O lawfare ou a judicialização da política

Imagem: Flora Orosz
image_pdf

Por EMIR SADER*

O lawfare e a judicialização da política, como golpe brando, sucedem as revoluções coloridas na guerra híbrida. Essa estratégia, exemplificada no Brasil a partir das manifestações de 2013 e na perseguição a Lula, visa criminalizar a esquerda e subverter a democracia

Na era neoliberal, no seu primeiro período, os partidos que assumiram o modelo neoliberal tiveram vitórias generalizadas. Começaram na Europa e se estenderam à América Latina, generalizando-se praticamente por todo o mundo. O novo modelo econômico estava envolvido com uma série de ideias e valores renovadores, que preparavam o caminho para a implantação desse modelo e para sua consolidação. Nunca se havia dado um período de tão intensa luta ideológica, levada a cabo por meios tradicionais e novos, globalizados, que promovem uma visão de mundo renovada.

A crítica do Estado desembocava na apologia do mercado, que promovia a mercantilização das relações sociais. Um processo que promovia, ao mesmo tempo, a liberdade dos indivíduos, confundida com o acesso ao consumo. A esfera mercantil exalta o consumidor como seu sujeito.

Essa é a expressão concreta da hegemonia neoliberal em escala mundial, que faz da esfera ideológica seu fato de maior força. O elemento de maior força da hegemonia dos EUA no mundo está no que eles chamam de “american way of life”. No estilo de vida que tem no consumo – e no shopping center, em particular – seu eixo.

A identificação, realizada pela antropologia, entre ser e ter, expressa essa visão do mundo. Não é o cidadão – sujeito de direitos – sua referência, mas o consumidor que, por definição, tem acesso a recursos para dispor de bens. A exaltação da liberdade individual e sua identificação com a liberdade de acesso a bens é característica do neoliberalismo e da sua visão do mundo. Um acesso que passa pelo filtro de sociedades extremamente desiguais. Não seria livre quem não tem recursos para ter acesso a bens fundamentais – situação da grande maioria da população nos países do Sul do mundo? A liberdade então teria preço?

Uma sociedade que se estrutura em torno das relações de mercado incrementa a desigualdade e torna mais difícil o acesso a bens para a grande maioria. Não pode ser uma sociedade em que os governantes sejam eleitos pela maioria consciente da população. Daí a importância da esfera ideológica, da luta de ideias, para incrementar a alienação, a falta de consciência social e política da maioria da população.

No seu livro “Guerras híbridas – Das revoluções coloridas”, o pensador russo Andrew Korybko afirma que a guerra híbrida é a combinação entre as revoluções coloridas e as guerras não convencionais. As revoluções coloridas – combinando ações de propaganda e uso das redes sociais – qe buscam desestabilizar governos por meios de manifestações de massa, pela manipulação de valores genéricos como democracia, liberdade. Ela é um golpe brando. Se ela não for suficiente para derrubar governos, a guerra híbrida avança para a guerra não convencional, o momento do golpe rígido.

É a nova estratégia da direita. A última tentativa de golpe militar ou tentativa de golpe tradicional foi contra Hugo Chavez, em 2002, e fracassou rapidamente. Já não era tempo desse tipo de golpe, típico das décadas de 1960 e 1970. Com as transições democráticas nos países que tinham tido ditaduras militares – Brasil, Argentina, Uruguai, Chile -, a direita teve que renovar seu arsenal de estratégias.

Korybko busca antecedentes na China sobre a guerra indireta, como uma das formas mais eficazes de combater um inimigo. Ela permitiria derrotar o inimigo, economizando recursos, atacando-o indiretamente. As técnicas das revoluções coloridas se fundamentam na psicologia de massas, ao buscar disseminar uma mensagem para um público mais amplo. Ela procura a mente do indivíduo, tratando e mobilizá-lo à ação. Ela se transforma numa guerra em rede.

No Brasil, a forma que assumiu a guerra colorida foram as mobilizações de 2013. Mobilizações iniciadas com a rejeição ao aumento das tarifas de transporte, protagonizadas basicamente por estudantes, se estenderam rapidamente por todo o país. Mas foram mudando de caráter. As reivindicações foram derivando para a rejeição da política, do governo, do Estado – que na prática se dirigiam contra o governo do PT – e se prestando, assim, para serem manipuladas pelos meios de comunicação. Lemas como “O gigante acordou” e “Contra tudo isso que está aí” facilitaram transformar as manifestações de luta por uma reivindicação concreta a um tipo de ação que se voltava contra o governo do PT.

Assim, preparava-se a virada política de 2016, que levou ao golpe e à nova ruptura da democracia. Para isso a direita e seus meios de comunicação se valeram do lawfare, da judicialização da política, transformando em crime para o impeachment da Dilma uma simples transferência de recursos dentro do orçamento, com nenhum tipo de desvio de recursos.

Da mesma forma que levaram à prisão e condenação do Lula, por acusações, sem nenhuma prova, da suposta compra de imóveis. O uso da judicialização para a criminalização das políticas de governos de esquerda. Fenômenos que depois se repetiram em outros países, como na Argentina, contra Cristina Kirchner.

Foi assim que aquelas mobilizações começaram a virar a correlação de forças no cenário ideológico e político, que até ali consagravam a luta contra as desigualdades, levadas a cabo por governos do PT. Se preparava a virada de 2016, que levou ao novo golpe, desta vez de novo tipo, e à ruptura da democracia. 

É a nova estratégia da direita.

*Emir Sader é professor aposentado do departamento de sociologia da USP. Autor, entre outros livros, de A nova toupeira: os caminhos da esquerda latino-americana (Boitempo). [https://amzn.to/47nfndr]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
C O N T R I B U A

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
4
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
7
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
8
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
9
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
10
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
11
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
12
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
13
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
14
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
15
O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES