Por GUSTAVO FELIPE OLESKO*
A questão de classe foi praticamente posta de lado. Aqueles que buscam trazer a classe para o debate são tratados como dinossauros, ortodoxos, atrasados ou simplesmente ignorados
Marinheiro, marinheiro (marinheiro)\ Quero ver você no mar (mar)\ Eu também sou marinheiro (marinheiro)\ Eu também sei governar\ Madeira de dar em doido\ Vai descer até quebrar\ É a volta do cipó de aroeira\ No lombo de quem mandou dar\ É a volta do cipó de aroeira\ No lombo de quem mandou dar” (Geraldo Vandré, aroeira).
Há atualmente um grande e até certo ponto proveitoso debate sobre a morte da esquerda no Brasil e no mundo. Constrói-se sob os escombros da caquética política de conciliação de classes debates sobre os a crise da esquerda, sobre se o Partido dos Trabalhadores é ou não é de esquerda, quase uma disputa para ver quem está mais a gauche. Contudo, aqui se faz uma provocação, inspirada no recém encantado geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves[i]: “A esquerda está em crise. Viva a esquerda!”.
Portanto, partindo de dois pontos, busca-se aqui destacar as possibilidades de reestruturação do pensamento crítico brasileiro, tendo por base algumas análises pretéritas, as quais já marcavam a crise de esquerda. Robert Kurz, um dos marxistas mais ácidos, já destacava há mais de três décadas que
Com gestos de relativização, de masoquista humildade, que se revoga qualquer conceito, apenas pronunciado. A preocupação contínua com as “diferenças”, exacerbada a ponte de se converter em vício, parece dissolver os objetos históricos e sociais, tornando-os irreconhecíveis (KURZ, 1997, p. 16).[ii]
Justamente a relativização pós-moderna, levada como vício, leva a esquerda e a teoria crítica para uma crise. Durante os anos de governos do PT, criou-se ao largo do pensamento acadêmico – arrisco dizer também o político – a noção de que havia no país um predomínio das ideias ditas “progressistas”. Como o rei Minos, soberbo e arrogante, esse pensamento acabou sendo punido com a criação de um minotauro, no caso o protofascismo brasiliano, que tem sua essência um culto a figuras chaves, um bonapartismo torpe e esquálido de substância. Isso se comprovado quando do choque de parte da esquerda com a vitória dessa extrema direita nas eleições de 2018. Oras, o monstro já havia quebrado os muros do labirinto na qual fora enfurnado e havia tomado de assalto os municípios já em 2016.
Foi justamente esse vício na diferença e o desdém para com a unidade, que produziu uma derrota acachapante e que permite que até os dias, dentre outros fatores já muito trabalhados em diversos textos aqui no site A Terra é Redonda ou em outros meios, sejam acadêmicos, políticos, sindicais, etc. façam com que o minotauro do fascismo ainda esteja à solta. A maior força política do país no atual momento, e não é somente Vladimir Safatle que destaca, Paulo Arantes já o havia feito um ano antes em diversas mídias, é o da extrema direita.
Sua unicidade monstruosa mostra como sim, é possível, na diferença, criar uma unidade. Afinal de contas, a extrema direita nacional é formada por uma gama enorme de grupos: parte dos neopentecostais, latifundiários rentistas, empresários rurais grileiros de terra, militares, forças de segurança, indignados com a corrupção, viúvas da ditadura, neoyuppies daytraders fãs de bilionários, boleiros etc. A lista é infindável. Agora, na esquerda as fraturas são gigantescas.
A questão de classe, retornando a Robert Kurz, foi praticamente posta de lado. Aqueles que buscam trazer a classe para o debate são tratados como dinossauros, ortodoxos, atrasados ou simplesmente ignorados. Não que as outras questões devam ser postas de lado, muito pelo contrário. Ronaldo Tadeu de Souza nos auxilia enormemente ao nos citar que: “[…] a esquerda brasileira morre não por que se apropria grandemente de tais teorias sociais para compor o leque de entendimento e ação na realidade; quanto a isso estamos na vanguarda do que sugerem Perry Anderson e Göran Therborn. Mas o absoluto desprezo com que a esquerda brasileira, ressalvando pouquíssimas vozes, tem com relação ao marxismo e as flechas da aljava da teoria socialista clássica é escandaloso. Uma esquerda que ainda estivesse lendo, apenas O que fazer?, de Lênin, escrito em 1902, e não soubesse o que está escrevendo Butler e Honneth, Laval e Rahel Jaeggi seria um problema grave. Contudo, uma esquerda que somente se debruça sobre a teoria queer e estudos sobre desigualdade, psicanálise e pós-colonialidade, esfera pública e teoria da justiça e sequer vislumbra averiguar, por exemplo, o que significa o conceito de imperialismo de Lênin, Rosa Luxemburgo, Kautsky, Bukharin e Hilferding […],não deixa de ser sintomático de sua crise profunda (é constrangedor, nesse caso, o uso insistente da noção de correlação de forças para justificar as condutas políticas de Lula, Haddad e do PT).[iii]
Ou seja, o decoro atual da esquerda é estar na busca constante do mais novo e fragmentado pensamento crítico, porém, colocando na sombra justamente o pensar crítico clássico, do qual muitas vezes nasceram essas outras teorias sociais. Trazemos como exemplo a própria Teoria decolonial, por muitos apregoada como antimarxista (sic), sendo que um de seus principais expoentes (para alguns até mesmo formulador) foi um dos maiores marxistas que o América Latina produziu, no caso Enrique Dussel.
Agora, por que Carlos Walter nos é importante? Sua análise final sobre a crise da Geografia era a de que é precisamente a crise que traz a possibilidade de superação da mesma, uma superação onde se construa mais unicidade, menos repartições, menos fraturas dentro da esquerda, não somente a acadêmica, mas principalmente a da materialidade, ou seja, dos movimentos sociais e das classes em luta.
Uma teoria crítica que saiba resgatar o camponês, em vez de segmentar e judicializar a luta das diversas frações do campesinato, que saiba unificar a luta dos trabalhadores urbanos em seus mais diversos extratos, que consiga alcançar aquela e aquela trabalhadora aos trapos, os lumpen, do magnetismo da extrema direita. Por uma esquerda que busque em Marx, em Tristan, em Kropotkin, em Reclus, em Luxemburgo as armas da crítica para atacar e revolucionar, e não somente resistir “pela lei”.
Que a esquerda brasileira ache seu cipó de aroeira, para dar em quem mandou bater, que encontre nesses mares hoje cada vez mais vermelhos de sangue marinheiras e marinheiros que batam no peito e gritem: eu também sei governar.
*Gustavo Felipe Olesko é doutor em geografia humana pela Universidade de São Paulo (USP). Autor do livro Geografia Agrária (InterSaberes). [https://amzn.to/49Avl38]
Notas
[i] Gonçalves, C. W. P A geografia está em crise. Viva a geografia!. Boletim Paulista De Geografia, (55), 5–30. (2017[1978]). Recuperado de https://publicacoes.agb.org.br/boletim-paulista/article/view/1050.
Falecido em 6 de setembro de 2023, Carlos Walter foi um dos mais destacados geógrafos brasileiros, pertencendo a uma geração que deu ao país outros intelectuais que revolucionaram a ciência geográfica no país (não citamos todos com o temor de ausentar alguém), destacando sempre que não era possível explicar o mundo somente com Marx, mas também não era possível explicar e mudar o mundo sem Marx.
[ii] KURZ, Robert. A Intelligentsia depois da luta de Classes. In: KURZ, Robert. Os últimos combates. Ed. Vozes, Petrópolis, 3ª Edição, 1997. O texto original data de 1992, tendo sido publicado por Kurz no Münchner Zeitschrift für Philosophie.
[iii] Souza, Ronaldo Tadeu de. A esquerda morreu? O debate Vladimir Safatle. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2024/04/05/a-esquerda-morreu-o-debate-vladimir-safatle/
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