O melhor está por vir

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por GUILHERME COLOMBARA ROSSATTO*

Comentários sobre o filme, em exibição nos cinemas, de Nanni Moretti

“Em suma, em toda parte e em todo tempo, são as condições econômicas e os meios econômicos de poder que levam o poder à vitória, sem os quais ele deixa de ser poder…” (Friedrich Engels, Anti-Dühring).

1.

Por mais de 30 anos, o cineasta Nanni Moretti vem debatendo em seus filmes a decadência do Partido Comunista Italiano (PCI) e do projeto esquerdista como um todo, desde as confusões mentais de Palombella Rossa (1989) até a ansiedade pela mudança nos bons ventos de Abril (1998). O cenário político invade a vida de seus protagonistas e alter-egos, causando muito desgosto. A visão nunca é positiva, por melhor que sejam as chances de mudança, há sempre algo a temer.

Como na frase da epígrafe, o poder se encontra à espreita, seduzindo o coração dos homens e acabando com os projetos políticos honestos. Ele é influenciado pelo campo econômico, mergulhando as pessoas em uma incerteza constante. Na visão de Nanni Moretti, apesar de muito bem humorada, a Itália se encontra em um inferno dantesco. Ele não pode confiar na vitória, não pode confiar nos políticos, nos partidos e nem em si mesmo, como a amnésia de seu protagonista de Palombella Rossa comprova.

Essa obra segue um membro do PCI que perdeu a memória em um acidente de carro, condenado a nadar em um jogo de polo que faz tanto sentindo quanto a situação política do país. Para Nanni Moretti, o vácuo ocasionado pelo declínio do dito socialismo real se torna amnésia, é o eclipse da esperança socialista.[i] O momento quando o personagem deixa a piscina e assiste ao clímax de Doutor Jivago (1965) com outras pessoas na televisão, é um dos únicos momentos coletivos do filme, transmitindo uma positividade quase mágica para o espectador.

Nós torcemos com eles e entramos na trama inventada, sem tempo para pensarmos nas mazelas sociais da realidade. É como se o cinema fosse a única resposta; tema que retorna no filme aqui analisado. Nessa coletividade, a essência humana encontra a sua natureza “[…] pois é primeiro aqui que ela existe para ele na condição de elo com o homem, na condição de existência sua para o outro e do outro para ele…”.[ii]

Tais espasmos coletivos são raros, por isso o cenário é o pior possível, sem chances para os bons políticos e ativistas de esquerda, tão comprometidos com a justiça social. Ainda assim, com destaque para a obra de 2023, o humor é predominante, satirizando uma situação vista como horrorosa e sem fim. Um humor ácido e verdadeiro, que parte dos incômodos de Nanni para alcançar um riso coletivo, um remédio para seus espectadores, que assim como os personagens na beira da piscina, devem rir e chorar juntos.

2.

Em O melhor está por vir esse bom humor é jogado contra a negatividade de seu protagonista, que insiste em fazer um filme sobre um momento decisivo (e triste) para o comunismo soviético e os partidos satélites espalhados pelo mundo: a invasão da Hungria por tropas russas. Entre as filmagens, seu casamento está sendo abalado, a Itália parece se preocupar mais com filmes de ação genéricos e dados quantitativos de plataformas multimilionárias como a Netflix, sua filha não lhe escuta e os jovens desconhecem o impacto do PCI no pós-guerra italiano.

O passado, por outro lado, é um momento de anti-stalinismo (após três anos da morte do líder) e proclamação da liberdade, até que os próprios comunistas atuem como repressores e impõem a tirania. Por filmagens de arquivo, acompanhamos a derrubada de uma estátua do próprio Stalin, para depois, os tanques e soldados soviéticos derrubarem cidades inteiras em represália.

Primeiramente, o personagem de Nanni (Giovanni no filme, como se as ligações entre os dois ainda não fossem suficientes) insiste em filmar um realismo histórico. Não há espaço para a imaginação. Ele se preocupa demasiadamente com os objetos em cena e o tom da época. Os dois protagonistas de seu filme (um casal) não devem iniciar um relacionamento amoroso, afinal, eles estão tratando de temas políticos sérios. É preciso filmar 1956 em seus mínimos detalhes, contudo, há um limite. O diretor fictício, então, começa a modificar elementos importantes, como uma manchete de jornal da época. Ele prima por um realismo, mas parece não se controlar.

Em dado momento ele afirma que não filmará a história como aconteceu, mas a história dentro de seu filme. O espaço de manobra cresce, porém ainda não é o momento da mudança total (ela somente virá ao final). Nesse ínterim, ele rasga um cartaz com a face de Stalin e diz aos roteiristas e atores que essa figura não tem vez no filme, deixando a de Lênin. O presente retifica a luta do passado, refletindo sobre um momento de extrema melancolia para a esquerda. Melancolia, que justamente, sempre acompanhou essa corrente política, como parte de suas esperanças messiânicas.[iii]

Todavia, ao final, os cineastas (fictício e real) não caem em uma melancolia ou um labirinto de autolamentação. Na busca por certo purismo de esquerda, eles podem se despir das ferramentas e rigores de um historiador, dando lugar à uma mistura de imaginação e revisionismo. Eles modificam os fatos passados, imaginando um cenário onde o PCI não apoiou a invasão e as medidas autoritárias do Partido Comunista Soviético. O passado é utilizado por Nanni Moretti como meio de luta contra um presente sufocado. A luta é imaginária, a passeata e as danças finais são imaginárias, mas seu impacto ainda pode ser sentido fora da tela do cinema.

O filme dentro do filme acaba imaginando uma espécie de cenário paralelo para 1956, dotado de positividade e soluções fáceis. Rever o passado se torna um alívio; um meio de consertar as relações sociais e privadas do presente (sua esposa lhe acompanha na marcha final, como se o casamento estivesse salvo). Pelas lentes de Nanni Moretti, o PCI ganha maior autonomia política, garantindo um futuro estável para a Itália e um exemplo para os partidos de esquerda do mundo.

Em termos de imaginação, sua visão vincula-se aos que colocam a história e a interpretação do passado como dependentes do presente: “[…] parece remota a possibilidade de que o historiador consiga despir-se do presente para chegar ao passado de alguém nos termos desse alguém”.[iv] Nanni não se preocupa com um rigor metodológico: ele quer chegar ao passado italiano para rever e consertar alguns fatores.

Seus objetivos estão próximos da memória, tão diferente da história, que pode apenas receber alguns de seus pontos de vista e pautas, sempre de um modo crítico.[v] Aqui, o enredo de Nanni Moretti invade a história propriamente dita e seus esforços imaginativos estão próximos aos daqueles que enxergam a interpretação historiográfica como pertencente à uma estrutura de enredo. O relato narrado, assim, recebe atributos de desenvolvimento e articulações de um drama/romance.[vi]

Giovanni alcança o passado para modificar o seu presente, se livrando da tristeza que seu filme estava lhe proporcionando. Ele está livre para imaginar outro desenrolar na história, expresso pelas palavras que acompanham uma tela completamente vermelha: “O Partido Comunista Italiano recusou a tirania soviética, condenou a invasão da Hungria e permitiu a criação de uma utopia socialista na Itália, nos moldes que queriam Marx e Engels”.

Nessas palavras finais, a utopia não é caracterizada. Cabe a cada um de nós imaginar o melhor futuro possível, de acordo com nossos valores e expectativas. Uma tela branca para a esquerda. O meu Marx pode ter moldes diferentes do seu, caro leitor, mas isto pouco importa, afinal, a tirania foi deposta e nos resta sonhar com um futuro mais justo e digno.

Paralelamente, Nanni Moretti tece um comentário sobre a situação política do presente fora das telas, caótica por natureza e ausente de quaisquer chances de mudança. Entretanto, ele não perde tempo com esses lugares comuns, condenando a esquerda à perda de eleições, golpes de Estado e outros maus agouros dos nossos tempos. Não, o diretor aponta que o melhor ainda virá; mesmo que seja por meio da utopia. A imaginação preenche seus personagens e situações, deixando uma positividade na cabeça do espectador, que pode esquecer, pelo menos por alguns minutos, todos esses aspectos negativos citados e vividos no presente.

A história, assim, se transforma em um meio de auxílio, um remédio para tempos sombrios. Ela não está finalizada, tampouco oprimida por más decisões. Ela é um raio de esperança que conserta a vida do protagonista e coloca todos para marcharem em sintonia, sonhando com um futuro melhor que pode nunca vir, mas que definitivamente será melhor do que as possibilidades que temos à nossa frente.

*Guilherme Colombara Rossatto é graduando em história na Universidade de São Paulo (USP).

Referência


O melhor está por vir (Il sol dell’avvenire)
França, Itália, 2023, 95 minutos.
Direção: Nanni Moretti.
Elenco: Nanni Moretti, Marguerita Buy, Mathieu Amalric, Silvio Orlando, Barbara Bobulova, Valentina Romani, Flavio Furno, Zsolt Anger.

Notas


[i] TRAVERSO, Enzo. Left-wing melancholia: Marxism, history and memory. Nova York: Columbia University Press, 2016, p. 86.

[ii] MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 106.

[iii] TRAVERSO, op. Cit., p. 38.

[iv] JENKINS, Keith. A História Repensada. São Paulo: Contexto, 2001, p. 70.

[v] NAPOLITANO, Marcos. Negacionismo e revisionismo histórico no século XXI. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Novos combates pela História – desafios, ensino. São Paulo: Contexto, 2021, p. 94.

[vi] WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994, p. 80.


Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Rubens Pinto Lyra Berenice Bento Osvaldo Coggiola Alexandre Aragão de Albuquerque Antônio Sales Rios Neto Juarez Guimarães Bento Prado Jr. Ricardo Fabbrini José Luís Fiori Paulo Sérgio Pinheiro Rafael R. Ioris Lincoln Secco Érico Andrade Jean Pierre Chauvin Otaviano Helene Gerson Almeida Carla Teixeira Tarso Genro Henri Acselrad Eleutério F. S. Prado Ronald León Núñez Marilena Chauí Celso Frederico Manchetômetro Chico Alencar Eugênio Bucci Eduardo Borges Ricardo Musse Alexandre de Lima Castro Tranjan Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Armando Boito Luiz Roberto Alves Rodrigo de Faria Lucas Fiaschetti Estevez Liszt Vieira Antonio Martins Ricardo Antunes Afrânio Catani Kátia Gerab Baggio João Paulo Ayub Fonseca Mariarosaria Fabris José Dirceu Samuel Kilsztajn Vladimir Safatle Valerio Arcary Luiz Marques Leonardo Avritzer Bruno Fabricio Alcebino da Silva José Geraldo Couto Julian Rodrigues Flávio R. Kothe José Costa Júnior Marcelo Guimarães Lima Antonino Infranca Luiz Renato Martins João Feres Júnior Tadeu Valadares Priscila Figueiredo Luiz Eduardo Soares Thomas Piketty Michael Löwy Gilberto Lopes Salem Nasser Daniel Brazil Vanderlei Tenório Luis Felipe Miguel Gabriel Cohn Marjorie C. Marona André Singer Everaldo de Oliveira Andrade Vinício Carrilho Martinez Marcelo Módolo Dennis Oliveira Igor Felippe Santos Leonardo Sacramento Manuel Domingos Neto Paulo Capel Narvai Eliziário Andrade Annateresa Fabris Maria Rita Kehl Remy José Fontana Eleonora Albano Matheus Silveira de Souza Michel Goulart da Silva Leda Maria Paulani Alysson Leandro Mascaro Luiz Carlos Bresser-Pereira Fernando Nogueira da Costa Yuri Martins-Fontes Boaventura de Sousa Santos Fábio Konder Comparato João Lanari Bo Alexandre de Freitas Barbosa Mário Maestri Carlos Tautz Sergio Amadeu da Silveira Paulo Fernandes Silveira Francisco Pereira de Farias Paulo Nogueira Batista Jr Walnice Nogueira Galvão Henry Burnett André Márcio Neves Soares Ronaldo Tadeu de Souza João Adolfo Hansen Jean Marc Von Der Weid José Raimundo Trindade Jorge Branco Marcos Silva Marcus Ianoni Dênis de Moraes Caio Bugiato João Sette Whitaker Ferreira Francisco de Oliveira Barros Júnior Jorge Luiz Souto Maior Bruno Machado João Carlos Salles Paulo Martins Chico Whitaker Marcos Aurélio da Silva Sandra Bitencourt Leonardo Boff Daniel Costa Daniel Afonso da Silva Ricardo Abramovay Tales Ab'Sáber Denilson Cordeiro Anselm Jappe Andrés del Río Valerio Arcary Atilio A. Boron Ari Marcelo Solon Slavoj Žižek Lorenzo Vitral Eugênio Trivinho Marilia Pacheco Fiorillo Luiz Werneck Vianna Claudio Katz Andrew Korybko Gilberto Maringoni Francisco Fernandes Ladeira Ladislau Dowbor Celso Favaretto Bernardo Ricupero Luiz Bernardo Pericás Plínio de Arruda Sampaio Jr. Luís Fernando Vitagliano Flávio Aguiar Heraldo Campos Benicio Viero Schmidt Milton Pinheiro José Micaelson Lacerda Morais Renato Dagnino João Carlos Loebens Michael Roberts Luciano Nascimento José Machado Moita Neto Airton Paschoa Elias Jabbour Fernão Pessoa Ramos Ronald Rocha

NOVAS PUBLICAÇÕES