A privatização da Eletrobrás

Imagem: Wojtek Pacześ
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Por GUSTAVO FELIPE OLESKO*

Crise hídrica, energética e devastação ambiental tendem a aumentar com a privatização

O Brasil sofreu diversos golpes ao longo de sua história, não somente os golpes políticos tantos que modificaram o poder central, da noite da agonia de 1823, passando pelo golpe da maioridade de 1840, a proclamação da República em 1889, o golpe de 1903 com o fechamento do congresso, sejam os golpes que fizeram nascer a fórceps o Estado Moderno Brasileiro com Vargas em 1930 e novamente em 1937 e também na sua deposição em 1945, chegando nos mais famosos, o golpe de 1964 (com o golpe dentro do golpe de 1968) e por fim 2016 com Dilma Rousseff.

Mas não, não são somente esses golpes que o país sofreu, temos também os golpes econômicos, os quais são inúmeros, passando de concessões criminosas para estrangeiros desde o período imperial, que vão de limpeza pública até áreas enormes de 15 km de cada lado da famosa linha férrea Rio Grande do Sul – São Paulo, a qual desencadeou a Guerra do Contestado na fronteira entre Paraná e Santa Catarina, chegando até a venda a troco da Vale do Rio doce. O que o país assiste agora, paralisado, é um dos maiores golpes já dados: a privatização da Eletrobrás.

Ikaro Chaves em sua entrevista para Luiz Carlos Azenha no site Viomundo foi talvez a única voz dissonante que buscou alardear sobre tal acontecimento, seja dentro da esquerda, paralisada, vidrada na comédia parlamentar da CPI da COVID ou da direita, que como um caranguejo, anda de lado para tudo ficar na mesma dando a impressão que está indo para frente com o seu “fora Bolsonaro” mais falso que nota de três reais. Não nos esqueçamos que o caranguejo vive no lodo e lá as coisas apodrecem rápido. Chaves nos traz alguns dados relevantes os quais busca-se complexificar aqui. Em primeiro lugar ele traz que o dirigente da Aesel (associação dos engenheiros e técnicos da Eletrobrás) diz que o preço estimado e desejado com a privatização da empresa seria de 25 bilhões de reais em outorga, chegando ao final no mágico número de 100 bilhões[i]. A título de comparação, só o custo das usinas Angra I e II, são de 8,4bi e 17,2bi, mais 25bi estimados para finalizar Angra III, somente em estrutura a Eletronuclear valeria 50,6bi (em valor de mercado vale, hoje, 3,3bi). Cabe acrescentar que antes do golpe de 2016, o valor da empresa havia alcançado 60 bilhões de reais (ALVES, STATISTA, 2020[ii]), equivalentes hoje a 97bi. Isso em valores de mercado, cotados em mercado, agora o valor real da empresa, o valor do patrimônio, o quanto valem as usinas, quanto ali foi investido, não consta em lugar nenhum, uma vez que mostraria de modo didático o crime que é a venda da empresa pelas migalhas que estão postas em jogo. Cita Chaves:

O dirigente da Aesel diz que o preço estimado da Eletrobras, de R$ 25 bilhões que seriam recolhidos ao Tesouro, é um verdadeiro escândalo, considerando que a Eletrobras é lucrativa, tem quase R$ 15 bilhões em caixa e dívidas e receber de R$ 44 bilhões.

Ou seja, ao fim e ao cabo o Brasil perderia R$ 34 bi a longo prazo ao entregar o controle da estatal, sem considerar que o aumento dos preços da energia impactaria toda a pequena e média indústria nacional, além dos consumidores do dia-a-dia

Qualquer pesquisa rápida na internet será vista pelo brasileiro comum uma defesa uníssona da privatização. Os sites de investimentos, o mais conhecido deles comprado pelo BTG “que foi e é, mas não é mais” de propriedade do ministro da economia, será vista uma defesa encarniçada da privatização. No Valor Econômico, de propriedade do Grupo Globo, a defesa da liquidação do patrimônio público chegou ao ponto do ridículo, onde se atrela a crise hídrica sofrida pelo país ao fato da empresa não ter sido privatizada por Temer em 2018[iii]. Piada.

A crise hídrica tem outros sentidos, sua origem é intimamente ligada a dois fatos: primeiro a devastação na Amazônia, que causou uma diminuição significativa na força da massa Equatorial continental, correntes gigantescas de ventos úmidos que correm da Amazônia pelo corredor de baixa altitude (não planícies, baixas altitudes!) que percorre o sul da floresta por Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, especialmente no pantanal, adentra o sul do Brasil e chega até nossos vizinhos platinos, via a planície argentina. Com a diminuição da floresta, esta pegando fogo, a massa perdeu sua intensidade, produzindo já em 2019-2020 uma diminuição nos reservatórios e severas estiagens (o sul do Brasil passa por isso desde tal fase). Mas isso já ocorria desde os idos de 2014, mas com força ainda maior após 2017 sendo sentida já naquela época na Argentina, onde seu agronegócio sofreu muito com a seca[iv]. Em segundo lugar, fato já avisado por vários estudiosos e amplamente estudado nos cursos pré-vestibulares desses país, o de que em 2021 teríamos ano de La Niña, onde NATURALMENTE há uma diminuição considerável das chuvas na porção meridional do continente sul-americano.

Foi à devastação da natureza, o avanço desenfreado do agronegócio que causou a crise hídrica e não alguma ingerência da Eletrobrás[v]! Soa patético pensar dessa forma, contudo, este é o modus operandi dos sacerdotes da modernidade, os economistas neoliberais na acepção de Chesnais[vi] que criam mitos, os quais são reproduzidos de modo quase ininterrupto pela grande mídia aos olhos do povo brasileiro, é a dissociação de um mesmo processo pelo qual o país passa que projetou sobre a população a falta de água e energia, não fatos isolados. É o projeto que está em voga desde o golpe de 2016: Brasil como fonte de capitais, algo que já foi trabalhado anteriormente por nós[vii] e esse processo vai desde as privatizações tão bem vistas aos olhos da mesma mídia, a qual criou a quimera governamental dividindo um governo entre ala técnica, ala ultrareligiosa e ala militar, onde tais cabeças estariam em conflito entre si. É uma falsidade, o atual governo não é uma quimera, o qual seria morto pelo Belerofonte da “centro direita” numa frente ampla liberal (não esqueçamos que antes de ser ministro da economia de Jair Messias, o “dono que não é dono” do BTG era o queridinho do Grupo Globo e apoiador do playboy Huck). Não, o governo atual não é a quimera, mas sim um monstro único que age em sintonia.

Mas afinal, por que a privatização, já que ela realmente não vai melhorar em nada a distribuição de energia para a população deste país? A questão é compreender que não é algo simples, uma maldade gratuita dos sacerdotes da modernidade da mídia, bancos de investimento e o sumo sacerdote sentado na cadeira como Ministro da Economia, é uma maneira de se produzir capital a partir do “nada” e tal fato anda de mãos dadas com a atuação da sacerdotisa que, a serviço das hienas que comandam o latifúndio deste país, age para destruir o pouco que resta da natureza ao largo do território nacional.

Marx trabalhou com a temática da gênese do capital ao longo de vários de seus escritos, tanto em informas para a Associação Internacional de Trabalhadores (AIT), nos Grundrisse e nos Livros I e III de O Capital. Lá o mesmo deixa claro que a origem do capital se dá primeiramente no acumulo de dinheiro através do usurário, aquele que cobra juros sobre o papel moeda emprestado e a partir disto se tem a possibilidade de produção de capital. Como? Através da separação do trabalho do meio de produção, ou seja, a separação do trabalhador da terra onde trabalha, a qual é transformada em mercadoria e passa a possuir um preço.

Nos ensina Marx: “Assim, p. ex., se no devir originário do dinheiro ou do valor por si em capital é pressuposta uma acumulação por parte do capitalista – seja por meio da economia de produtos ou valores criados com seu próprio trabalho etc. – que ele realizou como não capitalista – se, por conseguinte, os pressupostos do devir do dinheiro em capital aparecem como pressupostos externos dados para a gênese do capital”.[viii]

“A descoberta de terras auríferas e argentíferas na América, o extermínio, a escravização e o soterramento da população nativa nas minas, o começo da conquista e saqueio das Índias Orientais, a transformação da África numa reserva para a caça de peles-negras caracterizam a aurora da era da produção capitalista. Esses processos idílicos constituem momentos fundamentais da acumulação primitiva”.[ix]

Em outras palavras, a transformação de algo que é alheio ao modo de produção, que está FORA do processo mercadológico é aquilo que, ao ser transformado em mercadoria, possibilita a produção de capitais. O Brasil ainda é uma grande poupança de elementos que estão fora da lógica de reprodução do capital. A Eletrobrás possuí nada mais de 36 hidroelétricas, 128 termoelétricas e as duas usinas nucleares do país e faz a gestão de uma área de terras muito grande as quais estão, evidentemente, fora do processo especulativo, não são propriedade privada ipsis litteris, são bem público. A privatização da empresa, além de fornecer o controle total da energia (e autonomia) nacional, fornece também uma possibilidade de transformação em propriedade privada terras que estão fora do mercado! Fornece a chance de precificar e consequentemente produzir, do nada, dinheiro o qual acumulado vem a se tornar capital na circulação. É um jogo de ganha – ganha para o mercado.

É possível então notar como crise hídrica e energética está entrelaçada com a privatização, a qual tende a aumentar tal crise. A devastação ambiental tenderá a ser ainda mais agravada, com o Brasil sendo um espelho do que hoje é o Estado do Paraná: grande produtor do agronegócio, devastado ambientalmente, com meros 1,5% da mata de araucária e campos preservados, com uma devastação recente a qual avança justamente em cima desse percentual que resta. Por que? Pois o restante da mata está justamente em territórios que estão fora do processo de precificação da terra, no caso em parques estaduais e em comunidades camponesas. A crise hídrica já assola o estado desde 2019 e tem em seu maior rio, o Iguaçu, com diversas hidroelétricas de porte grande, o símbolo da dialética destruição ambiental – produção de propriedades privadas. Enquanto a comédia parlamentar da CPI acontece, a tragédia brasileira se dá a largos passos com um governo bonapartista, tosco, que se assenta na massa de trabalhadores aos farrapos, os lumpen, que veem no proto fascismo sua salvação; com uma direita que se diz limpinha enquanto abraça o sumo sacerdote da economia; uma esquerda posmodernizada cuja luta central é pelas famosas pautas fragmentadas, que arrisca o bizarro argumento de que a pauta atual para chegar ao poder é a “pós-material”… pós materialidade num país que passa fome e onde 110 milhões de pessoas sobrevivem com 438 reais no mês[x], ou seja 2,85 dólares no dia.

*Gustavo Felipe Olesko é doutor em Geografia Humana pela FFLCH-USP.

Notas

[i] https://valorinveste.globo.com/mercados/renda-variavel/empresas/noticia/2021/05/07/venda-da-eletrobras-pode-render-r-100-bilhoes.ghtml.

[ii] ALVES, BRUNA, STATISTA. Net Revenue of Eletrobrás in Brasil from 2013 to 2019 https://www.statista.com/statistics/987213/eletrobras-net-revenue-brazil/

[iii] https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/05/28/crise-hidrica-reforca-necessidade-de-privatizacao-da-eletrobras-diz-secretario.ghtml

[iv] https://elpais.com/internacional/2014/12/04/actualidad/1417654351_309031.html e https://www.telam.com.ar/notas/202007/494004-amazonas-incendios-brasil-lluvia-invierno-deforestacion-anfibia.html

[v] Até a Globo sabe! https://oglobo.globo.com/sociedade/um-so-planeta/como-devastacao-da-amazonia-afeta-clima-na-america-do-sul-24955506

[vi] CHESNAIS, F. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996.

[vii] https://aterraeredonda.com.br/a-terra-como-reserva-de-valor/

[viii] MARX, Karl. Grundrisse. Manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. Trad. Mario Duayer, Nélio Schneider (colaboração Alice Helga Werner e Rudiger Hoffman). São Paulo, Boitempo; Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, 201,p. 377-378

[ix] MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Trad. Rubens Enderle. 2ª ed. São Paulo, Boitempo, 2014. p. 821.

[x] https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/05/06/metade-dos-brasileiros-sobrevive-com-menos-de-r-15-por-dia-aponta-ibge.htm#:~:text=Metade%20dos%20brasileiros%20sobrevive%20com%20apenas%20R%24%20438%20mensais%2C%20ou,Geografia%20e%20Estat%C3%ADstica%20(IBGE).

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