militar são o seu eixo ordenador da mobilização em torno de “Todo o poder a Bolsonaro”.

Mas como podemos aprender dos episódios de junho de 2013, é bom lembrar como foi importante, senão decisivo, para a contra-ofensiva reacionária, a criminalização dos blackblocs depois da trágica morte do cinegrafista da Band na Central do Brasil no Rio de Janeiro em fevereiro de 2014.

A faixa na Paulista parece ingênua, mas não é inofensiva. Há vários grupos na esquerda brasileira que se opõem à campanha pelo Fora Bolsonaro e, em especial, são hostis à defesa da tática do impeachment. A tática parlamentar de usar o recurso constitucional do impeachment aposta na unidade de ação com dissidências burguesas, e obedece à necessidade de dividir o campo do inimigo de classe. Em uma situação defensiva, em especial em condições de confinamento, em que não podemos expressar nas ruas a força social da classe trabalhadora e dos oprimidos, aproveitar todas as fissuras, explorar todas as brechas, impulsionar todos os conflitos no campo do inimigo é central.

Só é possível a aprovação do impeachment, se uma parte importante da maioria do Congresso, que aprovou a maior parte dos projetos do governo, se deslocar. Isso não é impossível, mas ainda não estão reunidas as condições. Acontece que uma crise nacional de grandes proporções está se desenhando no horizonte dos próximos três meses com a simultaneidade de: (a) um cataclismo sanitário com a dissiminação da pandemia atingindo as dimensões de uma tragédia humanitária; (b) uma crise social sem precedentes com o desemprego próximo de 20% da PEA (população economicamente ativa), e a suspensão do auxílio emergencial; (c) uma crise política do governo Bolsonaro em função das investigações no STF e no TSE; (d) o provável início de mobilizações de massas em grande escala quando forem mais seguras as condições da ida às ruas. Como estes quatro fatores irão se desenvolver não é hoje previsível, dependendo muito do impacto dos acontecimentos na consciências das classes. Há várias hipóteses, não por ausência de causalidades, mas por excesso.

Mas a defesa do impeachment é condenada por grupos na ultraesquerda  porque seria uma iniciativa por dentro das instituições do regime. Consideram o impeachment uma saída, diretamente, reacionária, porque está prevista a posse de Mourão. Sim, trata-se de uma reivindicação democrática, portanto, compatível com o regime, porém não é reacionária. É muito limitada. Seria muito melhor, mesmo nos limites das saídas previstas pela Constituição, um desenlace favorável no TSE que anularia o resultado eleitoral de 2018, e condicionaria a convocação de eleições presidenciais antecipadas. Somente em situações revolucionárias são possíveis saídas por fora do regime. E estamos, infelizmente, em uma situação reacionária.

Alguns argumentam que a luta pelo impeachment só serviria para favorecer um “acordão” que estabilizaria um regime que já estaria “cambaleante”, dando lugar a um governo Mourão mais forte que o governo Bolsonaro. Este tipo de prognóstico parece marxista, mas não é. As três ideias são exageradas, portanto, erradas. O regime não está em crise terminal; a queda de Bolsonaro seria uma derrota terrível para os neofascistas; um governo Mourão não seria mais forte, mas mais fraco; o “acordão” passa, por enquanto, pela sustentação de uma tutela sobre Bolsonaro; e a campanha pelo impeachment cumpre um papel, exatamente, oposto, desestabilizador.

Não por acaso alguns ultra-esquerdistas se apressam em agregar a palavra de ordem de Greve Geral à de impeachment Já, um mantra de inspiração anarquista. A banalização da greve geral, em pleno auge da pandemia, é uma fantasia absurda, em primeiro lugar porque é impossível. Mas a greve geral é um método de luta, não um programa. Qual é a saída, senão eleições diretas antecipadas? Clamar pelo “povo no poder”, ou “Todo o poder aos conselhos populares”, quando os trabalhadores e o povo não se colocam, nem remotamente, a tarefa da insurreição é uma estratégia de inspiração anarquista.

Essa posição irrealista se fundamenta em uma apreciação sobrevalorizada, portanto, imaginária, da relação social e política de forças que mantém pouco contato com a realidade, e resulta em uma fórmula propagandista, portanto, impotente, inócua, inocente. Porque os exageros tendem a favorecer expectativas infundadas, e são a antesala de futuras desmoralizações. Defendem que o governo Bolsonaro está em crise e débil.

Sim, o governo Bolsonaro está, crescentemente, isolado. Mas este tipo de análise comete, pelo menos, três erros graves: (a) o enfraquecimento de Bolsonaro não significa que vai “cair de maduro”, porque ele reage, amplia a sustentação no Congresso via integração do Centrão, procura fascistizar a sua corrente nas camadas médias, e mantém relação com as Forças Armadas; (b) ignora o fortalecimento do regime político, o Congresso, a Justica, a mídia comercial, que apostam em tutela da presidência para evitar um segundo impeachment em prazo curto, e mantém o apoio da classe dominante; (c) desconhece as dificuldades da mobilização popular.

Infelizmente, uma parcela importante da esquerda anticapitalista brasileira diminuiu a importância da luta por Fora Bolsonaro, Diretas já para a presidência. Mas elas são as bandeiras que podem ajudar a construção de uma Frente de esquerda que tenha condições de mobilizar os setores mais avançados da juventude e dos trabalhadores e, nesse marco, a unidade na ação com dissidências burguesas. Esse possível desdobramento favoreceria, em curto prazo o PT e Lula? Sim, favoreceria. Não é por outra razão que os setores burgueses que se posicionam em oposição a Bolsonaro, a começar por FHC e o PSDB, são contra o impeachment.

Mas, muito mais importante, seria o caminho para derrotar Bolsonaro e o neofascismo. São a palavra de ordem mais “fácil” para colocar milhões em movimento e, por isso, podem cumprir um papel revolucionário. Uma esquerda socialista digna de futuro não poderá se fortalecer, se não souber por onde se abre o caminho.

*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de As esquinas perigosas da história (Xamã).

Notas

[1] MORENO, Nahuel. Conversaciones con Nahuel Moreno.

http://www.corrienteroja.net/conversaciones-con-nahuel-moreno/

 

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