Por ANDRÉS DEL RÍO & ANDRÉ RODRIGUES*
O luto acionado e encenado por Jair Bolsonaro se torna uma tecnologia de multiplicação do sofrimento social
A morte é um momento de sofrimento e de acolhimento coletivo. O luto é uma forma canalizar esse mar de dor social que se materializa num ato oficial. O luto é um rito que tem várias conotações e consequências, como por exemplo: o hasteamento da bandeira a meio mastro é sinal exterior de luto oficial. Em geral, o período normal para luto nacional é de três dias, podendo excepcionalmente, pelos notáveis e relevantes serviços prestados ao país pela autoridade falecida, ser estendido por até sete dias.
O atual presidente do Brasil compreende o luto não como uma forma de canalização da dor social, mas de uma indicação de apreço pessoal. Ou seja, como toda forma de agir do atual mandatário, toma para si uma ação que é de todos. Por esta característica, podemos dizer que sua postura diante da morte pouco tem a ver com o luto. Estar de luto é um ato de memória, uma postura vital diante da morte como esquecimento, como desaparecimento. No luto, buscamos maneira de seguir vivendo. É um culto aos ancestrais e aos vivos. Nada pode ser mais contrário ao luto do que o culto à morte, sua banalização e desejo de destruição.
Jair Bolsonaro, que tanto apreço tem à morte, pouco se importa com o luto. Na verdade, ele toma a morte como uma oportunidade a mais para mostrar desprezo e desumanidade com o sujeito falecido. Claro, para Jair Bolsonaro a sociedade é descartável.
Da mesma forma que o desvio ético sobre a outorga de condecorações e medalhas,[i] o luto para o atual mandatário tem características próprias: não representativas, seletivas e pautadas pelo apreço pessoal. Tão importante quanto decretar o luto oficial, é o silencio oficial diante de uma morte. Aqui é onde o luto acionado e encenado por Jair Bolsonaro se torna uma tecnologia de multiplicação do sofrimento social, exatamente o efeito contrário desse instituto.
Vejamos alguns exemplos da crueldade da utilização de instituto oficial do luto, do pulso do perfil dos homenageados pelo Trump tropical. No ano de 2022, o atual mandatário decretou cinco lutos oficiais. Cada um deles tem um simbolismo da tragédia de ter um desalmado na presidência. Em 25 de janeiro de 2022, ele decretou luto oficial pelo falecimento do professor Olavo Luiz Pimentel de Carvalho. No caso do astrólogo, o luto foi decretado por um dia. Dias antes, uma figura estrutural da cultura brasileira deixava a nação em lagrimas. A magnânima, incansável e fundamental Elza Soares. Claro, nada de luto oficial para a cultura popular.
O segundo luto oficial decretado foi em 13 de maio de 2022, declarado pelo falecimento de Sua Alteza Xeque Khalifa bin Zayed Al Nahyan, presidente dos Emirados Árabes Unidos e Emir de Abu Dhabi. Coerente com o amor à monarquia, ao autoritarismo e à pouca representação social, o luto do rei teve sabor a inveja pessoal do falecido.
O presidente Jair Bolsonaro decretou luto oficial de três dias no Brasil pelo assassinato do ex-primeiro-ministro do Japão Shinzo Abe, baleado durante um discurso de campanha eleitoral na cidade de Nara, em 8 de julho de 2022. No oriente, o presidente tem compaixão pelo Japão, mas desafeto pelo principal parceiro comercial, a China.[ii] Diplomacia à Bolsonaro.
O quarto luto foi decretado em 15 de julho de 2022, declarando luto oficial pelo falecimento de Dom Luiz Gastão Maria José Pio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Orleans e Bragança, Chefe da [imaginária] Casa Imperial do Brasil. Um luto contraditório para qualquer democrata, uma homenagem pessoal à pequenez.
Na mesma linha, o último luto decretado foi em 8 de setembro 2022, declarado pelo falecimento da Sua Majestade a Rainha Elizabeth II, do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte. A inovação deste luto foi a participação do velório no exterior. Um vira-lata de grau-maior.
Como vemos, Jair Bolsonaro expressa especial deferência por figuras monárquicas. O imaginário que informa sua postura política autoritária é fortemente habitado pela adoração infantil ao monarca. Pensemos, por exemplo, em sua conduta ao visitar o príncipe saudita Mohamed bin Salman em oportunidade na qual ele expressou de modo eloquente seu deslumbre com os nababescos luxos reais, chegando a afirmar que “Todo mundo gostaria de passar a tarde com um príncipe, principalmente vocês, mulheres”.[iii]
Outro arroubo monárquico manifestado por Jair Bolsonaro se dirige ao modo pelo qual ele compreende o direito brasileiro. Ainda em 2020, após seus correligionários realizarem manifestações de rua nas quais defendiam a intervenção militar, o fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional, Bolsonaro não via nada de ilegal nessas pautas. Isso porque os atos eram em seu apoio e ele afirmava: “Eu sou realmente a Constituição”.[iv]
Esse fascínio infantil pela monarquia ganha tons sombrios quando se trata do modo messiânico pelo qual ele, que tragicamente tem Messias no nome, se coloca acima de todos como o escolhido de Deus. Tal retórica perigosa da eleição divina tem sido repetidas vezes evocada nos discursos de sua esposa e de outros religiosos correligionários em sua campanha.
Não surpreende, portanto, que essa figura política que ostenta o que há de mais baixo no humano procure sempre um lugar à mesa da realeza. Nada mais coerente do que o desumano e a altivez cosmética da realeza em seu espírito colonizador. Bolsonaro renova seu despudorado culto pela morte e pela monarquia ao desfilar de preto no velório da Rainha Elizabeth II.
Lembremos que no início de 2022, num novo impulso antidemocrático, o parasita do Planalto revogou 25 decretos de luto editados por seus antecessores (Itamar Franco, FHC e Lula da Silva). Alguns dos nomes afetados pelo canetaço presidencial foram Leonel Brizola, Darcy Ribeiro, Antônio Carlos Magalhães e Roberto Marinho que tiveram as homenagens anuladas. Óbvio, os ex-presidentes militares Ernesto Geisel e João Batista Figueiredo não tiveram os atos de luto revogados. Mas Bolsonaro finalmente, pela pressão, recuaria da decisão, deixando sem efeito as revogações dos atos, independente do governo que os decretou ou da personalidade homenageada[v]. Que tipo de pessoa tira o luto decretado por outros mandatários democráticos? Uma memória forçada ou uma memória enforcada? A convulsão autoritária do atual presidente grita pequenez e sadismo.
Existiram inúmeras oportunidades de mostrar humanismo e acolhimento social, mas ele sempre foi perseverante na sua crueldade e cinismo. Um exemplo do silêncio do Planalto foram os assassinatos de Bruno Pereira e Don Philips, ativistas no coração da luta pelo meio ambiente e pela defesa dos povos originários. A ausência de declaração de luto oficial tem a crueldade e desprezo social como traço principal.
O negacionismo do mandatário foi simultâneo ao silêncio oficial pelas mortes da pandemia da covid-19. Nada de homenagens, muito de falta de respeito pelas pessoas que não conseguiram continuar respirando. O retrato de uma democracia asfixiada. Lembremos que foi em 9 de maio de 2020, momento em que o país atingiu o número de 10 mil mortes em decorrência da pandemia de coronavírus, que os presidentes do Senado, Davi Alcolumbre, e da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, editaram ato conjunto decretando luto de três dias no Congresso Nacional[vi]. Do Palácio do Planalto, só deram as costas e gargalhadas.
Jair Bolsonaro despreza a vida, a morte só é uma continuação do desprezo. O desvio reiterado de institutos que têm importância social é uma constante do mandatário atual. Ofensas aos desamparados de valores democráticos, aversão ao papel social do cargo que ocupa.
Na verdade, Jair Bolsonaro pode brincar com institutos da democracia, pode fazer de conta que tem o poder do rei, mas na verdade o luto existe mesmo não sendo decretado. E atualmente o Brasil está de luto, luto democrático. Enquanto Jair Bolsonaro estiver no poder, seguiremos enlutados. E é uma obrigação restituir os sentidos dos cuidados coletivos e o respeito pelas pessoas que contribuíram e construíram o melhor de nós. O luto parece estar perto do fim.
*Andrés Del Río é professor de ciência política na Universidade Federal Fluminense (UFF).
*André Rodrigues é professor de ciência política na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Notas
[i] https://aterraeredonda.com.br/as-medalhas-do-presidente/
[ii] https://brasil.elpais.com/brasil/2020-03-19/esforco-de-eduardo-bolsonaro-para-demonizar-china-copia-trump-e-ameaca-elo-estrategico-do-brasil.html
[iii] https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/10/29/todo-mundo-gostaria-de-passar-a-tarde-com-um-principe-principalmente-voces-mulheres-diz-bolsonaro-na-arabia-saudita.ghtml
[iv] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/democracia-e-liberdade-acima-de-tudo-diz-bolsonaro-apos-participar-de-ato-pro-golpe.shtml
[v] https://www.poder360.com.br/governo/bolsonaro-cancelara-revogaco-de-decretos-de-luto/
[vi] https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/05/09/congresso-decreta-luto-oficial-pelas-10-mil-mortes-por-covid-19-no-brasil
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